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Hope, o navio divisor de águas para a Faculdade de Medicina de Alagoas

Navio-escola americano deu salto de qualidade a profissionais da saúde no Estado

Por Wellington Santos / Tribuna Independente 26/04/2025 08h00 - Atualizado em 26/04/2025 14h17
Hope, o navio divisor de águas para a Faculdade de Medicina de Alagoas
Na imagem acima, o navio-hospital Hope que aportou em Maceió em 1973 e foi de fundamental importância para a evolução da medicina alagoana - Foto: Reprodução

O jornal Tribuna Independente, o portal Tribuna Hoje, TV e as redes sociais do conglomerado de comunicação da Cooperativa dos Jornalistas e Gráficos do Estado de Alagoas publicam, neste fim de semana, a segunda reportagem sobre o Jubileu de Diamante que vai comemorar no próximo dia 3 de maio 75 anos de existência da Faculdade de Medicina de Alagoas (Famed).

Nesta segunda reportagem, o enfoque é para a estadia do navio-hospital americano Hope, em Maceió, no ano de 1973, que significou, literalmente, um divisor de águas para a evolução da medicina alagoana e para a própria Faculdade de Medicina.

Com 140 professores em todos os campos da Medicina, Odontologia e Enfermagem, o navio-hospital Hope tinha sua própria biblioteca médica, 108 leitos, vários equipamentos para diagnósticos e cirurgias, salas de aula, oficina de consertos e reparos, estação de rádio, bar, padaria, açougue, barbearia, além de cinema, igrejas, salões de refeições e de recreação.

Era considerado “O Navio Mais Bem-vindo do Mundo”.

Transportava também sua própria frota de veículos e tinha um gerador capaz de iluminar uma cidade de 12 mil habitantes. Acomodava ainda uma farmácia, três centros cirúrgicos, laboratórios, banco de sangue e almoxarifado com capacidade para sete toneladas de medicamentos.

Nesse ano de 1973, dois jovens - um já formado como médico cirurgião vascular então com 36 anos de idade e, o outro, um jovem colegial com apenas 17 anos - são os personagens que nesta reportagem contam o que viram daquela experiência do navio-hospital.

Um é o médico vascular Francisco Silva de Oliveira, 88 anos, carinhosamente chamado pelos colegas de “Doutor François”. E o outro jovem colegial, à época, é o hoje professor-adjunto João Batista Neto, 69 anos, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e cirurgião especializado em cirurgia digestiva. João atualmente é um dos organizadores da festa dos 75 anos da Famed que será celebrada no próximo dia 7 de maio.

MÉDICO POLIGLOTA E GOVERNADOR FORAM FUNDAMENTAIS PARA TRAZER NAVIO-HOSPITAL

No caso de François, ele fez parte da equipe alagoana de médicos do Hope porque tinha feito cirurgia vascular no Santa Maria de Lisboa e já tinha um know-how internacional.

Já no caso do médico que se tornou o coordenador local do Projeto Hope, Úlpio Paulo de Miranda, era um dos jovens com destaque na cirurgia nacional. Isso porque era o único cirurgião brasileiro que os comandantes americanos deixavam operar os soldados americanos.

Os médicos Francisco Silva (“Doutor François”) e João Batista Neto relembram fatos da passagem do Hope na capital alagoana (Foto: Divulgação)

Questionado pela Tribuna como o Hope aportou em Maceió, François relembra detalhes e destaca o papel importante para que fosse possível o navio-escola chegar à capital alagoana: “Os nossos colegas médicos Úlpio e o Erisvaldo estavam passeando em Natal, no Rio Grande do Norte, e descobriram que lá estava esse navio-hospital. Um imenso navio. E foram até lá. Quando chegaram aqui, falou comigo. Aí eu disse: rapaz, vamos trazê-lo para aqui”, relembra.

“Os contratos eram todos gratuitos, era o governo dos Estados Unidos que bancava isso. Esse navio-hospital já tinha ido em outros países, mas escolhia os países pobres para que eles baixassem, né?”, conta François.

“Mas trazer o Hope não foi nada fácil não, viu? E, claro, colocamos nessa luta o então governador da época, o Afrânio Lages”, completa François. E um dos motivos era óbvio: Maceió não estava no roteiro do Hope.

Mas o personagem na pessoa do médico oncologista Úlpio Paulo de Miranda foi, de fato, fundamental. “Ele tinha muito jeito para arrumar essas coisas e aí ficou indo lá em Natal, conversando com aquele pessoal todo, e a maior facilidade era que ele falava várias línguas. Falava fluentemente o inglês e isso facilitou para que convencesse o comandante do navio”, completa François.

A cidade de Natal havia sido contemplada porque lá existiam bases americanas, porque na Segunda Guerra e na Guerra Fria, os Estados Unidos tinham seus interesses no Brasil e em Natal.

“Com o Hope, além do impacto na Faculdade de Medicina, foi criada a escola de enfermagem em nível superior”, destaca João Neto.

TECNOLOGIA AVANÇADA E SAMBA NA CHEGADA

François e João Batista Neto relatam como foi a receptividade à megaestrutura do navio-hospital na capital alagoana. “O navio, quando apontou aqui, foi a festa lá no porto. Teve até escola de samba e os americanos ficaram loucos”, relata François.

No caso de João Batista Neto, que embora já sonhasse em algum dia cursar Medicina, a realidade diante daquela megaestrutura naval médica que estava aportada em Maceió ainda estava bem distante daquele garoto de 17 anos.

Comitiva de médicos e enfermeiros americanos do Hope na chegada ao Cais do Porto de Maceió com uma grande festa (Foto: Reprodução)

Interrogado se havia ao menos visitado o navio-escola ainda que como paciente, João disse: “Não, não, eu era estudante do científico como se chamava. Fui até o Cais do Porto e tinha até uma prima que trabalhava ali perto do Porto, mas não cheguei a entrar”.

O legado do navio-hospital

De acordo com o portal História de Alagoas, o Projeto Hope foi uma iniciativa da fundação “The People-to-People Health Foundation Inc.” (Fundação de Saúde do Povo para o Povo), estabelecida em Washington, DC, EUA.

A possibilidade de o Hope também servir a Maceió começou a ser discutida em uma reunião realizada no Palácio dos Martírios no dia 13 de maio de 1972. O governador Afrânio Lages ouviu as explicações de Royald, diretor do navio, e de Johnny Gregory.

O reitor da Universidade Federal de Alagoas, Nabuco Lopes, e o médico Alfredo Ramiro Bastos, diretor da Faculdade de Medicina, também participaram do encontro.

Foram vistoriados o Porto de Maceió, a Cidade Universitária e vários outros equipamentos que seriam utilizados durante a permanência do Hope.

No final de agosto ocorreu nova visita de uma comitiva do Hope a Maceió, desta feita com a presença do presidente da Fundação, William B. Walsh e familiares; Robert Nixon, do Conselho Diretor do Projeto; da enfermeira Mary Harrigan, chefe do setor de enfermaria; e Patrícia Endress, educadora de enfermagem, além de Jorge Verduzco, administrador da unidade naval.

O anúncio da presença do Hope em Maceió ocorreu somente em julho de 1972. Ao divulgar tal decisão, o dr. Walsh justificou que era grande o interesse das cidades portuárias brasileiras, mas que a escolha recaiu sobre Maceió por seu porto oferecer maiores facilidades técnicas. Mesmo assim, o Porto de Maceió teve que construir um cais de atracação exclusivo para o Hope a um custo de 590 mil cruzeiros.

Após deixar Natal e permanecer alguns dias nos EUA, o Hope voltou ao Brasil e atracou no Porto de Maceió às 18h do dia 15 de fevereiro de 1973 para permanecer nove meses prestando serviços em Alagoas.

Um verdadeiro carnaval foi organizado para recebê-lo, com direito a escolas de samba, blocos de carnaval, evolução de bois e bandas de música da Polícia Militar e do 20º BC.

Surpreendentemente, a principal atração do navio foi a enfermeira e bibliotecária Susan Agnew, filha do vice-presidente dos Estados Unidos.

A primeira cirurgia no Hope em Alagoas ocorreu ainda na noite de sua chegada a Maceió. Em caráter emergencial, uma enfermeira do navio foi operada de deslocamento da retina por dois especialistas que vieram dos EUA somente para essa intervenção.

Além dos milhares de atendimentos médicos e ações educativas em várias comunidades, principalmente no Pontal da Barra e na Ufal, o Hope também contribui para a inauguração, no dia 15 de outubro de 1973, do Ambulatório do então Hospital das Clínicas, atual Hospital Universitário. Esta unidade era vinculada à Faculdade de Medicina.

A presença dos profissionais do Hope também foi decisiva para a criação do primeiro curso superior de Enfermagem em Alagoas, autorizado a funcionar no dia 1º de novembro de 1973 pelo Conselho de Ensino e Pesquisa da Ufal.

Pelos serviços prestados, o dr. William B. Walsh recebeu no dia 13 de novembro, no plenário da Assembleia Legislativa, que funcionava provisoriamente na Associação Comercial, o título de cidadão honorário de Alagoas e o de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Alagoas.

Dr. William B. Walsh, do Hope, na Assembleia Legislativa, recebe o título de cidadão honorário de Alagoas e o de Doutor Honoris Causa da Ufal (Foto: Reprodução)