Cidades

Cresce número de rodoviários adoecidos em Alagoas em decorrência de assaltos

Rotina de violência faz trabalhadores desistirem da atividade ou se afastarem após diagnóstico

Por Tribuna Independente 03/04/2017 14h58
Cresce número de rodoviários adoecidos em Alagoas em decorrência de assaltos
Reprodução - Foto: Assessoria

Estupro. A vítima, uma rodoviária que trabalha há oito anos como cobradora numa empresa de ônibus na cidade de Maceió. Ela que não gosta nem de pensar no assunto, imagine expor a situação. Não quis ser identificada e tão pouco retornou às atividades depois do incidente.

O diretor de saúde do Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário do Estado de Alagoas (Sintro), Alexandre Sobrinho, foi quem relatou o episódio dramático para a Tribuna Independente. E, resumiu: “Ela está traumatizada com o episódio”.

Não é para menos. A cobradora foi atacada por um homem em um ponto de ônibus ao sair para o trabalho na sua rotina. Ela esperava a condução para seguir até a garagem dos coletivos, onde era o seu ponto de partida para o trabalho de todos os dias.

“Ainda era madrugada. A rua estava deserta e esse homem a atacou covardemente. Desde o primeiro momento em que ficamos sabendo, estamos acompanhando o caso dela, registrado no dia 15 de fevereiro passado. Agora, ela está sendo tratada por profissionais de saúde, principalmente psicólogos, para amenizar as sequelas sofridas pelo trauma”, contou o diretor.

De acordo com Sobrinho, a polícia já está de posse das câmeras de segurança do entorno do ponto de ônibus para que a investigação leve à prisão do suspeito. “A polícia está no encalço dele. O exame de conjunção carnal da vítima de estupro deu positivo. Não podemos aturar crimes deste tipo contra ninguém”, desabafou.

Outra vítima, também cobradora, conta o drama que sofreu há alguns dias. Letícia Antunes da Silva, de 28 anos, foi alvo de assaltantes três vezes. Ela frisou que já pensou em desistir várias vezes desta função. “Fui intimidada pelo meliante com uma faca na minha cintura. A sensação de impotência é horrível. Ele queria o meu celular e o dinheiro da renda do caixa. O ladrão subiu para roubar e eu fui a vítima. Estava transtornado”, conta.

De acordo com Letícia, das outras vezes os bandidos eram adolescentes e o que mais a impressionou é que todos estavam armados. Ela lembra que um deles chegou a atirar dentro do ônibus e, após efetuar o roubo, fugiu. “Fiquei tão nervosa que desmaiei”, revelou.

A ousadia dos ladrões é tanta que alguns chegam a percorrer todo o itinerário e até dormir antes de cometer o ilícito. “A gente pensa que nunca vai acontecer, mas quando ocorre é ruim demais. Meu pai é rodoviário e também já foi assaltado pelo menos umas 13 vezes. Foi agredido com um soco no rosto porque estava nervoso. E sempre roubam pertences, além de dinheiro da gente e dos passageiros”, completou.

Para ela, acabou a tranquilidade. Não há mais paz e o trabalho é desempenhado porque precisa do dinheiro. “Antes, saía de casa sem medo e por amor, mas, agora, é precisão mesmo”, enfatiza.

“Ficamos a mercê da violência. Tenho um filho de 8 anos e preciso sustentá-lo, embora passe por sustos e situações estressantes. Nunca pensei em parar, porque quando acordo de madrugada para trabalhar e olho meu filho vejo que ele é a minha maior motivação”, confessa Letícia.

“Não vou dizer que é fácil. Fiquei perturbada psicologicamente por conta desses assaltos. Vivo assustada e com dores de cabeça tensionais que só passam quando chego em casa. Vivo cismada de tudo e de todos. Basta alguém me tocar para fazer uma simples pergunta e já é motivo de me assustar. Estou fragilizada com tantos assaltos”, confessa a cobradora.

Profissão é a segunda mais estressante do País, indica pesquisa

O medo paralisa. Não saber o que vai acontecer a cada parada de ônibus é uma angústia presente na rotina diária dos rodoviários que trabalham a mercê da violência, principalmente a física e a mental. Uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Saúde do Trabalhador da Universidade de Brasília (UnB) constatou que a depressão e dores nas costas estão entre as principais causas de afastamento do trabalho de motoristas e cobradores de ônibus no Brasil. O estudo teve como base a análise do número e os motivos dos atestados concedidos por mais de 15 dias pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).

O risco está tão presente que “são raros os rodoviários que não tenham sido vítimas de assalto no exercício da profissão”, afirma o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários de Alagoas (Sinttro/AL), Écio Ângelo Marques. Segundo ele, uma pesquisa recente realizada em São Paulo apontou os rodoviários como a segunda profissão mais estressante do País, atrás apenas dos policiais militares.

(Foto: Sandro Lima)

De acordo com o Sinttro, pelo menos 5% dos rodoviários de Maceió procuram ajuda psicológica para tratar estresse decorrente da atividade

Em Maceió, dos 3.500 rodoviários - entre motoristas, cobradores e fiscais -, pelo menos 5% procuram ajuda psicológica para tratar o estresse decorrente de assaltos, queixas dos passageiros e da tensão do trânsito. Desses, 2% são afastados do trabalho, revela Marques.

“A principal queixa são os assaltos. Tem assaltante que mostra a arma, pega o dinheiro e vai embora. Mas têm outros que já chegam estressados, com arma na mão, agredindo cobrador e passageiros, fazendo arrastão. E isso, não tenha dúvida, causa um trauma psicológico no rodoviário”, relata Marques, acrescentando que, geralmente, os assaltantes usam da violência para agir com rapidez, intimidar todo mundo e sair logo da situação.

“Além disso, os rodoviários também estão sujeitos a levar um tiro no meio do expediente”, completa.

(Foto: Sandro Lima)

"São raros os rodoviários que não tenham sido vítimas de assalto no exercício da profissão”

ÉCIO ÂNGELO MARQUESPRESIDENTE DO SINTTRO

Marques contou que quando há uma situação de assalto, os rodoviários ficam um dia em casa para descansar e esse dia é abonado. Já quando se trata de uma ameaça, o sindicato pede de imediato a mudança de itinerário.

Muitos trabalhadores abandonam ofício por conta dos riscos

Os rodoviários mais antigos e mais experientes aguentam um pouco mais o estresse e a tensão do dia a dia. Porém, os mais jovens não suportam a pressão e abandonam a profissão com um ano de trabalho por causa da violência diária. A cada três meses, cerca de 80 rodoviários deixam o emprego devido aos assaltos.

Francisco Paulino que o diga. Ele tem nada mais nada menos do que 22 anos na função de cobrador e já passou por vários sustos durante a atividade. Casado e com um filho, Paulino já pensou em se desligar do emprego, mas a falta de oportunidade e o pouco estudo o fazem não pedir demissão do serviço.

“Há uma dificuldade tremenda de se encontrar um emprego e para quem não tem estudo fica ainda mais complicado. Correr atrás do tempo não dá mais. Então é se submeter entregando nas mãos de Deus o dia de trabalho e seguir adiante”, ressalta.

(Foto: Sandro Lima)

Com 22 anos na função de cobrador, Francisco Paulino já passou por cinco assaltos

Paulino já foi assaltado cinco vezes, inclusive a última recentemente. Ele contou ainda que na maioria dos assaltos os bandidos usam arma de fogo para intimidar e, se der bobeira, atiram em quem tiver dentro do transporte.

Perguntado se alguma vez procurou atendimento psicológico, Paulino foi enfático, ao afirmar que desabafa suas angústias no colo da família. Ao mesmo tempo confessa que tem certa resistência em procurar atendimento terapêutico. “Saio tão cansado das viagens que quando termina o meu horário quero ir para casa. Já pensei em ir conversar com um profissional da área, mas fico sem coragem”, frisou.

De acordo com Écio Marques, as regras das empresas impostas aos rodoviários muitas vezes são duras e quem depende do emprego para sustentar a família tem que aceitar o que é imposto. “O rodoviário está submisso às regras da empresa e ela [a empresa] pode mudar de horário quando achar necessário. O profissional pode sair de casa às 2h30 da manhã para trabalhar, ou pegar às 11h, e chegar tarde da noite em casa”, denuncia o sindicalista sobre a dura rotina imposta aos profissionais.

Número de assaltos na capital cresce quase 18%

A preocupação da categoria dos rodoviários em relação à violência no trabalho não é à toa, uma vez que o número de assaltos aos coletivos tem aumentado a cada dia. Segundo dados do Sinttro/AL, em 2015 foram registrados 773 assaltos e esse número subiu para 942 em 2016, um aumento de 17,94%. Até a segunda semana de fevereiro, 29 assaltos foram registrados na capital alagoana, um drama cotidiano que gera insegurança para esses trabalhadores.

No País, uma pesquisa do Conselho Nacional de Transportes (CNT) revelou que de cada 100 motoristas, 30 já foram assaltados nos últimos dois anos somente dentro das cidades. Alguns estados, por exemplo, já adotaram usar detector de metal para inibir a ação dos criminosos.

(Foto: Sandro Lima)

De acordo com o Sinttro, foram registrados 942 assaltos a ônibus na capital no ano passado contra 773 em 2015

Para o motorista Alan de Lima, há quem diga que seja mais seguro circular pelas ruas do que dentro de um ônibus. “Nesses oito anos de profissão, fui assaltado uma vez. Na semana passada, o ladrão estava armado com um revólver e ameaçava atirar. Sei que é perigoso, tenho muito medo, é um drama sair de casa. Minha esposa não quer que eu continue. Pede para fazer uma faculdade e melhorar de vida, mas tenho casa e duas filhas para sustentar. Emprego está difícil, então tenho que me submeter: é joelho no chão e oração para suportar a pressão da violência. Aqui fora, tem passageiro que diz sentir mais medo quando está dentro de um coletivo do que nas ruas. Fazer o quê?”, revela, o rodoviário, com os olhos marejados.

Linhas mais perigosas são as que cruzam o Mutange

O diretor de saúde do Sintro/AL, Alexandre Sobrinho, salienta que as linhas que oferecem mais perigo aos rodoviários e passageiros são as que cruzam o bairro do Mutange, local onde há um maior número de assaltos registrados até fevereiro deste ano. Ele atesta que de umas semanas para cá, a incidência de assaltos a ônibus migrou para a empresa Veleiro, que circula pelos bairros do entorno da Lagoa Mundaú.  

“A polícia ostensiva faz o trabalho dela, mas infelizmente a Justiça solta. Informações davam conta de que um homem com uma faca estava assaltando com recorrência em pontos específicos da cidade. Policiais militares prenderam, porém, em menos de 24 horas, o autor dos delitos em ônibus estava de volta às ruas”, lamenta Sobrinho.

(Foto: Sandro Lima)

"A polícia ostensiva faz o trabalho dela, mas infelizmente a Justiça solta”

ALEXANDRE SOBRINHODIRETOR DE SAÚDE DO SINTTRO

Para o diretor, as abordagens policiais não deveriam se limitar aos ônibus, mas também aos pontos de embarque e desembarque de passageiros, porque, segundo ele, os criminosos se infiltram entre os passageiros em pontos de ônibus movimentados e assim se aproveitam para cometer o delito. “Os meliantes se aproveitam de pontos de ônibus de centros de compras, onde há maior aglomeração de pessoas”, alerta.

“Os rodoviários sabem quais são esses pontos e ficam com o coração na mão. Quando percebem que vai acontecer, dão um jeito de avisar à polícia. Quando não conseguem, param o ônibus e alegam que quebrou para despistar, fazendo assim com que todos desçam”, emenda.

Exposição leva a problemas físicos e emocionais

Insônia, transtorno do sono, angústia, ansiedade, síndrome do pânico, adormecimento, depressão. Estes são alguns dos transtornos físicos e psicológicos ligados ao estresse e a violência no trabalho, além do alcoolismo e do abuso de outras substâncias químicas como fuga para o problema.

Segundo a psicóloga Thaysa Martins, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o rodoviário como uma das profissões mais estressantes do Brasil, porque expõe o trabalhador a uma série de riscos à saúde como assaltos, violência física e risco de morte.

“Pessoas que passam por um Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) desenvolvem uma série de problemas, como crises agudas de ansiedade, choro recorrente, perturbação do sono, humor deprimido ou ansioso, além do estado de hipervigilância, que é quando a pessoa não dorme durante a noite e nem de dia”, explica Thaysa.

(Foto: Sandro Lima)

“O problema está quando o medo se transforma em doença”

THAYSA MARTINSPSICÓLOGA

“O profissional não consegue relaxar, se assusta com tudo e revive psicologicamente a situação de violência dia após dia”, completa a psicóloga, revelando que há casos em que os rodoviários não conseguem retornar ao trabalho, mesmo após acompanhamento médico e psicológico, como é o caso descrito no início desta reportagem.

Outra indicação dos transtornos incapacitantes que geram riscos aos rodoviários é o pânico e a depressão. A psicóloga explica que o profissional fica mais irritado ao volante, sendo um risco para ele e para os passageiros, uma vez que pode causar um acidente, podendo desenvolver problema de concentração, hipertensão arterial e problemas dermatológicos. A especialista frisa que a concentração é primordial para o exercício da função e os indivíduos vão desenvolvendo sintomas isolados.

“Os pacientes se enchem de remédio para todos os sintomas, mas para a causa quando não há tratamento não resolve o problema. E como permanecem no ambiente em que o trauma foi desencadeado, muitas vezes acabam optando por sair do mercado de trabalho”, declarou.

ACOMPANHAMENTO

Thaysa Martins enfatizou ainda que, nesses casos, o tratamento deve ser acompanhado por uma equipe de multiprofissionais, formada, principalmente, por um médico e um psicólogo, para que o paciente possa ser reinserido no mercado de trabalho novamente.

“O tratamento é de médio e longo prazo e o atendimento à vítima deve preconizar a situação de estresse através de testes que darão respostas de enfrentamento mediante o acontecido. Com isso, é estabelecido um prognóstico e um plano de intervenção”, destacou a psicóloga, reforçando que nem o médico e nem o psicólogo devem trabalhar sozinhos. A mulher tem um percentual maior de desenvolver mais problemas mentais que os homens e isso não tem nada a ver com ‘sexo frágil’. Variações hormonais e alguns fatores de risco contribuem para esse percentual maior, porém não é uma regra”, ressaltou a especialista.

FENÔMENO

Um fenômeno observado nos estudos terapêuticos é que o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) pode surgir mesmo que a violência não tenha sido diretamente com o indivíduo, mas com alguém próximo a ele, como, por exemplo, um colega da mesma empresa ou alguém que faça o mesmo itinerário que o rodoviário. “O problema está quando o medo se transforma em doença”, alerta Thaysa Martins.

Apesar dos traumas vividos pelos rodoviários, vítimas do estresse decorrente da violência presente no dia a dia da profissão, as empresas de transportes rodoviários podem atuar para prevenir ou minimizar as consequências traumáticas dos seus funcionários.

Para a psicóloga, o ideal é que as próprias empresas tenham, ao menos, um profissional da Psicologia à disposição dos rodoviários. Este profissional trabalharia em duas frentes: a preventiva, identificando a necessidade de atendimento; e a de intervenção, quando ocorre a situação de violência.

“As empresas precisam alertar para a necessidade de um programa de prevenção, promovendo ferramentas para transformar esse profissional mais resiliente para lidar com a violência inerente à profissão e se reestabelecer sem grandes prejuízos emocionais”, pontuou.

O custo-benefício para a empresa que dispor de um psicólogo é muito maior, pois a taxa de rotatividade é muito grande e isso não é bom para o empregador que promove um treinamento para o rodoviário que vai ficar pouco tempo naquele local de trabalho.

PROBLEMA SOCIAL

Segundo Thaysa Martins, a não inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho após sofrerem um trauma, em especial os rodoviários, é um problema que vai mais além do pessoal ou empresarial, é um problema social e econômico. “Não podemos olhar a violência como um fato isolado da Segurança Pública. Se houvesse melhoria na educação, oportunidade de emprego, boas condições de moradia, onde esse assaltante estaria? Faltam políticas públicas mais eficientes”, criticou a psicóloga.