Saúde

Huntington: Feira Grande é o segundo município no ranking brasileiro de incidência da doença

Alta incidência da doença rara pode encontrar explicações nas quantidades elevadas de casamentos consanguíneos

Por Valdete Calheiros – colaboradora / Tribuna Independente 30/09/2023 16h38 - Atualizado em 01/10/2023 08h41
Huntington: Feira Grande é o segundo município no ranking brasileiro de incidência da doença
Três municípios do país com maior incidência da Doença da Huntington - Foto: Reprodução

O município alagoano de Feira Grande, distante 143 quilômetros de Maceió, ocupa o segundo lugar no Brasil nas estatísticas sobre a Doença de Huntington, com uma média de 10,4 casos a cada 10 mil pessoas, de acordo com a Associação Brasil Huntington (ABH). A prevalência estimada da doença é de 1 paciente a cada 100 mil nascimentos.

Com uma população superior a 22 mil habitantes, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Feira Grande, no Agreste alagoano, é constantemente citado nos mais respeitados estudos genéticos sobre a elevada incidência da Doença de Huntington – uma entre as oito mil doenças raras existentes no Brasil e no mundo.

Uma dessas pessoas acometidas pela Doença de Huntington em Feira Grande é Nadja Maria de Lira, 53 anos. Os primeiros sintomas surgiram há 10 anos. Além dela, três irmãos também possuem a doença, sendo dois homens e uma mulher. A herança genética veio da família materna, segundo a única filha e cuidadora de Nadja Maria, Natany Carolaine Lira Ramos, 26 anos. Ela se divide entre os cuidados com a mãe, os tios e os dois filhos, uma menina de oito anos e um menino de dois. O garoto tem TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade).

“Apesar da doença impossibilitar minha mãe de fazer as coisas, ela se mostra, dentro do possível, uma pessoa ativa, mas com várias dificuldades na coordenação motora e em todo sistema nervoso. Ela cai muito e derruba muito as coisas por não ter força suficiente nas mãos”, contou a filha Natany Carolaine.

Os três tios são solteiros, não têm filhos e apresentam as mesmas limitações que todos os pacientes de Huntington, salvo as individualidades de cada um. “Minha tia é o caso mais complicado. Tem os sintomas mais fortes, nega a doença e se recusa a tomar os remédios”, comparou.

Nadja Maria de Lira, 53 anos, convive com a doença há uma década (Foto: arquivo pessoal)

Além das limitações causadas pela Doença de Huntington, a família de Nadja Maria ainda enfrenta as consequências financeiras impostas pela doença. Ela precisa tomar mensalmente oito tipos de medicamentos, metade deles específicos para tentar minimizar os sintomas da doença. Os medicamentos saem ao custo total de R$ 350. Restam-lhe, então, R$ 250 – da pensão de R$ 600 que recebe – para absolutamente todas as despesas restantes.

“Não recebemos nenhuma das medicações do poder público. Apesar de não ter condições de trabalhar devido à doença e termos mostrado todos os laudos médicos, inclusive o exame genético, o INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] atestou como indeferido o pedido de aposentadoria”, afirmou indignada ao completar que o exame genético da mãe só foi feito porque amigos ajudaram a pagar. Por falta de condições financeiras, Natany Carolaine não realizou seu exame e não sabe se irá ou não desenvolver a doença no futuro. A Doença de Huntington é uma doença genética hereditária com gene dominante. Basta um dos genitores ter o gene que metade dos filhos herdarão a enfermidade.

Sintomas da doença surgem entre 30 e 50 anos de idade

A Doença de Huntington é uma doença rara que afeta o sistema nervoso central, resultando em alterações nos movimentos, comportamento e função cognitiva.

Geralmente os primeiros sintomas e diagnóstico acontecem na fase adulta, entre os 30 e 50 anos de idade. Existem ainda as formas juvenis (antes dos 20 anos) e tardias (após os 55 anos). Raramente, os sintomas podem aparecer antes dos 10 anos (Doença de Huntington infantil).

A Doença de Huntington é confundida com doença de Parkinson, esquizofrenia, doença de Alzheimer e até abuso de substâncias, em especial o álcool. Frequentemente, os pacientes da doença são identificados como se fossem bêbados. “Devido a todo o estigma social, a taxas de suicídio entre os pacientes da Doença de Huntington é de seis a oito vezes maior que na população em geral”, explicou o neurologista Gustavo Franklin, formado pelo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, um dos especialistas brasileiros no assunto.

Segundo o médico, “nos sintomas motores, o mais característico – e geralmente o primeiro a se manifestar – é a coreia que atinge 90% dos pacientes. “Coreia que vem da palavra grega choreia, que significa dança”.

“Os sintomas motores da Doença de Huntington afetam notavelmente a postura, o equilíbrio e a marcha que geram desequilíbrio e dificuldade para se alimentar, andar e realizar outras atividades diárias. Também pode haver distonia (rigidez) e bradicinesia (lentificação de reflexos). Esses sintomas ocasionam quedas, dificultam a execução de movimentos finos como pegar copos, se alimentar e se vestir, assim como prejudicam a fala e a deglutição”, acrescentou o neurologista.

Os sintomas comportamentais são depressão, TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), irritabilidade, apatia, ansiedade e impulsividade. Mudanças comportamentais podem incluir explosões agressivas, mudança de humor e afastamento social.

Os sintomas cognitivos, explicou ele, inicialmente não envolvem memórias, mas funções como a capacidade de planejamento e fluência verbal são afetadas, se acentuando com o tempo até se caracterizarem como demência.

A maioria das pessoas com Doença de Huntington não morre como resultado imediato da doença, mas sim de complicações causadas pelo estado de fragilidade do corpo, particularmente por asfixia em consequência de o doente se engasgar, por infecções (pneumonia, por exemplo) e por parada cardíaca.

No mundo, há três medicamentos que ajudam a minimizar os sintomas da coreia na Doença de Huntington: Tetrabenazina, Valbenazina e Deutrabenozina. Apenas o último está disponível no Brasil. O preço é bastante elevado. O tratamento mensal chega a custar R$ 20 mil. O medicamento não está disponível pelo SUS. “Até o momento, a judicialização é o único caminho que leva o paciente ao medicamento”, detalhou Gustavo Franklin.

Segundo a Defensoria Pública da União (DPU), em Alagoas, de janeiro até a última terça-feira, foram registrados 299 procedimentos administrativos solicitando medicação e tratamento para doenças raras. Do total, dois foram pedidos específicos relacionados à Doença de Huntington. Um já teve ação ajuizada.

Desde o início de 2023, a DPU atendeu ao menos 280 pessoas, para garantir algum tipo de medicação, suplemento, tratamento e internação.

Um drama pessoal e familiar que virou causa social pelos pacientes de Huntington

Paulista por acaso, mas com firmes raízes em Feira Grande, cidade dos seus pais e parentes próximos, a psicóloga Tatiana Henrique Santos, 30 anos, viveu até poucas semanas sem saber se era ou não portadora do gene da Doença de Huntington.

Até que o desejo da maternidade a encorajou a fazer o exame genético. O exame deu negativo para a mutação e ao descobrir que não irá desenvolver a doença, ela decidiu continuar fazendo, com ainda mais engajamento, o que já faz há anos: dedicar sua vida pessoal e profissional à causa dos pacientes de Huntington.

Tatiana Henrique viaja o Brasil todo contando sua história de vida e experiência profissional como psicóloga e coordenadora da Associação Brasil Huntington, uma associação voluntária e sem fins econômicos, com a missão de apoiar e orientar os pacientes e as famílias com a Doença de Huntington. Por conta do histórico familiar, ela se envolveu com a causa e é voluntária da Associação há sete anos.

"Falar sobre Huntington é um ato de coragem! Os pacientes são sempre estigmatizados, o que causa dor maior do que a doença propriamente dita", afirma Tatiana Henrique, psicóloga (Foto: Jonas Adriano / Divulgação)

Fundada em 1997, a ABH mantém cadastros de famílias com Doença de Huntington em todo o Brasil. Atualmente, os únicos dados gerais disponíveis sobre a doença concentram-se nestes registros.

A psicóloga cresceu assustada e sem entender a doença que acometia os membros da sua família. Não demorou muito e passou a ser cuidadora de muitos deles, da infância até o início da vida adulta.

“Se ter uma doença rara nas grandes cidades já não é fácil, imagine então no interior. Cresci e sofri todos os estigmas possíveis e inimagináveis. Em Feira Grande, a Doença de Huntington é conhecida até hoje como a ‘doença do nervosento’, numa alusão aos ataques de nervos apresentados pelos pacientes. Muitos dos quais, eram criados acorrentados, enjaulados, numa época relativamente recente”, recordou ao contar que a avó paterna teve 12 filhos, seis dos quais com a Doença de Huntington.

No Brasil, não há dados oficiais sobre a Doença de Huntington. As doenças raras não são de notificação compulsória no Ministério da Saúde. Entretanto, de acordo com levantamento da ABH, o número de pessoas portadoras do gene da doença é de 20 mil a 25 mil e a quantidade de pessoas em risco é estimada de 75 mil a 120 mil.

Atualmente, os casos mais recorrentes são nos municípios de Senador Sá (Ceará, onde existem 23,3 casos para cada 10 mil habitantes), Feira Grande (Alagoas 10,4/10 mil) – onde vive grande parte da família de Tatiana Henrique – e Ervália (Minas Gerais, 7,2/10 mil). No Ceará há ainda grande incidência nas cidades de Pires Ferreira, Cruz, Ibiapaba.

A estimativa é de que existam de 65 mil a 95 mil pessoas em risco de sofrerem da Doença de Huntington. No Brasil, segundo a ABH, existem 3.864 famílias cadastradas com familiares com a Doença de Huntington. Alagoas concentra 56 dessas famílias, cerca de 30 destas estão em Feira Grande. Há outras 117 cadastradas sem especificar o estado do Brasil.

Odontóloga pesquisou doença por conta própria

A odontóloga feira-grandense Maria Aparecida Santos de Souza Alencar é engajada nas pesquisas sobre a Doença de Huntington. Ela integra a ABH desde o início.

“Um dos nossos objetivos é tornar a Doença de Huntington cada vez mais conhecida, através de informações referentes aos estudos e leis que possam contribuir com os pacientes e familiares”, destacou.

Aparecida Alencar, natural de Feira Grande, percebeu alta incidência da doença no município (Foto: Arquivo pessoal)

Por conta própria, Aparecida Alencar resolveu investigar quantos casos havia no município de Feira Grande entre 2001 e 2003. Depois construiu um heredograma [uma representação gráfica, também conhecida como árvore genealógica], onde constavam seis gerações de uma mesma família com casos de Doença de Huntington. Na família de Aparecida Alencar, não há casos da doença.

Aparecida Alencar acredita que a elevada incidência de casos da Doença de Huntington em Feira Grande encontre explicação na grande quantidade de casamentos consanguíneos. “Como se trata de uma doença genética, as possibilidades de nascerem descendentes com a doença aumentam”, resumiu ao completar a fala sobre a dificuldade de os profissionais de saúde fecharem o diagnóstico.

Segundo Aparecida Alencar, desde 2005 as sucessivas gestões municipais de Feira Grande têm conhecimento sobre a elevada taxa de incidência da Doença de Huntington na cidade. A odontóloga já apresentou suas pesquisas no Rio de Janeiro, em Lisboa, Praga e Viena.

A reportagem da Tribuna Independente procurou a Prefeitura de Feira Grande e não obteve retorno das solicitações de entrevistas.

Dia nacional em conscientização à Doença de Huntington

Uma das conquistas para pacientes, familiares, cuidadores e comunidade médico-científica foi a criação do Dia Nacional da Conscientização da Doença de Huntington – dia 27 de setembro – instituído pela lei nº 5060/2013. A data tem como objetivo elevar o conhecimento sobre a Doença de Huntington. A data foi celebrada pela primeira vez no Brasil no último dia 27.

(Imagem: Divulgação)