Política

Morte de Vladimir Herzog completa 50 anos e relembra vítimas da ditadura em Alagoas

Historiador e familiares reforçam necessidade de reparações nos crimes contra operário Manuel Fiel Filho, Gastone Beltrão, Jayme Miranda, Odijas Carvalho, Manoel Lisboa, entre outras vítimas dos militares

Por Emanuelle Vanderlei – colaboradora / Tribuna Independente 25/10/2025 09h10
Morte de Vladimir Herzog completa 50 anos e relembra vítimas da ditadura em Alagoas
Vladimir Herzog ficou conhecido mundialmente como um símbolo da luta contra a ditadura militar brasileira - Foto: Arquivo / Instituto Vladimir Herzog

Há 50 anos, em 25 de outubro de 1975, o Brasil viveu um dos crimes mais emblemáticos da ditadura militar: o assassinato do jornalista Vladimir Herzog dentro das dependências do DOI CODI, que era órgão de repressão da ditadura militar brasileira (1964–1985), responsável pela prisão, interrogatório, tortura e morte de opositores políticos. Com ampla repercussão, o crime expôs aos olhos de todo o país a crueldade que acontecia nos porões do regime ditatorial.

A reação popular que se sucedeu a isso teria tido um papel fundamental no enfraquecimento da ditadura militar, que só acabou 10 anos depois, em 1985. Em Alagoas, aquele período teve movimentações com reflexos que são sentidos até hoje, não apenas no campo político, mas também na economia e na cultura.

Anderson Almeida, professor de história da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), chama atenção para o nome de um alagoano que sofreu um crime parecido, mas não teve tanta visibilidade quanto Herzog.

“Tem um alagoano assassinado também em São Paulo, que é no mesmo DOI CODI que Herzog foi morto, que é o Manuel Fiel Filho. O Manuel Fiel Filho era um operário, trabalhava em São Paulo alguns anos, mas é alagoano e foi dado como suicídio também, igual Vladimir [Herzog]. Na realidade foram três ali, um militar chamado José Ferreira de Almeida, um policial militar que já estava na reserva, em agosto de 1975. Depois veio o Herzog, ainda em 75, em outubro, e em 76, Manuel Fiel Filho, no início do ano. Alagoano DOI CODI de São Paulo”, relembra o professor de história em contato com a Tribuna Independente.

A morte de Herzog marcou o país porque a primeira versão apresentada pelos militares, era de suicídio, e até uma foto da cena chegou a ser divulgada, mas o próprio autor da foto confessou posteriormente que tudo seria uma farsa. O instituto Vladimir Herzog resgata o que aconteceu naquele momento.

“Manifestações populares, principalmente de estudantes, começam a eclodir, como não ocorria desde 1968. Uma semana depois do assassinato, mais de 8 mil pessoas participaram de um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, concelebrado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright. O fato mobilizou não apenas importantes setores da oposição, mas até o conservador empresariado paulista. Começava aí o processo que culminaria na redemocratização do País”.

Em janeiro de 1976, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo encaminhou à Justiça Militar o manifesto “Em nome da verdade”, subscrito por 1.004 jornalistas. Era a primeira vez, naquele período de forte censura e repressão, que se ousava contestar publicamente a versão oficial de suicídio e reclamar a completa elucidação dos fatos. Em 1978, a Justiça brasileira, em sentença proferida pelo juiz Márcio José de Moraes, condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog.

Toda a repercussão do caso só foi possível porque se tratava de um profissional conhecido em todo o país. Um outro caso muito parecido, que aconteceu com um operário alagoano no mesmo local, não tem a mesma visibilidade.

O historiador resgata alguns dos fatos mais relevantes aqui em Alagoas naquele período.

“Em 1975 a gente estava no primeiro ano do governo de Divaldo Suruagy. No ano seguinte, 1976, é o início do processo de exploração da Salgema em Alagoas, que depois a Salgema vai virar Braskem, que tem todo esse crime que a gente está acompanhando hoje. Então marca muito a articulação dos empresários com a ditadura, foi a ditadura que autorizou a exploração da Salgema. Eu acho que do ponto de vista econômico é um dos símbolos mais importantes. A Salgema foi autorizada em 1970, mas começou a exploração em 76, então eles estavam em negociações, autorizando essa exploração que muitos empresários alagoanos se deram bem”.

No campo da cultura, por outro lado, a resistência ao regime trouxe frutos que impactam positivamente até hoje. “É o início do Festival do Cinema de Penedo, porque também demonstra, uma parte dos grupos culturais tentando resistir pelo cinema”, disse Anderson. Ele faz um paralelo entre as classes contrastantes. “Os grupos das elites econômicas alagoanas, de certa forma, que apoiaram o golpe, que apoiaram a ditadura, estavam se beneficiando do que a ditadura trazia para eles. Então, tem um texto sobre o Festival de Cinema de Penedo, que começa em 75, então tem de certa forma uma movimentação de resistência cultural acontecendo”.

Produzindo pesquisas sobre a temática na Ufal, Anderson foi um dos organizadores da coletânea Pacto de Silêncio: o golpe de 1964, a ditadura e transição em Alagoas, em dois volumes, lançado em 2024 e disponível para download gratuito na Edufal. Atualmente, conduz um grupo de pesquisas sobre Ditaduras, intitulado “Coletivo Viramundo”.

Ele menciona outras perspectivas que estão sendo aprofundadas por pesquisas da universidade. “A gente está trabalhando, tem o professor Elias Veras, que pesquisa operações policiais em Alagoas contra a população LGBT, contra as chamadas prostitutas, porque às vezes a gente fica focado só na grande resistência, quem estava pegando em armas”.

As pesquisas enfrentam dificuldade para encontrar os arquivos. “O Partido Comunista foi todo desmantelado, a imprensa do partido foi invadida aqui em Alagoas, então a militância estava na clandestinidade, por isso que é uma pesquisa difícil de a gente mapear, como estava aqui em 74, 75. A documentação ainda está sendo consultada aos poucos com TCCs, com dissertações de mestrado, mas eu acho que as orientações do professor Elias sobre população LGBT e mulheres e que estavam correndo pela polícia militar, não é? Eles dão outro sentido a outras formas de viver no período da ditadura”, destacou o professor de história.

Comissão da Verdade teve atuação importante para cobrar reparações ao estado brasileiro

São muitas as vítimas do regime ditatorial no Brasil. Em todo o país, há pessoas que viveram o horror, ou até famílias que perderam entes queridos. Em Alagoas, a Comissão da Verdade concluiu que os alagoanos Odijas Carvalho de Souza, José Dalmo Guimarães Lins, José Gomes Teixeira, Gastone Beltrão, Manoel Lisboa de Moura e Manoel Fiel Filho foram assassinados por integrantes do regime militar. Também foi apontado que Jayme Amorim de Miranda, Túlio Roberto Cardoso e Luiz Almeida Araújo seguem desaparecidos até hoje, sem a localização dos respectivos corpos.

Gastone Beltrão lutou na organização de Marighella; família de Jayme Miranda luta para não esquecer dos desaparecidos da ditadura militar (Fotos: Arquivo)

À Tribuna Independente, o engenheiro Thomaz Beltrão relembra a história de sua irmã, Gastone Beltrão, morta em 1972. “A Gastone fazia parte da ALN, que era uma dessas organizações, Aliança Libertadora Nacional, que era do Carlos Marighella. Na época ela morava no Rio e militava lá no Rio [de Janeiro]”.

Ao longo dos anos que perdurou a ditadura militar, houve várias tentativas de enfrentamento. “Nesse processo de resistência, você teve a movimentação pacífica, movimentação através de mobilizações de massa, Diretas Já, Assembleia Nacional Constituinte, anistia ampla geral e irrestrita que mobilizou toda a população, mas isso foi precedido de uma tentativa de derrocada da ditadura de armas em punho, e muitos jovens sucumbiram e foram trucidados pela ditadura, numa correlação de forças desigual. Eles tentaram derrubar a ditadura de arma em punho”.

A alagoana voltou do Rio de Janeiro para cursar economia na Ufal, onde foi aprovada em 3º lugar. “Ela passou dois anos na Ufal estudando Economia e começou a organizar essas movimentações aqui no Nordeste. Depois ela retorna para o Rio de Janeiro, mas para fazer um casamento com o Zé Pereira, que era um outro revolucionário. Na verdade, não era um casamento, era um pacto que eles fizeram para ela adquirir a maioridade, que ela tinha 19 anos e as mulheres só adquiriam a maior idade a partir dos 21 anos ou mediante o casamento. Mas isso a gente não sabia. Meus pais foram para lá, e eles se casaram”.

Planejando se fortalecer para lutar contra a repressão, a estudante saiu do país. “O que ela utilizou, é de que ela ia terminar o curso de economia na Itália, em Roma. E na verdade eles foram para Cuba treinar guerrilha e enfrentar a ditadura militar de armas em punho. Voltaram clandestinamente e foram nessa confrontação com o exército muito mais equipado, eles foram derrotados. E muitos assassinados barbaramente, outros torturados barbaramente, uma história muito triste essa história da resistência armada”.

Gastone foi morta pelo bando do Sérgio Paranhos Fleury, que a ditadura depois afogou na Baía de Guanabara para queima de arquivo. “Provavelmente a coisa aconteceu da seguinte forma: ‘Ela vinha num carro com o marido e mais um militante, e iam para um encontro. Então, deixaram ela no supermercado em São Paulo, próximo ao Largo do Cambuci. Então, ela quando desceu, eles seguiram em frente para a reunião e ela desceu para comprar coisas para equipar o aparelho deles. Ela foi cercada pelo bando do Fleury’”.

A família entende que ela não confessaria ou entregaria companheiros. Thomaz relata. “Ela era muito pequenininha, muito franzina, ela dizia olha, eu não tenho condição de enfrentar os porões da ditadura. Se eu for detida e tentarem me prender alguma coisa, eu vou reagir, vou meter bala para frente. Provavelmente, deve ter sido o que aconteceu. Ela resistiu, ela ainda foi pega com vida, porque tem até o tiro de misericórdia depois na cabeça. Foi metralhada, mas ainda foi pego com vida e eles, provavelmente, querendo arrancar confissões, levaram o socorro para ela, mas ficaram tentando arrancar. Tem sinais de de tortura nela também”.

Depois de muita insistência, a família foi informada de que ela havia sido assassinada, mas o corpo só foi entregue anos depois. “Por causa dos sinais, as lesões, tortura. Se eles entregassem ia ser um escândalo”, disse o irmão.

Ela foi indenizada e reconhecida. E agora a gente vai pegar o novo atestado de óbito dela, o atestado de óbito verdadeiro, não aquele fajuto que deram para a gente naquela época. É uma reparação do governo Lula, foi entregue a primeira leva em São Paulo, depois vai ser Brasília e por último vai ser aqui no Recife para pegar a turma do Nordeste”.

A família de Jayme Miranda busca notícias há 50 anos. Desaparecido no mesmo ano da morte de Vladmir Herzog, após ser preso pela repressão, o advogado e jornalista alagoano é até hoje uma memória que traz dor e sofrimento, mas também motivação para luta, resistência e cobrança do Estado. Para a família, é preciso um desfecho. A jornalista Olga Miranda, filha de Jayme, relatou que mesmo com o passar do tempo, a esperança diminui e o sofrimento permanece.

O caminho escolhido foi de não deixar esquecer. “A cada decênio a gente faz um ato, porque é um ato político, e para chamamento da atenção da sociedade do governo para o problema dos desaparecidos políticos. Para que a gente possa ter reveladas as circunstâncias e a autoria desses crimes, que são crimes bárbaros”, contou Olga.