Interior

Chã Preta na história dos escravos da Palmares de Zumbi

No silêncio verde da zona dessa mata alagoana, entre a Serra do Cavaleiro e a Mata Limpa, está um pedaço esquecido da história negra do Brasil e que começa a ganhar voz

Por Wellington Santos 27/09/2025 08h15 - Atualizado em 28/09/2025 10h32
Chã Preta na história dos escravos da Palmares de Zumbi
Quilombola Francisco Simão, um descendente das serras de Chã Preta - Foto: Adailson Calheiros

Francisco Simão, 62 anos, um remanescente de quilombola, surge com seu burrinho entre árvores, arbustos e palmeiras da frondosa mata do município alagoano de Chã Preta, a 111 km da capital Maceió. Interrogado pela reportagem da Tribuna se ainda existem muitos quilombolas no entorno, Francisco responde: “Acho que deve ter uns 200 espalhados por aí na mata”, diz o quilombola viúvo e pai de dois filhos que planta inhame e batata na região.

E é justamente no silêncio verde da zona dessa mata alagoana, entre a Serra do Cavaleiro e a Mata Limpa, que está um pedaço esquecido da história negra do Brasil e que começa a ganhar voz. O escritor, advogado e folclorista alagoano Olegário Venceslau de Oliveira, 39 anos, traz à tona, com rigor histórico e paixão pelo território onde nasceu, um capítulo quase oculto da resistência africana: o Mocambo de Osenga, um quilombo ativo no século XVII, que funcionava como ponto estratégico de defesa e comunicação do famoso Quilombo dos Palmares.

Resultado de anos de intensa pesquisa em arquivos públicos, jornais da antiga província das Alagoas e relatos orais de moradores, o livro “Mocambo de Osenga: um reinado africano em Chã Preta no século XVII” será lançado na segunda quinzena de dezembro em sua cidade natal, Chã Preta.

“Esse local que nós estamos aqui agora, se você observar para o lado poente, vai ver a Serra do Cavaleiro. Dali, se avistava Palmares. Por isso Osenga era uma fortaleza”, explica Olegário durante uma visita com a reportagem da Tribuna ao sítio histórico do antigo mocambo.

Segundo o autor, Osenga abrigava 211 negros africanos que, além de se estabelecerem em comunidade, atuavam como sentinelas e informantes. A localização privilegiada – entre o litoral e a Serra da Barriga – tornava a região um verdadeiro ponto de controle: todos que buscavam alcançar Palmares passavam primeiro por ali.

Escritor Olegário Venceslau aponta onde se situava a antiga fortaleza, a Osenga, estratégica para o Quilombo dos Palmares (Foto: Adailson Calheiros)

Holandeses invasores no final do século 17 na zona da mata foram os responsáveis pela dizimação do Osenga. Alguns integrantes do mocambo conseguiram, fugir. Tanto que depois alguns voltaram e hoje há seus descendentes na região, como Francisco.

Tudo foi por volta de 1655, após os portugueses destruírem o Palmares, ou seja, entre 8 e 10 anos após.

“Zumbi sabia da importância desse caminho. Ele transformou Osenga em um campo estratégico, para atrasar ou impedir a chegada de invasores”, explica Venceslau.

A importância da localidade já era mencionada por nomes como Nina Rodrigues, Alfredo Brandão e Edison Carneiro, mas jamais havia sido aprofundada com tanta precisão documental como agora.

A FÉ ERGUIDA

NA SERRA

Um dos pontos altos do livro é a referência ao “Diário do Capitão Blaer”, escrito em 1645 pelo oficial holandês Johan Blaer, cuja expedição rumo a Palmares passou justamente por Osenga. No diário, atualmente arquivado no Museu do Louvre, em Paris, Blaer relata a queima de casas de taipa e os embates com os quilombolas da região.

“Os holandeses saquearam algumas casas aqui, e depois subiram rumo à Serra do Cavaleiro. De lá, conseguiram ver o platô da Serra da Barriga, onde estava o núcleo de Palmares”, detalha Olegário.

Igreja de São Lázaro, patrimônio dos quilombolas, construída em 1904 (Foto: Adailson Calheiros)

O livro traz à luz não apenas a geopolítica da resistência negra, mas também os aspectos culturais, étnicos, religiosos e sociais do povoado. O nome “Osenga”, segundo o autor, tem origem angolana e significa fortaleza, o que se encaixa com a geografia da região.

“Aqui era muito mais que um esconderijo. Era um reinado africano com organização própria, religiosidade, resistência e memória”, afirma.

No local, ainda hoje, permanece erguida a Capela de São Lázaro, construída por descendentes de quilombolas em 1904, como símbolo de fé e proteção. “Essa capela é o último marco físico do mocambo. São 121 anos de história viva”, reforça o escritor.

Olegário Venceslau: a memória como missão

Natural de Chã Preta, Olegário é advogado há mais de uma década e tem longa trajetória na cultura popular. Já presidiu a Comissão Alagoana de Folclore e a Academia Alagoana de Cultura, e atualmente integra o Instituto Histórico e Geográfico de três estados brasileiros, além da Academia Maceioense de Letras.

Olegário Venceslau vai lançar livro revelando importância de mocambo no município de Chã Preta (Foto: Adailson Calheiros)

Desde cedo, conviveu com nomes como Pedro Teixeira e Laurinda Vasconcelos, referências no folclore alagoano. Sua produção literária inclui obras como “Duas Lanças – 100 anos de Cavalhada em Chã Preta”, “Cônego Jatobá – um apóstolo em Viçosa”, “Reisado Não Dança Mais”, além de diversas coletâneas de poesia, memória política e ensaios históricos.

UM LIVRO PARA REESCREVER A HISTÓRIA

Com o lançamento de “Mocambo de Osenga”, Olegário oferece ao Brasil a chance de reconhecer e reverenciar uma parte esquecida da história negra, que pulsa ainda hoje nas serras e vales de Chã Preta. O livro promete ser não apenas um documento histórico, mas um ato de justiça narrativa, trazendo à luz vozes silenciadas por séculos.

“Contar a história de Osenga é devolve protagonismo aos que resistiram, viveram e sonharam aqui, mesmo sob a sombra da escravidão”, conclui o autor.

Serviço

Lançamento do livro: “Mocambo de Osenga: um reinado africano em Chã Preta no século XVII”

Autor: Olegário Venceslau de Oliveira

Data prevista: Segunda quinzena de dezembro

Local: Cidade de Chã Preta, Alagoas