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Fotógrafo fala sobre ensaio ganhador de concurso e como a arte pode ser libertadora

Roger Silva levou primeiro lugar na microbolsa El País e Artisan com série de autorretratos idealizados a partir da morte de uma empregada doméstica vítima de Covid-19

Por Texto: João Dionisio Soares - Editor de D&A com Tribuna Independente 29/08/2020 08h33
Fotógrafo fala sobre ensaio ganhador de concurso e como a arte pode ser libertadora
Reprodução - Foto: Assessoria
“Nos jogaram nas periferias do País achando que não iríamos dar conta, daí estamos aqui para transformar”, define Roger Silva quando indagado  como é fazer arte e ser morador de um bairro taxado de periférico, adjetivo que carrega e acarreta uma série de estereótipos preconceituosos impostos pela sociedade.  Recém-vencedor do concurso promovido pelo El País e apoiado pelo Favela em Pauta, com uma série de autorretratos que lembram a opressão sofrida pelo homem negro, Roger Silva falou com o D&A e fez uma análise de sua carreira seu papel enquanto artista e da cena fotográfica em Alagoas, que vem cada vez mais ganhando robustez.    Como a fotografia entrou na sua vida e o quanto ser historiador significa nos trabalhos que você faz? Desde a adolescência fotografo, comecei fazendo retratos no interior de Pernambuco, depois de comprar uma câmera analógica com meu pai, quando vinha nas férias da escola para Maceió. Fotografava amigos e familiares, foi amor a primeira vista. Mas, o trabalho e as dificuldades me afastaram da fotografia por um longo tempo, mais de vinte anos depois é que consegui comprar uma câmera, já na universidade com 34 anos de idade. O curso de História mudou minha percepção do mundo e das coisas, foi na graduação que comecei a enxergar a fotografia como algo importante e carregado de sentidos. De lá para cá não desgrudo mais da minha câmera. Meus trabalhos são carregados desse sentido histórico. Sem a História minhas fotografias seriam outras, foi com ela que aprendi a ser quem sou, de onde vim e porque as coisas são tão mais difíceis para pessoas como eu. A História e a fotografia me libertaram. Você é um morador de um bairro dito periférico, um bairro marginalizado, carregado de estereótipos impostos! Isso permeia seu trabalho como fotógrafo? Sempre morei em periferias, aliás, o Brasil é uma imensa periferia, com alguns oásis que não foram feitos para nós. Mas isso não nos diminui, pelo contrário mostra como somos fortes e resignados, somos nós com nosso trabalho duro que construímos tudo isso aqui. Nos jogaram nas periferias do País achando que não iríamos dar conta, daí estamos aqui para transformar. É isso que fazemos de melhor, transformamos as adversidades em esperança. Ao longo da História do Brasil sempre foi assim, nos expulsam das regiões que crescem com a especulação imobiliária, nos colocam longe em lugares inóspitos, e nós chegamos lá e transformamos a dor em alegria. Engolimos o choro e seguimos em frente. Não é fácil, nunca foi, mas nós não ficamos de braços cruzados. Minha fotografia periférica é sobre isso, tem relação com essas ideias, não temos material suficiente, ninguém acredita em nós, mas não desistimos. Porque os nossos antepassados não desistiram, somos filhos de Zumbis, Dandaras e Alqualtunes.  É essa imagem que carregamos mesmo na dor seguimos sobrevivendo e criando saídas para vida. Era para ser diferente, mas ainda estamos em construção do nosso ser e poder. Tem muita gente na periferia que não se identifica com sua negritude, isso é triste, mas sabemos como é doloroso esse processo. Minha fotografia também é sobre isso. Está tudo junto e misturado, não é simples, nunca foi, nem será. Fala do processo criativo da série Banzo e a influência da pandemia de Covid-19 sobre ele! Na verdade Banzo não foi pensado para o concurso, quando soube da inscrição, já estava com ele pronto. Resolvi inscrevê-lo porque estava dentro dos parâmetros pedidos no regulamento. Desenvolvi Banzo na sala da minha casa no Eustáquio Gomes. Foi um ensaio intenso, me cobro muito e me isolo para fazer minhas fotografias, como essa foi autorretratos, tive ainda mais dificuldades, não costumo posar para câmeras, embora esse seja meu terceiro trabalho nessa categoria.  Fiz nas madrugadas, nesse período não estava conseguindo dormir devido a diversos fatores um deles a pandemia. Estava revoltado com a morte da primeira vítima da Covid-19, foi uma empregada do Rio de Janeiro, foi infectada pela patroa que mora no Leblon. Fiquei super preocupado com minha mãe, ela também é empregada doméstica, fiquei com muita raiva de mim, por não ter condições de ajudá-la, tirá-la dessa vida. Chorei horrores, fiquei com crises de ansiedade constante, não dormia a noite. Tive raiva de mim, do sistema, da vida, da desonestidade e desigualdade que nos mata há centenas de anos. Daí comecei a pensar como colocar isso tudo na fotografia. Entrei em contato com minha amiga Guadalupe, pedi o contato do Gilbef, que é um super artista plástico daqui de Alagoas e contei minha ideia para ele, como estava pensado a série, ele aceitou fazer as máscaras então comecei a fotografar. Banzo nasceu assim e foi crescendo, porque é um grito preso na garganta, não só meu, acredito que seja de milhares. Como soube dessa microbolsa e qual a sensação de ganhar? Minha amiga e Professora Flora me enviou o link da bolsa por meu direct no Instagram, pediu para dar uma olhada e divulgar também. Na verdade a bolsa não foi o que me instigou fazer a inscrição, pensei na visibilidade, é muito difícil para nós artistas periféricos ter um alcance expressivo. Isso é até chato de falar, mas vemos conteúdos tão supérfluos com milhares de seguidores e interação, enquanto temos dezenas de artistas que produzem conteúdos dignos de estarem no topo, mas não estão. Sei que isso é fruto de várias questões, que tem haver com a valorização do trabalho periférico que é ínfima ainda hoje, com a falta de recurso que temos para poder impulsionar nossos trabalhos, dentre outras questões. É triste constatar, mas ainda continuamos sendo deixados de lado por que esteticamente, socialmente e historicamente não somos referências, ainda temos o péssimo hábito que idolatrar os heróis construídos imageticamente para nos espelharmos. Precisamos entender que os heróis precisam ter nossa cara, daí já vai mudar alguma coisa. Em relação a sair de Maceió para produzir outros trabalhos, não estava dentro do prêmio, mas aceito convites, rs. Vou continuar por aqui, minha realidade financeira ainda não me permite ir muito longe, embora sonhe com isso. Fazer arte em Alagoas significa ter uma força a mais, como você analisa a cena da fotografia alagoana? Fazer arte não é uma coisa simples, embora muitos ainda acreditem que é. Em Alagoas então, não é nada fácil, na verdade estamos mergulhados num caos em várias esferas no Brasil atual, cultura é um delas. É um cenário muito desolador. Contudo, eles esquecem que a arte também nasce da dor, grandes artistas ficaram famosos em meio às dores internas e externas, Van Gogh é prova disso. A alagoana Nise da Silveira encontrou a arte com seus pacientes em um hospício. Precisamos de mais sensibilidade e oportunidades por parte do poder público em relação às produções artísticas no Brasil, temos milhares de talentos soterrados pela falta de oportunidade e valorização. Isso se potencializa quando pensamos em arte periférica, o caso é tão triste que seria uma pauta a parte, não cabe aqui. Em relação a fotografia alagoana que é a categoria que estou inserido, posso te dizer que nos últimos anos temos uma quantidade significativa de artistas fotográficos, extremamente competente, com trabalhos sólidos e consistentes, são trabalhos fortes e delicados como da Fotógrafa Gabi Coelho, em quem me inspirei muito pra fazer meus autorretratos, tem o Jorge Vieira uma fera no congelamento da imagem  documental, Luna Gavazza e Andréa Guido que são super sensíveis, Jéssica Conceição Nego Junior com suas fotos sobre a negritude também estão arrasando. A lista é bem maior, mas eu fico por aqui. Sinto falta ainda de mais representação negra no cenário fotográfico alagoano, percebo que ainda não estamos nos espaços de maior visibilidade, isso é fruto de uma sociedade racista e desigual, somos maioria no Brasil, mas minoria nos espaços de visibilidade, nossa imagem vale muito nas galerias Brasil a fora, mas quando somos nós que produzimos já não vale muito, isso é triste. Mas, seguiremos em frente, nossos sonhos são maiores do que qualquer plano covarde forjado contra nós.