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Cerca de 550 mil moradores do RJ sofrem de transtorno causado pela violência

G1 teve acesso a estudo inédito sobre transtorno do estresse pós-traumático; "Minha vida é só chorar", relata mãe de Maria Eduarda, morta em escola. Teste: veja se você sofre do mal

Por G1 13/07/2017 08h16
Cerca de 550 mil moradores do RJ sofrem de transtorno causado pela violência
Reprodução - Foto: Assessoria

O intenso barulho de tiros em uma tarde normal de domingo em Acari, Zona Norte do Rio, não assusta Rosilene Alves Ferreira, de 53 anos. Ela aponta para o alto e relembra a tragédia que viveu há três meses no mesmo bairro: "Foi isso que matou o meu bebê".

Rosilene perdeu a filha Maria Eduarda, de 13 anos, baleada dentro da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, em Acari, no dia 30 de março, durante uma operação da Polícia Militar no local. Os impactos da violência se manifestaram nela de forma gradativa. Começou com crises constantes de choro, insônia, perdeu quase 20 kg e agora luta para não "morrer de tristeza" (veja entrevista completa com os pais de Maria Eduarda em vídeo no fim da reportagem).

"Eu estou fazendo força, porque minha vida é só chorar. Quero me isolar, ficar sozinha. Parei de trabalhar, tem dias que não como. Estava pensado 84 kg e agora estou com 66 kg. Já sei que isso é o início da depressão. Se eu me entregar, tenho certeza que vou morrer", diz a mãe de Maria Eduarda.

Assim como os pais da estudante, milhares de pessoas convivem com males causados por efeitos da violência no Rio de Janeiro. Em todo o estado, que tem população de 16 milhões, estima-se que 550 mil pessoas sofram do chamado transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) (veja os sintomas abaixo).

Estudo ainda não publicado feito pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ mostra que 97,6% dos casos de TEPT não são identificados pelos médicos em exames clínicos convencionais. Ou seja, cerca de 535 mil pessoas que sofrem do mal no estado não são diagnosticadas. Na capital, são cerca de 214 mil (veja tabela abaixo).

O trabalho coordenado pela pesquisadora Herika Cristina da Silva mostra que o índice de acertos é baixo mesmo em hospitais universitários, onde a taxa de diagnóstico correto, em teoria, seria mais alta. Apenas 2,4% das pessoas são diagnosticadas corretamente.

Transtorno de estresse pós-traumático é uma doença psiquiátrica que surge em decorrência de alguma experiência traumatizante. São quatro os principais grupos de sintomas:

vítima revive o trauma o tempo todo, não consegue afastar a memória, às vezes por anos; isolamento: vítima evita qualquer pessoa ou situação que possa lembrar o trauma, inclusive amigos e familiares; sentimento de culpa distorcido em relação ao trauma, sensação de que a vida é ruim; hipervigilância, insegurança, insônia, irritabilidade e comportamento autodestrutivo.

Outro estudo sobre TEPT, o mais abrangente realizado no país, mostra que 88,7% da população do Rio de Janeiro já foi exposta a algum evento traumático ao longo da vida. O trabalho realizado por pesquisadores de quatro instituições federais (UFRJ, UNIFESP, FioCruz e UFF) também aponta que 63,8% da população vivenciou diretamente esses traumas, como assalto a mão armada, agressões, estupros, sequestros, torturas e ameaças.

"A gente tem uma parcela muito grande da população hoje sofrendo desse transtorno e que não procura tratamento. Ou porque não conhece ou porque tem dificuldade de falar sobre o assunto", explica o psiquiatra William Berger, professor adjunto da UFRJ e pesquisador do Laboratório Integrado de Pesquisas sobre Stress (LINPES).

"O TEPT em até 80% dos casos está associado a alguma comorbidade psiquiátrica, como depressão, abuso de álcool e drogas. E tem taxa de suicídio de 15% a 20%. É um transtorno muito grave a incapacitante", alerta o especialista.

O Ambulatório de Violência Urbana do Instituto de Psiquiatria da UFRJ atende 113 pessoas atualmente. Segundo Berger, o principal evento traumático que leva os pacientes ao local é o assalto a mão armada. O número de roubos na cidade do Rio bateu recorde histórico em 2017, com 69 mil ocorrências entre janeiro e maio, incluindo todos os tipos de assalto – o equivalente a oito roubos por hora.

 (Foto: Editoria de Arte/G1)

"Se você for conversar com mães e pais de jovens, porque a maioria que está morrendo são os jovens, essas famílias têm uma série de problemas de saúde, derivados dessa questão da violência", sinaliza Maria Cecília Minayo, pesquisadora e coordenadora científica do departamento de estudos de violência e saúde da Fiocruz.

A falta de conhecimento sobre a doença, por parte dos pacientes que procuram a rede de saúde, dificulta um diagnóstico preciso nas primeiras consultas. De acordo com Hugo Fagundes, superintendente de saúde mental da Secretaria Municipal de Saúde, cerca de 40% das consultas de atenção primária têm um componente do sofrimento psíquico.

"Diagnosticar uma queixa como algo decorrente da violência não é muito simples. Não é algo que dê para avaliar num primeiro momento porque a pessoa não chega dizendo que sofreu ou presenciou um ato violento. Ela chega falando de mal-estar, dores, insônias, hipertensão arterial. Os registros são feitos através da queixa inicial, aos poucos, vai se estabelecendo uma relação com o transtorno. Quando a equipe ganha a confiança dos pacientes, os relatos são marcantes", esclarece Hugo.

Onde procurar ajuda:

Unidades de saúde da rede municipal Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da Prefeitura do Rio Unidades de saúde da rede estadual Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Avenida Venceslau Brás 71, horário: segunda a sexta, das 8h às 17 h, telefone: (21) 3938-5535 (Dr. William Berger)