Brasil
Família é resgatada de trabalho semelhante à escravidão no ES
Trabalhadores, que saíram da Bahia, eram vigiados por capangas. Sem salário, atuavam a troco de comida e tinham dívidas com dono da terra.
Uma família de nove pessoas foi resgatada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela Polícia Federal em uma situação de trabalho semelhante à escravidão em uma plantação de tomate, em Brejetuba, no Espírito Santo.
Os membros da família trabalhavam sem receber salário, a troco de um pouco de comida, dormindo no chão de concreto frio de uma casa insalubre.
A jornada de serviço começava antes de o sol nascer e adentrava a noite. Toda atividade também era vigiada por capangas, que descarregavam palavras de ameaças e humilhações.
Com a segurança em risco, a família está escoltada pelas autoridades num hotel em Venda Nova do Imigrante, esperando pelo pagamento de seus direitos trabalhistas.
Trazidos de Ilhéus, na Bahia, essas pessoas estavam seis meses sem salário e tinham várias dívidas com o patrão.
“Lá, a gente era tratado igual cachorro. O dinheiro ficava todo na vendinha da propriedade. Eles prometeram R$ 40 mil e disseram que a gente ia ganhar dinheiro. Chegando lá, a gente passou a trabalhar de domingo a domingo, igual escravo, só para receber comida”, desabafa Gilmar Oliveira Borges, de 34 anos.
Os auditores fiscais classificaram o caso como típico trabalho análogo à escravidão. Somente em 2016, outras 20 pessoas foram libertadas, no mesmo município e setor agrícola, em atividade classificada como degradante e desumana.
Por mais que pareça algo típico do passado, essa relação é prática recorrente no Espírito Santo profundo, dos grotões, das fazendas, algumas trancadas com cadeados.
Com base das ações fiscais realizadas nos últimos dois anos, o MTE estima que mil trabalhadores atuam - ou atuaram em período recente - em regime análogo à escravidão no campo capixaba. Pelo menos 80% dos casos são constatados nas culturas do tomate e do café.
Na produção de tomate, centenas de trabalhadores são atraídos, com falsas promessas de emprego e de ganhos por produtividade, de estados vizinhos, como Minas Gerais e Bahia.
No café, o número ultrapassa cinco mil pessoas. Ao chegar no local de trabalho, são forçados a assinar um contrato de parceria, que, na maioria das vezes, segundo o MTE, é utilizado de forma fraudulenta para evitar a contratação por meio da Carteira de Trabalho.
Os trabalhadores geralmente são aliciados por um intermediário, chamado de gato. Os problemas começam antes desses profissionais chegarem às propriedades, mas se agravam ao encontrar instalações precárias.
O gato chega a cobrar o custo com transporte, os gastos com uniformes e ainda retém a maior parte dos ganhos dos trabalhadores.
No campo de trabalho não há banheiro (as necessidades fisiológicas são feitas no meio do mato). Não existe refeitório ou qualquer tipo de assistência. As vítimas são alojadas em casas sem estrutura ou barracões improvisados e precisam bancar a própria comida, que geralmente é comprada na venda do próprio dono da propriedade.
Até equipamentos de proteção individual e itens de higiene básica são cobrados dos trabalhadores, que veem sua dívida crescerem dia após dia, até virar um valor impagável.
No caso da família que atuava em Brejetuba, um caderno apreendido pelos fiscais identifica uma dívida de R$ 5,2 mil, somente no mercadinho da fazenda. Itens como arroz, farinha e papel higiênico são vendidos a preços acima do comércio, mas são a única opção de compra dos trabalhadores, já que eles ficam impedidos de acessar regiões comerciais próximas.
O auditor fiscal do trabalho, Rodrigo de Carvalho, afirma que esse caderno comprova trabalho escravo de servidão por dívida.
“Tudo eles descontam na vendinha. Não recebiam valor nenhum. A dívida ia cada vez crescendo mais, e eles não tinham como sair de lá. Eles ficavam presos nessa propriedade em função desse débito que contraíram com o empregador”.
Além disso, eles pagavam R$ 130 de aluguel por mês em uma residência precária e insalubre, onde vários deles tinham que dormir no chão. “Também tinham as fortes ameaças que eles sofriam no local”, completa Rodrigo.
A denúncia
Foi olhando uma propaganda do Disque 100, na televisão, sobre violações de direitos humanos, que Marcos Oliveira, de 27 anos, resolveu denunciar a situação em que a família vivia. Arrumou um telefone emprestado, e pediu socorro. A denúncia foi encaminhada ao MPT no Espírito Santo, que repassou o caso ao Ministério do Trabalho.
A primeira visita dos fiscais foi há duas semanas. Ao chegar à propriedade rural, foram ameaçados por alguns dos seus funcionários e precisaram recuar para buscar reforço.
“Quando chegamos ao local, começamos a ouvir uns gritos do meio do mato: ‘sai daqui, sai daqui’. A gente estava desguarnecido, sem proteção policial. Montamos uma equipe e voltamos na terça-feira (dia 9) com a Polícia Federal para resgatar toda a família”, conta Rodrigo.
A família, mesmo sem saber do que se tratava, viu na chegada dos fiscais a esperança de ganhar a liberdade. No entanto, a desconfiança do patrão em relação aos funcionários foi imediata e as ameaças aumentaram.
“O patrão falou que se soubesse que era eu que denunciei, os outros trabalhadores iam resolver comigo. No mesmo dia, o pessoal todo queria me pegar pra me linchar na roça. Fiquei escondido com um medo danado. Ficou todo mundo contra a gente, e vieram lá em casa tentando me pegar”, conta Marcos.
Flagrar as condições precárias e libertar os trabalhadores só foi possível após os auditores fiscais do Ministério do Trabalho conseguirem ajuda da Polícia Federal. “Mesmo com o reforço, chegaram mais de 20 homens, cercaram a gente”, complementa Rodrigo.
Outro lado
Por telefone, o advogado do dono da fazenda, Vanderlei Cesconetti, negou que o fazendeiro tenha cometido qualquer crime. Justificou que a terra foi arrendada pelo seu cliente, que, por sua vez, fez parcerias agrícolas com outras famílias.
No entanto, para o Ministério do Trabalho, esse modelo de contratação tem a finalidade de burlar a lei. “Em fiscalizações anteriores, esses auditores agiram com inverdade. Vamos processá-los. A mercearia é de um terceiro, de um comerciante local. Não teve ‘gato’, nem venda em mercearia do Vanderlei. São de 23 a 27 famílias no local. Desse total, apenas três estão alegando trabalho escravo. Todas as outras não alegam isso. Também não teve essa promessa de R$ 40 mil”.
Família vive há 20 anos na mão de aliciadores
Itabuna (BA), Uberlândia (MG), Sooretama (ES) e Vila Valério (ES). Esses são apenas alguns dos municípios por onde a família Oliveira passou, antes de chegar a Brejetuba. De fazenda em fazenda, as relações de trabalho degradantes ou análoga à escravidão se repetiam.
O filho mais novo, o Márcio, nunca soube o que é ter uma casa ou morar fora de uma relação de exploração. “Nasci dentro de uma fazenda e sempre vi meus pais indo de um lado para o outro, nas mãos de gatos, explorados”.
Desde quando saíram de Ilhéus, há duas décadas, a família já passou por pelo menos 23 municípios. Nas últimas quatro fazendas, o MTE identificou que o serviço era claramente análogo à escravidão.
Na propriedade de Vanderlei, onde aconteceu a libertação, os fiscais encontraram, logo de cara, as primeiras evidências de servidão por dívida.
“Apreendemos um bloco de anotações na venda. Nesse caderno é onde está as dívidas deles. Não tem compra de carne, nem bebida. De vez em quando tinha um frango. É só comida simples”, lembra Rodrigo, que completa: “O dinheiro não entrava para eles, era para pagar o gato”.
A fazenda onde estavam os trabalhadores fica na localidade de Alto Silveira, a quase 30 quilômetros de Brejetuba. Os trabalhadores ficaram os seis meses sem poder sair da propriedade.
“Eles não deixavam a gente ir embora. Nós só fomos uma vez (na cidade) para levar meu pai no hospital, mas tivemos que implorar. Falavam que a gente ia fugir e não pagar o que devia a eles”, afirma Marcos.
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