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Incansável Sonhador

Fundador do maior acervo sobre o Rio São Francisco em Alagoas e no Brasil – e na luta contra o câncer – Francisco Sales encara aquela que diz ser sua maior batalha: criar o museu do Velho Chico em Penedo

Por Wellington Santos / Tribuna Independente 26/04/2018 12h29 - Atualizado em 04/09/2023 15h54
Incansável Sonhador
Francisco Sales - Foto: Adailson Calheiros

Gravador ligado, no ponto. E a Tribuna Independente saca da cartola a primeira pergunta para o personagem desta reportagem. “O senhor...”

— Epa! Senhor não, por favor! Senhor está no céu! Interrompe o culto interlocutor, ao se apropriar de um jargão popular para repreender, educadamente, o repórter.

— Me chame de Francisco ou de Chico... fica melhor...

Não se sabe se intencionalmente ou se é um daquelas ‘coincidências’ da vida, mas, por ironia (ou não), seu nome tem Francisco e sua sugestão para o chamar pelo apelido é também como muitos chamam um dos mais famosos rios do Brasil,  “Chico” - o Rio São Francisco.

No local da entrevista, ao fundo, o quadro imponente de uma figura a quem atribui como o mais importante jornalista brasileiro, em sua opinião: Carlos Castelo Branco, da Academia Brasileira de Letras, autor da prestigiada coluna no Jornal do Brasil e um marco do jornalismo político. E a quem conheceu bem, quando morava em Brasília. “Veja o quadro, o Castelo está com livros por todos os lados do corpo. Foi o mais importante do Jornal do Brasil”, diz o entrevistado.

Descontraída e entremeada por muita cultura, assim foi o tom da conversa com o desbravador da cultura penedense que nasceu praticamente às margens do São Rio Francisco. Hoje com 79 anos, Francisco Alberto Sales, o criador da Casa do Penedo — o mais completo acervo e considerada a guardiã das tradições, das riquezas e herança cultural do Baixo São Francisco e que mantém um patrimônio bibliográfico, iconográfico e cartográfico, somados a preciosos objetos de arte que simbolizam a cultura e a tradição de sua população — revela à Tribuna Independente em que estágio está sua luta para concretizar um sonho alimentado desde os anos 1990: transformar Penedo na capital do Baixo São Francisco com a construção de um museu em homenagem ao rio e a seu povo.

Mas Francisco Alberto Sales, o Chico, enfrenta um câncer que, às vezes, o revela com a inevitável expressão de dor de todo mortal. “Estou com três caranguejos no corpo”, diz, ao se referir à batalha diária que mantém contra o adversário sorrateiro e perigoso. Mas Chico, assim como o rio, não desiste,  esbanja espirituosidade, mesmo diante da dificuldade. É obstinado, do mesmo jeito de quando era criança levada e, ao mesmo tempo, culta; um habitué de chás de leituras pelas ruas históricas da velha Penedo. “Meu filho, aos 20 anos já possuía um automóvel, fato raríssimo para aquela época”, relembra, em tom de blague.

Documentos eram guardados em sacos de farinha de trigo

É na Casa do Penedo que estão ainda biblioteca, auditório com galeria de penedenses ilustres, anfiteatro e o Memorial Permanente, que expõe a história econômica, política, cultural e artística da cidade de Penedo e do Baixo São Francisco.

“Os documentos de Penedo produzidos pelos cartórios estavam em petição de miséria, guardados em sacos de farinha de trigo, empilhados em um galpão, noventa por cento perdidos. Eu pedi ao prefeito à época e este foi o primeiro procedimento técnico cedido pelo poder público municipal para que a gente cuidasse. Depois fizemos o mesmo procedimento com os documentos do Estado e assim nascia a Casa do Penedo”, rememora.

Sem perder o bom humor em momento algum, Chico lembra de um fato quando convidou o amigo e famoso jornalista Carlos Castelo Branco a Penedo, certa vez: “Eu passei uma vergonha danada. Convidei o Castelo a vir a Penedo e ao passarmos perto de um casario aqui da cidade, havia uma máquina de escrever no parapeito e jogaram essa máquina na cabeça de uma mulher, justamente quando eu mostrava algumas atrações turísticas a ele. A máquina despencou e quase bateu na cabeça de uma mulher e foi aquele susto. Eu fiz, eita!”.

“Mas descobrimos, a posteriori, que não foi um mero acidente; o prefeito jogara propositalmente a tal máquina para atingir a mulher, que era sua... sua amante”, se diverte.

Lembra ainda, ao intitular-se anarquista, que no período da ditadura militar no Brasil foi perseguido e preso. “Conheci na cadeia o Jayme Miranda {advogado, jornalista e preso político alagoano que foi sequestrado e morto pela ditadura militar} que me dizia sempre: ‘olha eu soube que você vai sair daqui logo, parece que amanhã’. Mas ele me dizia isso sempre; mas depois entendi que era para me reanimar, porque entrei em estado de depressão; eu não era comunista, nada. O Jayme era uma pessoa boa”, conta, ao erguer a bengala, companheira de sempre dada à dificuldade para se locomover, e apontá-la em direção a uma redoma de vidro onde se encontra uma poesia de Vinicius de Moraes. “Dedico a vocês, da Tribuna!”.

Chico viajou mundo afora e terminou em Brasília, onde se tornou doutor em Psiquiatria e trabalhou como médico 50 anos da vida. Ficou surdo e nunca descobriu a razão. Impossibilitado de exercer o ofício, retornou a Penedo e colocou em prática um sonho antigo. Entre construções barrocas que remetem ao período colonial, Chico reformou o lar onde nasceu e ergueu a Fundação Casa do Penedo. “Tinha uma coleção de dois mil livros que pertenciam a Carlos Lacerda e doei tudo para a Casa”, conta. “Comprei o Chalé dos Loureiros com meu dinheiro para acomodar esses livros. No projeto tinha construção da biblioteca, mas só tinha recursos para o chalé”, completa.

Guerreiro, doença não desanima sonho do desbravador

Mas a batalha que mais motiva Chico atualmente é mesmo ir ao front e que não o faz desanimar momento algum. Fazer as tratativas junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para auferir recursos e transformar o Chalé dos Loureiros — um casario de estilo eclético com influência francesa — no Centro de Referência e de Documentação do São Francisco. Numa linguagem simples, Chico quer fincar na sua Penedo querida o Museu do São Francisco, uma obra que marcará definitivamente o município como a capital do Rio da Integração Nacional, que perpassa sete estados. A bela edificação do Chalé dos Loureiros data do final do século XIX (ano de 1889).

“Este é desejo que não é só meu, é um sonho que não sonho só, é um sonho de todos que amam a cultura”, crava o velho idealista. “Tenho falado com os jovens do BNDES para que eles vislumbrem o futuro de nossos jovens que, atualmente, só se interessam em ouvir o Safadão [Wesley, cantor de forró de grande sucesso na atualidade]”, ironiza.

Toda essa peleja para criar o museu começou anos depois da criação da Casa do Penedo, em 1992. Incontinenti, a Fundação se lançou em uma saga que permanece até hoje. Venceu o processo de licitação proposto pelo governo federal no já longínquo ano de 2005. O Ministério da Cultura aprovou o projeto no valor de R$ 2 milhões e 500 mil, com contrato assinado em maio de 2006 com o BNDES.

Em ruínas, o chalé erguido em 1889 pelo engenheiro sanitarista Joaquim Loureiro – também responsável por realizar as primeiras obras de saneamento na cidade – começou a ser recuperado em 2009, que viabilizou a contratação do projeto arquitetônico posteriormente aprovado pelo Iphan. Mas a coisa emperrou. Recentemente, Chico teve a notícia de que algo começou a andar novamente, embora de forma lenta. Até agosto de 2010, o projeto de restauração e conservação de madeiramentos estruturais de todo o edifício foi executado.

Sessenta mil livros e parceria com o Governo do Estado

Fora o museu, Chico não para. Paralelo ao velho sonho, está em outra frente. Como um mestre de obras, o mestre da cultura vai sempre que pode vistoriar os serviços da Vila dos Lessa, casarão que vai abrigar a Fundação Casa do Penedo ou Centro de Referência Biblioteca F. A. Sales, que deverá resguardar o incrível acervo de quase 60 mil livros, obras raras, mapas, impressos, fotografias, uma diversidade de peças e tantas outras obras de arte guardados em um dos cinemas de Penedo.

“É um prédio que estava em ruínas. Ele ficou em falência e o Governo do Estado e o Iphan se reuniram e resolveram restaurar. O Estado cedeu o prédio em comodato e mais cinco funcionários da Secretaria de Educação”, revela Chico, ao receber a visita do secretário de Estado da Comunicação, Enio Lins, e a superintendente do Arquivo Público de Alagoas, Wilma Nóbrega, já devidamente convocada por Chico para cuidar do Centro de Referência Biblioteca F.A.Sales.

“É uma honra para qualquer profissional e, ao mesmo tempo, uma responsabilidade enorme cuidar deste projeto que tem à frente o professor Sales”, ressaltou Wilma, que está à frente do Projeto Chá de Memória, do Gabinete Civil do Governo, cujo propósito é potencializar a política de descentralização dos valores históricos e culturais de Alagoas. O projeto foi realizado no município de Penedo, semana passada, em comemoração aos 382 anos de elevação à Vila e sua importância para o Estado.