Política

Emoção pautou a diplomação póstuma dos estudantes da Ufal mortos pela ditadura

Solenidade de colação de grau aconteceu no último dia da 11ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas

Por Lenilda Luna / Ascom Ufal 12/11/2025 19h02 - Atualizado em 12/11/2025 19h34
Emoção pautou a diplomação póstuma dos estudantes da Ufal mortos pela ditadura
Para os familiares, que receberam os diplomas, a solenidade significou o fechamento de um ciclo - Foto: Renner Boldrino / Ascom Ufal

Várias gerações reunidas para celebrar a memória de três estudantes da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) que não puderam concluir os estudos porque foram perseguidos, presos e torturados durante a Ditadura Militar (1964-1985). São eles: Gastone Beltrão, que cursava Economia; Dalmo Lins, que fazia Direito; e Manoel Lisboa de Moura, estudante de Medicina.

Na manhã do domingo (9), na Sala Ipioca, do Centro de Convenções, no último dia da 11ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas, parentes dos três estudantes, militantes de movimentos sociais e políticos, tanto da geração de 1968 como os jovens estudantes e militantes da atualidade, inclusive uma delegação que veio de Recife, prestigiaram a solenidade de diplomação póstuma, que seguiu os ritos do cerimonial universitário, entremeada com as palavras de ordem que ressoavam vez ou outra no plenário.

A mesa de honra foi presidida pelo reitor da Ufal, Josealdo Tonholo, e teve a participação de conselheiros universitários e autoridades, como o vice-governador, Ronaldo Lessa, o Deputado Federal, Paulo Fernandes (Paulão) e o coordenador-geral de Políticas de Memória e Verdade, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Hamilton Pereira, conhecido também pelo seu trabalho poético, sob o pseudônimo de Pedro Tierra.

Para os familiares, a solenidade significou o fechamento de um ciclo. “Meus pais sempre se preocuparam em garantir a nossa educação e estimularam todos os filhos a cursar o ensino superior. Se estivesse vivo, meu pai estaria orgulhoso de ver que Gastone recebeu seu diploma”, disse Thomas Beltrão, irmão de Gastone Beltrão, que fez questão de comparecer ao lado das outras duas irmãs mais velhas, que também estavam muito emocionadas.

Já Iracilda Moura lembra que o tio, Manoel Lisboa, era um jovem gentil e que ela gostava quando vinha visitar a família, em segredo, porque já estava na clandestinidade. “Sofri muito quando foi anunciada na TV a morte dele, numa suposta troca de tiros, que depois ficou provado que não aconteceu. Meu tio foi barbaramente torturado pelo Doi-Codi, que era um aparelho do Estado. Hoje, é reconfortante ver a Ufal reconhecendo-o como cidadão e estudante. Ele não era um terrorista feroz como a ditadura propagou”, disse a docente da Ufal.

Ênio Lins falou em nome da família de Dalmo Lins e recordou que a repressão não machucava apenas o corpo dos militantes torturados. “Eles queriam quebrar o espírito. Era uma crueldade muito grande. Dalmo foi torturado junto com a esposa, a mulher que ele amava. Depois o soltaram, mas ele teve que carregar o peso de saber que a companheira dele não foi liberada e continuou sendo vítima do cárcere e da tortura. Foi insuportável”, ressaltou o jornalista.

Reparação

A presidenta da Comissão da Memória, Verdade, Justiça e Reparação (CMVJR), Emanuelle Rodrigues, destacou a relevância do momento para a história da instituição e do país. “Esse é um momento histórico, não só para a nossa universidade, mas para o nosso estado e o nosso país. É de importância ainda maior, porque no Nordeste e em Alagoas em especial, há muitos registros e pesquisas, mas a população como um todo sabe ainda muito pouco sobre a ditadura, como se ela não existisse. Então, isso representa um marco que não fala só sobre o passado, mas sobre o nosso futuro, porque é preciso não esquecer para nunca mais se repetir”, destacou a professora.

Emanuelle ressaltou o caráter simbólico e reparador do ato. “É uma forma de reparar simbolicamente, porque a gente não pode trazer de volta as vidas desses heróis, mas pode confortar as famílias e mostrar para a sociedade que sim, teve ditadura, que ela matou, que ela perseguiu, e que nós não vamos esquecer. Estamos no começo ainda. Tem muita coisa para se fazer à frente”, afirmou.

Acerto de contas com a História

O sociólogo Edival Cajá, do Centro Cultural Manoel Lisboa, sediado em Recife, participou da cerimônia e destacou o simbolismo da homenagem. “É um pequeno ajuste de contas com a história. A universidade não combina com a espada, com a bota. A universidade vive com a sabedoria. E esse era o ambiente de Manoel Lisboa: um homem culto, sábio, um dos melhores estudantes que essa universidade já teve. Além de ser bom nas matérias, era um humanista, um revolucionário, um homem que lutava pela sociedade futura, assim como Gastone e Dalmo”, ressaltou.

Cajá, que foi o último preso político libertado durante o regime militar, lembrou que sua soltura, em 1979, ocorreu após forte mobilização estudantil. “A greve estudantil teve um papel importante para apressar o fim da ditadura. Foi a última prisão feita pelo Doi-codi. Ainda houve outras prisões, mas já com mandado judicial. Como me recusei a dar qualquer informação nos quatro dias de tortura, a repercussão levou a uma pressão internacional sobre o general Geisel, que determinou a extinção do Doi-codi”, relatou o sociólogo.

Mesmo reconhecendo os avanços desde o fim do regime, o sociólogo afirmou que os resquícios da repressão ainda persistem. “O esquema de tortura e repressão ainda está aí, atuando nas periferias e nas delegacias de polícia. As PMs são o resultado daquele processo. Mas um dia teremos um Brasil livre de fato da tortura, da opressão e do capitalismo. Uma sociedade do futuro é uma sociedade de homens livres, que se organizam para produzir e viver livremente”, declarou Cajá.

Reconhecimento institucional

Durante a cerimônia, o reitor Josealdo Tonholo reconheceu a omissão histórica da universidade e pediu desculpas públicas em nome da instituição. “Estamos aqui reunidos hoje por um ato de reconhecimento da coragem dos nossos estudantes, mas também, ao mesmo tempo, um pedido público e sincero de desculpas pelo silêncio institucional da nossa Universidade. É um ato de memória, mas também de justiça, que infelizmente chega com pernas de atraso”, declarou.

Tonholo destacou o caráter reparador do gesto, ainda que tardio. “O que nos traz aqui hoje não é apenas a alegria de uma formatura, mas a dor excruciante de uma reparação perdida. A Universidade Federal de Alagoas concede agora o diploma, ainda que pós-morte, a três dos seus filhos cuja trajetória foi interrompida pela violência da ditadura. Eles não puderam terminar os cursos, não defenderam seus TCCs, não tiveram baile de formatura. Nesse momento solene, a Ufal tem a obrigação de olhar para o seu passado e reparar sua omissão”, finalizou o reitor.