Política

Pauta bolsonarista sobre a urna eletrônica é considerada retrocesso

Especialistas comentam sobre a desconfiança insistente do presidente sobre a segurança do aparelho

Por Texto: Carlos Victor Costa com Tribuna Independente 22/05/2021 10h19
Pauta bolsonarista sobre a urna eletrônica é considerada retrocesso
Reprodução - Foto: Assessoria

Em seus últimos discursos, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vem questionando, de forma reiterada, a segurança da urna eletrônica, já que desde as eleições presidenciais de 2018 tem feito ataques ao sistema eleitoral. Sem apresentar provas, ele alega que houve fraude e isso o impediu de ser eleito logo no primeiro turno. E acrescenta indicativos de que não vai aceitar ser derrotado no próximo ano.

Diante disso, desde o último dia 13, o debate sobre o voto impresso nas eleições de 2022 começou a ser feito na Câmara dos Deputados. O projeto é da deputada bolsonarista, Bia Kicis (PSL-DF), e não prevê a eliminação da urna eletrônica no processo eleitoral, mas a adição do voto impresso simultâneo, de forma que o eleitor possa conferir o voto dado e que o papel fique guardado, em uma urna, para auditoria.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso já se manifestou sobre o tema, e para ele, mudar para o voto impresso “seria inútil” para conter o discurso de fraude e ainda geraria um custo na casa dos R$ 2 bilhões para os cofres públicos.

Em 2002, algumas cidades do Brasil contaram com a impressão de voto impresso junto com a urna eletrônica. Além de caro, o processo foi classificado como confuso pela maioria dos eleitores e não trouxe segurança a mais. O que se sabe é que a defesa do voto impresso, em especial no modelo defendido por Jair Bolsonaro, poderá dar margem ao voto de cabresto, em especial em áreas onde a fiscalização é precária.

Para o professor e historiador Cláudio Jorge, esse debate sobre o voto impresso é uma forma de apostar, por parte da direita e da extrema direita, no declínio da esquerda no Brasil.

“Ou seja, logo após a vitória da Dilma [presidente reeleita em 2014] a gente vai perceber que existe um projeto nacional para negar a vitória dela. E isso veio ganhando força. Força, inclusive, também, por parte da mídia. Primeiramente, passando por uma perspectiva estrutural, machista, colonial, não é? Que o Brasil ainda reflete nas suas estruturas modernas. Então, isso foi povoando o imaginário nacional”.

Ele ressalta que esse projeto surgiu com a ideia de desconstruir efetivamente os espaços democráticos, alimentando a ideia de que o voto eletrônico seria uma lacuna diante do formato democrático.

“Como o velho Karl Marx sempre colocou é a ideologia dominante da classe dominante, e essa classe dominante foi fabricando ideologicamente essa política de massa, comunicação de massa e alimentou ao ponto de criar esse tipo de desconfiança que hoje vem à tona em relação ao voto eletrônico. Uma outra questão é entender que a urna eletrônica é de fabricação nacional. É um produto nacional. Isso é uma questão muito importante. Até porque, em relação ao discurso patriota, do presidente e desde a contradição, e por sinal, ele ganhou através deste voto eletrônico, e hoje desconfia”, avalia o historiador.

O historiador acrescenta que a desconfiança sobre o voto eletrônico passa por uma outra perspectiva que também está vinculada a esse grande projeto bolsonarista que é o negacionismo.

“Isso é um produto que está sendo vendido ou pelo menos introjetado na sociedade brasileira. Mas, isso revela efetivamente um aspecto muito triste, que é sem dúvida alguma essa difícil compreensão da modernidade brasileira. O Brasil fala em pós-modernidade, mas sequer consegue viver a modernidade. E ainda mais, diante do governo bolsonarista, a modernidade é definitivamente negada. Não só a modernidade, como também o projeto civilizatório, que seria afirmar, categoricamente, que estamos vivendo uma barbárie. Esse aí é o lastro de um governo que nega efetivamente o processo da modernidade. Então, para culminar, nesse desatino, se efetiva, agora, com muita pujança, a tentativa de negar, de bloquear o voto eletrônico”, contextualiza Cláudio Jorge.

De acordo com o professor adjunto da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) com doutorado em Informática pelo Institut National Des Sciences Appliquées de Rennes (França), André Lage Freitas, há 25 anos, a urna eletrônica é utilizada nas eleições do Brasil e a rapidez das apurações das eleições no Brasil é impressionante, mesmo havendo críticos do sistema.

“A sociedade precisa entender que sempre haverá um compromisso a ser feito entre os benefícios e as desvantagens do emprego de cada tecnologia. Acredito que a ponderação entre a inserção da tecnologia de papel impresso, tal qual propõe a PEC 135/2019, é um atraso para o nosso sistema eleitoral. As melhorias das urnas eletrônicas deveriam ser norteadas por princípios de eficácia dos seus algoritmos, de apuração e de desenvolvimento de barreiras de proteção contra eventuais fraudes. Incorporar o papel seria um retrocesso”, considera.

André diz ainda que se deve também questionar quais são os eventuais interesses políticos por trás da PEC 135/2019.

“Por exemplo, o projeto é de autoria da deputada Bia Kicis, que tem sido constantemente acusada de disseminação de notícias falsas e é, inclusive, investigada no Inquérito das Fake News [4781]. Sempre deve-se haver espaço republicano e democrático para o debate e o contraditório, contudo não considero que a proposta da PEC 135/2019 tenha propostas interessantes para esse debate”.

Dentro da seara eleitoral, o advogado Marcelo Brabo não vê com bons olhos a aprovação da PEC 135/2019 que prevê o voto impresso, vez que poderá aumentar, e muito, a judicialização do processo eleitoral, criando, como advertiu o presidente do TSE, um grande caos em um sistema que funciona muito bem e com credibilidade.

“Sem dúvida, seria um grande retrocesso e traria uma grande instabilidade na confiabilidade do sistema eleitoral, permitindo grandes discussões e manobras de toda a ordem. Observe-se, ainda, que apesar de discussões tópicas, nunca se provou um único caso sequer que tenha ocorrido à discutida fraude. Acho que precisamos, sim, fortalecer a votação eletrônica, inclusive se pensar na introdução não apenas da biometria, mas do leitor facial [leitura da íris]. Isto, por certo, traria mais segurança e diminuiria, senão acabaria com a fraude existente, que é sempre na votação e resultante de ato humano”.

Eleitos no sistema que funciona há 25 anos agora desconfiam

Para a cientista política, Luciana Santana, essa é uma pauta especialmente dos parlamentares bolsonaristas. Ela lembra que esse tema já foi falado em outros momentos, inclusive em 2015.

“Houve uma decisão favorável, mas o STF [Supremo Tribunal Federal] barrou. Acertadamente, barrou naquele momento. E agora a gente retorna a essa pauta em que Bolsonaro tem condições mais favoráveis na Câmara dos Deputados. Isso, a princípio, eu vejo como um grande retrocesso. Não pelo fato da impressão em si. Até porque o eleitor não vai levar o voto para casa. Ele seria impresso e depois colocado numa urna ali e serviria para uma auditoria posterior”, avalia Santana.

Luciana avalia que o grande problema em relação ao voto impresso seria o incentivo maior à judicialização dos processos eleitorais.

“Hoje a urna tal qual como ela funciona, já é auditada. Então, o que você teria? Era mais um recurso ali com o voto impresso, para você fazer qualquer tipo de conferência. Então, a gente teria uma demanda maior sobre a justiça e isso poderia atrasar. Acredito que isso seja muito prejudicial para nosso sistema eleitoral”, disse a cientista destacando os custos financeiros que a implantação do voto impresso causaria.

A cientista política destaca, em contato com a reportagem da Tribuna Independente que o discurso de cortar gastos e agora defender o voto impresso, vai de encontro com as defesas de enxugar a máquina pública.

“Você já tem as urnas eletrônicas, mas criar para cada uma das seções eleitorais uma impressora, seria mais o custo de papel, mais o custo de tinta, a gente já tem um bocado de recurso sendo gasto a meu ver de uma forma equivocada. Sendo que a gente tem outras prioridades, sendo que se fala tanto em enxugar gastos públicos. Outra questão que eu vejo é que a urna eletrônica sempre foi muito elogiada no Brasil e considero ser um recurso importante. Inclusive, diferentemente de outros países, a gente já sabe o resultado no mesmo dia, e os especialistas atestam a segurança digital e isso é muito importante, inclusive como referência para outros países”, ressalta.

Outra contradição apontada por Luciana Santana é que as mesmas pessoas eleitas por diversas eleições seguidas, agora desconfiam da urna eletrônica.

“O que eu fico me perguntando é porque esse questionamento novamente e porque esse questionamento é justamente feito por pessoas que foram eleitas por essa urna eletrônica. Então se não há confiança na urna eletrônica, em tese também não confia ali, não acredita que tenha sido eleito. E mais, outra justificativa pensando em eleições futuras, eu acho bastante complicado, você antecipar que vai haver fraude eleitoral na eleição de 2022. Primeiro que a disputa ainda vai acontecer. E segundo, assim como em outras eleições. Desde 1996 quando a urna começou a ser utilizada, nós temos recorrentemente governantes, temos tido renovações, temos alternância e eu acho que é isso, democracia é isso”, finaliza.