Política

Revolta, tiros e a queda de um gigante: 20 anos do dia que abalou Alagoas

Em 1997, 15 mil alagoanos entraram em confronto com Exército e forçaram renúncia de Suruagy

Por Tribuna Independente 17/07/2017 08h06 - Atualizado em 14/09/2024 18h19
Revolta, tiros e a queda de um gigante: 20 anos do dia que abalou Alagoas
Impeachment de Suruagy - Foto: Adailson Calheiros / Arquivo

O dia 17 de julho de 1997 entrou para a história recente de Alagoas e tomou as manchetes dos jornais dentro e fora dos limites do Estado. Aquela fatídica quinta-feira deixou de ser uma mera ‘data’ para virar símbolo de uma geração. Transformou-se em efeméride, em substantivo: “O 17 de Julho”.

Nesta segunda-feira completam-se 20 anos do episódio que levou 15 mil pessoas às ruas e forçou a renúncia do, até então, mais popular governador da história de Alagoas: Divaldo Suruagy. O Rei estava nu.

A Tribuna Independente revisita esse tempo, traz à baila personagens vivos (inclusive levando-os aos locais históricos), relembra fatos decisivos daquele período, faz um recorte no acontecimento que envolveu milhares de pessoas e que culminou com a queda do político que chegou a merecer, de boa parte da mídia nacional, o título de ‘um dos grandes caciques políticos do Nordeste’ e colocado ao lado de figuras lendárias – embora ideologicamente diferentes – como o pernambucano Miguel Arraes, dada sua influência, habilidade nos bastidores e, principalmente, popularidade.

Mas Suruagy sucumbiu ao fracasso, mesmo depois de ter chegado ao seu terceiro mandato praticamente nos braços do povo, com cerca de 80% dos votos. Proporcionalmente, a maior do país, à época. Um gigante.

Três vezes governador, senador e deputado federal, foi obrigado a renunciar ao cargo de chefe do Poder Executivo de Alagoas para evitar derramamento de sangue na Praça Dom Pedro II, conhecida como Praça da Assembleia.

O caos instalado até aquele dia deixou muita gente sem crédito no comércio e na mão de agiotas. As greves pipocavam em todas as categorias, provocando desespero e suicídios. Suruagy pegou o governo já quebrado, herança dos antecessores, com folhas em atraso e economia decadente, principalmente em decorrência do famoso Acordo dos Usineiros, gerado por Collor, que aumentou o fosso nas já combalidas contas públicas.

Acostumado com malabarismos da época das “vacas gordas” em que governou Alagoas durante a ditadura militar – por encontrar facilidades para angariar recursos obtidos a “fundo perdido” em Brasília e sem ter que se preocupar em prestar contas –, Suruagy não percebeu que os tempos eram outros. Assim que assume o governo, concede aumento a funcionários públicos, aos poderes Legislativo e Judiciário, e infla a folha do Estado, que salta de R$ 35 para 85 milhões, à época. Era o começo do fim.

Letras, números e caos; Alagoas vai à falência

Criou-se o clima de animosidade entre Executivo, os outros poderes e a massa de servidores. Uma bomba estava para estourar e Suruagy tentou uma saída: a emissão de títulos públicos para angariar fundos no mercado financeiro das chamadas Letras do Tesouro Estadual e apelidado posteriormente de o “Escândalo das Letras Podres”.

O mercado financeiro não apresentou interesse em comprar os títulos alagoanos e o dinheiro emitido para angariar fundos com as dívidas não resolveu a situação. Alagoas entrou no buraco.

Pior. Foi descoberto que a tal operação de emissão das letras guardava em si um escândalo, por ter sido executada totalmente fora da lei para pagar bancos, empreiteiras e beneficiar alguns agentes públicos.

A crise e o aprofundamento da miséria social chegavam ao limite com Suruagy.

Naquele dia 17 era iminente o confronto entre soldados do Exército, policiais civis e militares, e todas as outras categorias do funcionalismo público, inconformados com os mais de oito meses de salários atrasados. Era o caos e a mais completa falência do Estado.

O caldeirão explodiu quando o prédio-sede do Legislativo amanheceu cercado pelo Exército, com o intuito de garantir seu funcionamento e a integridade dos parlamentares. No entanto, ao passar das horas, as pessoas começaram a tomar conta da Praça, num aglomerado de revoltosos.

O funcionalismo não se intimidou foi para o enfrentamento. Na pressão dos manifestantes, teve início um tiroteio assustador. As pessoas se jogavam no chão, 15 mil pessoas, entre elas policiais militares, civis e servidores.

Grande parte dos policiais presentes estava armada e pronta para o que desse e viesse. Do outro lado da trincheira de guerra estavam cerca de três mil soldados do Exército, composta por jovens que não tinham mais de 22 anos de idade. Muitos com cara de menino, assustados, mas de fuzil na mão. 

 A Praça Dom Pedro II virou palco de guerra, pois a multidão ameaçava invadir a Assembleia Legislativa Estadual (ALE) para pressionar os deputados a votarem pelo impeachment do governador. Quando o barulho dos tiros cessou, observou-se que ninguém havia se ferido. Em meio à confusão, o governador Divaldo Suruagy foi obrigado a renunciar ao cargo, naquele mesmo dia.

O relatório a ser julgado com o pedido de impeachment tinha autoria do procurador de justiça Luiz Carnaúba e seria votado pelos deputados estaduais, após Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da ALE no dia 17 de julho.

Nas contas dos deputados e do Governo, o relatório seria rejeitado e Suruagy se manteria no Poder.

Atos de desespero foram sinais; governo não entendeu

Um clima de comoção tomou conta dos  servidores públicos depois de ocorrerem ao menos quatro suicídios motivados pelos oito meses de salários atrasados naquele 1997. O mais chocante de todos foi o do soldado da Polícia Militar (PM) Leandro Alves do Carmo, 30 anos, e que estava sem receber salários havia cinco meses.

Na madrugada do dia 29 de abril, o PM matou a mulher, Vitória, 37, a enteada Vitória Régia, 15, e a filha Fernanda, 8, e depois se matou, depois de ter atirado também contra o filho de 10 anos, que sobreviveu.

Em outro dos episódios, uma funcionária do Departamento de Estradas de Rodagem (DER) subiu no Edifício Brêda, no Centro de Maceió, deixou um bilhete e pulou. Em outro, um policial em Arapiraca tomou remédio para morrer e outro tentou matar a esposa depois que ela pediu para que ele comprasse leite do filho.

Além de todos os dramas familiares, os hospitais estavam parados, delegacias fechadas, estudantes sem aula e o comércio com as vendas estagnadas. Era o retrato da crise que assolava o Estado e que nem mesmo o Programa de Demissão Voluntária (PDV), implantado por Suruagy no final de dezembro de 1996, conseguira reverter.

Para implantar o programa, o Estado recebeu um aporte de R$ 300 milhões do Governo Federal, mas a adesão foi tão grande que muitos ficaram sem receber, agravando ainda mais a crise.

Á época no PT, e na oposição, a então deputada Heloísa Helena, em depoimento à Tribuna Independente, diz que o 17 de julho foi de grande visibilidade pública, mas ressalta: “O 17 de julho não nasceu no 17 de julho, foi muito antes. A situação era de crise profunda já há vários meses”.

O Exército havia sido convocado para reforçar a segurança da ALE depois que PMs e policiais civis decidiram cruzar os braços e se juntaram aos milhares de servidores que já estavam parados, mantendo sucessivas vigílias à frente do Palácio dos Martírios e da sede do Legislativo.

Heloísa lembra que antes das cenas de guerra que tomariam o noticiário de todo o país, servidores públicos já haviam protagonizado um embate em frente ao Palácio dos Martírios, ao final de mais uma mal sucedida negociação entre Suruagy e sindicalistas. Um protesto terminou em confronto com militares e a explosão de uma bomba de efeito moral na mão de um servidor acirrou ainda mais os ânimos.

Tudo começou em 8 de maio

Se engana quem acha que o confronto na Praça Dom Pedro II, que culminou da renúncia do governador Divaldo Suruagy no dia 17 de julho de 1997, foi obra do espontaneísmo popular motivado pelos meses de salários atrasados do funcionalismo público. A data mais importante da história política recente de Alagoas começou a ser construída dois meses e meio antes, no dia 8 de maio, com uma ocupação do Salão de Despachos do Palácio dos Martírios por cerca de vinte sindicalistas.

 Foi preciso que policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM fosse convocado para retirar as lideranças sindicais do Palácio na marra, e no porrete.

 Uma das figuras que ocuparam o Palácio foi Lenilda Lima, à época do Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Alagoas (Sinteal).

“Decidimos que ficaríamos no Palácio até que viesse um socorro para Alagoas porque entendíamos que, na época, aqui não se resolvia nada. Queríamos o compromisso dos deputados federais e senadores, por isso decidimos ocupar. Ficamos durante o dia e as negociações se estenderam até à noite, foi quando o Palácio foi invadido pela Polícia Militar e começou a pancadaria”, lembra.

Lenilda Lima destaca que Suruagy se retirou do local no começo da noite e o vice-governador, Manoel Gomes de Barros (Mano), o substituiu.

 “Ele [Mano] queria nos tirar daqui para ir para a Vice-governadoria, que na época era no Farol, para destencionar e tirar a simbologia que a ocupação do Palácio possuía. Também não saímos e à essa altura o policiamento já estava dentro do prédio, pelotão de choque, o comando da PM, e também deputados da base do governo”, relata.

 Ela pontua que do lado de fora do Palácio dos Martírios, na praça que tem o mesmo nome, havia apenas cerca de 200 pessoas. Na verdade, tratava-se de uma mobilização do “Grito da Terra”, organizado pelos movimentos de trabalhadores rurais sem terra.

 “Lá dentro foi pancadaria. Desmaiei por causa de uma cacetada na cabeça. Foi uma ação desproporcional. E fora, na Praça, tinha cachorro, cavalaria, bomba de efeito moral. Um companheiro do Sindicato dos Urbanitários perdeu um dedo por causa dessas bombas. Foi uma ação extremada, mas isso não parou a preparação para o 17 de julho”, diz.

 

 

 

O povo na praça e o banho de sangue que não ocorreu

“A Praça é do povo!”. Essa frase foi o gatilho para que os manifestantes presentes na Praça Dom Pedro II, em frente à Assembleia Legislativa, derrubassem as grades que a cercavam e a confusão tomasse conta do local. Dita pela então prefeita de Maceió, Kátia Born, a sentença serviu como chamamento ao momento derradeiro de toda a movimentação que culminou na renúncia de Divaldo Suruagy do Governo do Estado.

“Cheguei à Praça e disse que queria falar com o comandante do Exército. O rapaz que falou comigo me disse para aguardar que iria chama-lo. Quando ele abriu o portão para eu entrar, os trabalhadores me seguiram. Eu vinha da Rádio Gazeta e descendo a ladeira vi 15 mil trabalhadores tentando forçar sua entrada na Praça. Quando cheguei, eu disse ‘não se admite fechar a Praça. A Praça é do povo’. Foi um momento muito significativo e até hoje eu sinto uma coisa, uma emoção”, lembra Kátia Born. 

A ex-prefeita de Maceió conta que assim que passou pelas grades, o tiroteio começou.

“Foi nessa hora que escutamos o primeiro tiro e a atendente que estava comigo disse ‘vou lhe baixar que o alvo é a senhora’ e me jogou no chão. Foram um ou dois minutos de tiros. A nossa preocupação naquele momento era se alguém tinha sido ferido. Minha entrada poderia ter causado um genocídio, mas graças a deus não ocorreu. Havia tiros para cima e outros que a gente não sabia para onde iam, mas eram tiros mesmo e não festim”, diz Kátia Born.

Já o major Paulo Nunes, à época Associação dos Oficiais Militares de Alagoas (Assomal), relata que os policiais, civis e militares, estavam dispostos a tudo para dar fim àquela situação.

“A sorte é que os tiros foram para cima, dispersando as pessoas e o Exército recuou. Quando a Kátia deu entrevista na rádio dizendo que liberasse a Praça por ser pública, o pessoal foi para cima. Os recrutas tiveram medo e recuaram. Se ficassem, o banho de sangue seria grande porque trocaram a munição de festim por munição real, tudo autorizado pelo comando do Exército”, relata o major.

Além de militares do Exército armados na Praça Dom Pedro II, também havia homens armados nas janelas da Biblioteca Pública. Segundo o coronel Rogério, vice de Paulo Nunes na Assomal, não eram homens ligados à entidade.

Já Lenilda Lima lembra que alguns deputados estaduais ameaçavam os manifestantes de maneira indireta e que a tensão começou assim que a Praça foi tomada pelos trabalhadores.

“Nós fizemos um cemitério com cruzes de papel e madeira e alguns deputados raivosos nos disseram tirá-las porque seus filhos estavam assistindo aquilo na tv. A gente tinha colocado a cruz simbólica, mas que poderia ter cruz de verdade, eles diziam. Foi muita tensão, muita gente, muita notícia que chegava. Era deputado que ia descer pela janela, aí o povo corria; era notícia que a coisa não estava acontecendo, de que tinha violência lá dentro da ALE. E do lado de fora uma fotografia terrível: um Exército cheio de meninos, jovens que não sabiam nem o que estavam fazendo e uma policia [manifestantes] com tática elaborada. Tive medo de banho de sangue”, destaca Lenilda Lima.

 

PANORÂMICA DO CAOS

 

Às 7h da manhã de 17 de julho de 1997, soldados do Exército armam barricadas na Praça Dom Pedro II para impedir as manifestações dos servidores públicos que começam a chegar por volta das 8h, assim como deputados e funcionários do Poder Legislativo.O Exército seleciona quem pode entrar no prédio e usa detectores de metal. Mesmo assim, os deputados e assessores entraram armados no local.Às 9h a sessão foi iniciada pelo então presidente da ALE, João Neto. Perto de 9h30, a prefeita Kátia Born chega à Praça e o tumulto e tiroteio começam.Às 10h surge a informação que Divaldo Suruagy renunciara ao cargo de governador e os manifestantes comemoram. Em seguida, ele e o vice, Mano, dão entrevista à Rádio Difusora, no Palácio dos Martírios, e pedem calma à população. Suruagy garante despachar normalmente, e não fala em renúncia.Perto de meio-dia, o presidente da ALE informa que Suruagy mandou mensagem pedindo licença do cargo por tempo indeterminado. O pedido foi aprovado cerca de 50 minutos depois.

 

“NÃO POSSO, MÃE”

Durante a conversa com a reportagem da Tribuna Independente, o coronel Rogério lembrou um fato, ocorrido momentos antes do tiroteio na Praça Dom Pedro II. Emocionado ele disse: “me lembro de no dia da Praça da ALE, do lado de cá da grade, a mãe de um recruta dizia para seu filho: ‘saia daí e venha para cá’ e ele respondeu: ‘eu não posso, mãe’”.

“Se atirarem em um de nossos meninos a gente explode o prédio da PM”

A tensão fora e dentro da Assembleia Legislativa no 17 de julho lembrava uma panela de pressão prestes a explodir, como relata Heloísa Helena. “Um general gritou para um grupo de deputados que se caísse um daqueles meninos deles, iram explodir o prédio da PM, com barricadas e um tanque de guerra que já estava apontado para o prédio do Comando Geral, que fica a poucos metros dali”, recorda a então deputada estadual.

Heloísa relata ainda que um dos comandantes do Exército na ação chegou a discutir com um grupo de deputados muito nervosos com o iminente tiroteio. “Eu e alguns deputados chamamos a atenção dele e dissemos que era irresponsabilidade do Comando do Exército colocar em risco  jovens inexperientes naquela panela de pressão. Impressionante que eles estavam ali, em sua grande maioria, meninos com medo e assustados”, lembra.

Em relação às armas e ameaças dentro do plenário, momentos antes da votação do impeachment de Suruagy, Heloísa prefere não entrar em detalhes do que teria sofrido por outros parlamentares, mas confirma. “Para mim, o deputado Washington Luiz chegou a apontar uma metralhadora UZI. Quanto aos outros, eu prefiro não afirmar porque acho interessante que cada um dê sua versão dos fatos.  Prefiro não elencar nomes”, diz. 

Em uma entrevista num programa de tv, segundo Heloísa, Washington Luiz teria justificado sua ação porque “estaria todo mundo nervoso”.

“Uma pessoa pegar uma metralhadora sem saber manusear, claro que foi um risco”, reprova Heloísa Helena.

A Tribuna Independente tentou contato com o ex-deputado, que na ocasião do 17 de julho era também líder do governo Suruagy, mas ele preferiu não falar com a reportagem.

Washington Luiz tem se mantido bem recluso após processo que responde no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao qual responde a acusações de irregularidades em sua passagem à frente do Tribunal de Justiça de Alagoas.

Uma nota na então Tribuna de Alagoas, no dia 18 de julho, atestava: “Antes de sair de casa, o deputado Antônio Albuquerque se despediu dos filhos, disse que não sabia se voltava vivo ou morto. Saiu armado e acompanhado de seus seguranças e, em plenário, gritou: ‘Estou preparado para tudo, não vou morrer de graça!’”. A reportagem tentou falar com o deputado mas ele estava em viagem.

A pouca lembrada pá de cal

Um personagem importante dessa história, por vezes esquecido quando o 17 de julho é contado devido ao foco nas manifestações e nos atores políticos, é o ex-procurador de Justiça Luiz Barbosa Carnaúba. Um mês antes do histórico dia, ele, à época na ativa, protocolou denúncia – de sua autoria – contra então governador Divaldo Suruagy na ALE e lhe atribuiu irregularidades como descumprimento da Lei Orçamentária, do emprego do dinheiro público e atentado contra a honra e ao decoro que a função de chefe do Poder Executivo exigia.

As graves provas da denúncia contra Suruagy foram colhidas por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal, destinada a apurar irregularidades relacionadas à autorização, emissão e negociação de títulos públicos nos exercícios de 1995 e 1996 em vários estados do país. Tudo foi protocolado na ALE no dia 12 de junho. 

“Fiz isso com base no relatório do Senado Federal. No processo, tinha até a prova de falsificação da assinatura de um ex-governador de estado”, lembra Carnaúba. O governador da assinatura falsificada era ninguém menos que um dos antecessores de Suruagy, Fernando Collor.

Carnaúba fazia parte, como representante do Ministério Público Estadual (MPE), da equipe da Secretaria da Fazenda para apurar denúncias de combate à sonegação fiscal em Alagoas. Ironicamente, uma ação em favor do próprio Estado e, em última análise, do próprio Suruagy.

As irregularidades ficaram conhecidas como Escândalo das Letras, cujos recursos seriam destinados para emissão de letras no mercado financeiro somente para pagar precatórios, o que não ocorreu. De acordo com a denúncia do Senado, endossada por Carnaúba, Suruagy usou todos os recursos parar pagar empreiteiras e operações financeiras ilegais, além de beneficiar agentes públicos, entre eles secretários.

 O prejuízo total para Alagoas no final das contas foi de R$ 1 bilhão e 200 milhões, em valores de 1997, com desvio de mais de R$ 300 milhões. “O Estado não ficou com nem um centavo. Com essa operação, os credores compraram os chamados títulos podres e muita gente foi à Justiça e ganhou. Esse foi um legado terrível e que culminou com a incapacidade de ele administrar o Estado, quando atrasou os sagrados salários dos servidores”, ressalta Carnaúba.

A conclusão da CPI do Senado, cuja peça acusatória contra o Estado de Alagoas a que a Tribuna Independente teve acesso, mencionava: “Houve desvio de 100% das verbas de emissões de precatórios”.

Chama a atenção na mesma peça acusatória, o tom de ironia dos senadores: “Os desvios aconteceram com a mais absoluta transparência, sob a chancela de Decreto Governamental”.

Carnaúba faz questão de ressaltar nunca ter tido nada de pessoal contra Suruagy e, ao mesmo tempo em que relembra o desdobramento de sua denúncia, o ex-procurador faz um reconhecimento da biografia política do ex-governador.

“Infelizmente cumpri o meu papel como procurador, não foi nada de pessoal em relação à pessoa do governador, até porque a acusação era contra o Estado de Alagoas. Todo mundo sabe que Suruagy confiou em alguns amigos que ele tinha como secretários. Mas eles terminaram arruinando a biografia do governador, ao Alagoas deve muito, como as obras do emissário submarino, o polo cloroquímico, rodovias”, diz.

O ex-procurador de Justiça critica àqueles que se diziam amigos de Suruagy, mas após sua queda do Governo do Estado, adotaram postura diferente.

“A coisa estava tão feia que colocaram a assinatura do Suruagy de cabeça para baixo em um artigo que ele mandava sempre para o jornal cujo dono era seu amigo, logo depois de sua renúncia. Os amigos o deixaram, foram covardes depois da perda de seus direitos políticos”, relembra.

Sobre o processo gerado em decorrência do trabalho de Carnaúba, Suruagy, alguns secretários e agentes financeiros foram condenados em 2002 com multas, devolução de dinheiro e penhora de bens.

Policiais militares, tropa foi decisiva para renúncia

Na avaliação da maioria das pessoas que viveram – ou acompanharam – todo o processo que culminou na saída de Divaldo Suruagy do Governo do Estado, a participação dos policiais militares nos protestos foi essencial para o desfecho que todos conhecem, especialmente no fatídico dia 17 de julho de 1997.

Um dos líderes que organizou a tropa para aderir ao movimento contra o governador foi o major Paulo Nunes. À época, ele acabara de assumir pela segunda vez a presidência da Assomal.

“No início, as atuações contra o governo entre policiais civis e militares ocorria em separado. Depois decidimos unificar e até assembleias conjuntas nós realizamos. Mas antes disso, já estávamos construindo o movimento ‘Alagoas Exige’, capitaneado pela OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]”, lembra Paulo Nunes.

O major ressalta que o fator salarial foi importante na mobilização dos colegas de farda, mas o componente político de repetição de um mesmo grupo no poder no estado também foi decisivo.

“Não era só o salário atrasado, isso até foi o estopim, mas tinha a dívida do Estado, as condições de trabalho. Não tinha transparência no governo. Além da repetição Guilherme Palmeira/Suruagy se revezando no poder. Isso incomodava muito”, diz.

Entretanto, Paulo Nunes destaca a situação financeira dos policiais – e dos funcionários públicos em geral – naquela época. Inúmeros foram os relatos de suicídio, além de furtos para garantir a sobrevivência.

“Teve policial que chegou ao Bompreço da Avenida Buarque de Macedo, encheu os carros com comida e saiu na marra. Uma funcionária do DER [Departamento de Estradas e Rodagem] subiu no Edifício Brêda, deixou um bilhete, e pulou. Um policial em Arapiraca tomou remédio para morrer e outro tentou matar a esposa depois que ela pediu para que ele comprasse leite do filho”, relata Paulo Nunes.

PRESSÃO

Por conta da liderança e da capacidade de mobilização que exerceu diante dos colegas, Paulo Nunes não escapou de retaliações por parte do comando da PM à época.

“Fui preso três vezes. Era prisão administrativa, de 15 dias cada. Isso constrangia. Meus filhos pequenos tinham que ver o pai preso e a Polícia Federal lhe vigiando em todo canto. Certa vez me chamavam no quartel da PM para dizer que eu não podia, e não falava em nome da Polícia. Aí nós fazíamos nossas reuniões no Clube e o comandante retaliava pondo todos para trabalharem na rua, prolongando expediente e mudando a escala para esvaziar o movimento. Mas a gente convidava os coronéis, por que não?”.

Ameaças e bomba tentam intimidar lideranças

A mobilização dos servidores públicos e o clima generalizado de insatisfação com o governo Suruagy provocaram reações do outro lado, ameaças foram realizadas e uma bomba explodiu num carro de som do Sinteal.

O major Paulo Nunes revela que sofria ameaças por meio de telefonemas anônimos e, apesar de ninguém se dirigir a ele diretamente, tomou algumas precauções. “Internamente nós sofremos ameaças e recebíamos telefonemas anônimos. Tomávamos cuidado quando chegávamos em casa. Eu me lembro que mandei murar um terreno baldio perto da minha casa, mas nunca teve uma ação direta. Acho que faltou coragem de peitar, mas recebia telefonema direto. Uma vez disseram: ‘rapaz, tu é doido mexendo com o coronel, com o governador’”.

Durante a conversa com a reportagem da Tribuna, em frente ao quartel da PM, o coronel Rogério – também na reserva – lembra de rumores sobre uma reunião realizada com o objetivo de tramar a morte dos líderes militares que participavam dos atos contra Divaldo Suruagy.

 “Soubemos que houve uma reunião entre o Comando da PM, o então secretário de Segurança Rubens Quintella e o coronel Cavalcante para matar a gente quando estávamos presos no quartel. Um colega, também coronel, presenciou a conversa sem querer e nos avisou. O que ficamos sabendo era que o Cavalcante receberia o comando do Detran se o trabalho fosse feito”, diz coronel Rogério.

A reportagem tentou contatar o coronel Cavalcante, mas não houve resposta.

CARAVANA

Se parte da população fazia questão de mostrar a raivosa insatisfação com o então governador durante a passagem dos sindicalistas pelo interior de Alagoas, seus aliados também mandavam seus “recados”.

Numa manifestação na cidade de Arapiraca, uma bomba foi colocada no carro de som do Sinteal e explodiu quando a então deputada estadual Heloísa Helena fazia um discurso.

Lenilda Lima lembra que aqueles dias foram de tensão. “Esse período foi o que ficamos mais nervosos. Durante a caravana, em Arapiraca, colocaram uma bomba dentro do carro de som do Sinteal e na hora que explodiu a Heloísa estava falando, mas por sorte ninguém se feriu. Aquilo foi um recado, mas contratamos outro carro de som e prosseguimos. Nos cartazes que levávamos colocamos a cara do Suruagy e dos deputados que o apoiavam”.

Exército indicia prefeita e major

A participação do Exército no processo que resultou na queda de Divaldo Suruagy do governo não se restringiu à presença na Praça Dom Pedro II no fatídico dia 17 de julho de 1997, ou mesmo em atuar como se fosse polícia a partir do momento que os policiais militares já eram mais cidadãos em protesto do que soldados.

 Paulo Nunes e Kátia Born foram indiciados em Inquéritos Policiais Militares pelo Exército.

“Fui indiciada pelo Exército depois do episódio na Praça da Assembleia. Eles afirmavam que eu atentei contra a vida quando passei pelas grades. Depois arquivaram. Fui, talvez, a primeira prefeita indiciada pelo Exército do país”, diz Kátia Born.

 Já Paulo Nunes ressalta que não foi preso pelo Exército por ter se elegido deputado estadual em 1998.

“Tem um inquérito que o Exército abriu contra mim, quase ninguém sabe disso. Era para eu ter sido preso, não fui porque já era deputado”, comenta.

Faltou pulso a Suruagy, revela Mano

Aos 50 anos, no dia 17 de julho de 1997, Manoel Gomes de Barros, o Mano, então vice-governador de Alagoas, assumiu o comando de um Estado envolto numa crise política e econômica sem precedentes. A renúncia do governador Divaldo Suruagy lançava à população, em especial aos servidores que estavam sem receber salários, um fio de esperança na busca de resoluções para efetivar os pagamentos, bem como abrir alternativas de crescimento em diversos setores que estavam com os serviços e obras parados.

A palavra de ordem capitaneada por Mano era dialogar com os poderes constituídos e promover ajustes fiscais para organizar as finanças públicas. E é justamente neste contexto que Mano falou à Tribuna Independente. O ex-governador discorre sobre sua participação nesse capítulo histórico da política recente do Estado.

Mano faz questão de ressaltar que, enquanto vice-governador, apontava soluções, porém não detinha o “poder da caneta”. Disse que respeitava as decisões de Suruagy, embora, segundo ele, as contestasse e tenha chegado a alertar sobre a reação de servidores, assim como acompanhou de perto os avanços da crise política que culminara com a sua renúncia em 1997.

O ex-governador elenca que a situação de profundo descontrole ocorrera por “falta de pulso” e tomadas de iniciativas por parte de Suruagy.

“A governabilidade ficou cada vez mais comprometida devido aos graves desencontros com o Poder Judiciário e com o Governo Federal, que acabou suspendendo as verbas federais à exceção dos recursos constitucionais, a exemplo do Fundo de Participação dos Estados [FPE]. Todas as obras foram paralisadas. Não havia entendimento do Governo do Estado com o Governo Federal. Internamente, a despesa era maior que a receita, além de outros problemas que surgiam diariamente, como a insegurança, crimes, roubos e assaltos a bancos. Tudo isso gerou uma grande insatisfação generalizada no Estado”, elenca Mano.

ENXURRADA DE AÇÕES

Para Mano, a crise se aprofundou quando servidores públicos e fornecedores passaram a não receber salários e valores contratados junto ao Governo de Alagoas.

“Se já havia um grande problema, a falta de pagamento aos servidores e fornecedores acarretou numa enxurrada de ações contra o governo na Justiça. Sem entendimento com o Judiciário, a bola de neve apenas crescia. Para ser mais um complicador, o Senado Federal aprovou uma resolução que não permitia o envio de verba a Alagoas por não cumprir o que determinava a Constituição, que naquele caso era não pagar salários”, resgata.

Segundo ele, era necessário, à época, executar medidas que contrariavam interesses, principalmente ao envolver os polpudos rendimentos das usinas de cana-de-açúcar que não contribuíam com o pagamento do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Mano sustenta que o “Acordo dos Usineiros”, formalizado pelo então governador Fernando Collor, foi preponderante para o agravamento da crise econômica em Alagoas porque naquele período o setor sucroalcooleiro contribuía com 56% da receita bruta do Estado.

“Daí, o Governo Federal enxergou justamente dessa forma: se Alagoas renunciava uma receita de 56% de seu setor econômico mais importante, então não havia a necessidade de ir para Brasília angariar mais recursos. Era uma situação até incoerente”, destaca.

Mano também faz alusão ao início do governo Divaldo Suruagy, que pegou um Estado já combalido e, mesmo assim, por articulação do secretário da Fazenda, José Pereira de Souza, aprovou o aumento salarial de 100% dos secretários. Ele diz ter sido contrário à medida. “Não foi feito nem ajuste fiscal, tampouco qualquer arrumação para que Alagoas se desenvolvesse. Infelizmente, apesar de ser um homem muito inteligente, Suruagy não teve a capacidade de reagir mediante os problemas. Foi um tremendo desastre porque as greves surgiram posteriormente devido aos atrasos salariais entre seis a oito meses, a depender da categoria”, lembra.

Poder da caneta chega às mãos de Manoel Gomes de Barros

A possibilidade de intervenção federal no ano de 1997 em Alagoas já poderia ser sentida pelo governo estadual e, segundo Mano, o decreto já estava pronto no Congresso Nacional. A medida não se transformou em realidade porque a Constituição Federal diz que quando um Estado estiver sob o comando administrativo federal, nenhuma emenda constitucional poderia ser votada, o que acabaria atrasando as reformas administrativa e da Previdência em plena tramitação na Câmara dos Deputados, à época.

Para Mano, a renúncia de Suruagy era a saída para findar a crise política e econômica. Embora houvesse respeito mútuo entre eles – como fez questão de destacar à Tribuna Independente –, as divergências de opinião eram cada vez mais visíveis entre o governador e o vice.

Com a renúncia de Suruagy ao cargo, Mano assumiu o governo no mesmo 17 de julho de 1997. À reportagem, o ex-governador disse não ter hesitado em colocar em prática o planejamento que ele tanto havia aconselhado a Suruagy.

“No dia seguinte, fui ao Rio de Janeiro encontrar o presidente da República. À época, era o Fernando Henrique Cardoso. Ouvi dele que ajudaria Alagoas e me comprometi que tomaria medidas, mas precisaria de recursos para pagar a folha salarial atrasada em mais de oito meses. Em seguida, mantive contato com o Judiciário para recompor a harmonia entre os poderes e chegamos a um acordo para contornar as ações impetradas contra o Estado”, discorre Mano.

Após a retomada de articulações com Judiciário e Governo Federal, a questão salarial voltou ao foco. A federalização da Companhia Energética de Alagoas (Ceal) foi uma das saídas como garantia de ativos para conseguir recursos e pagar  salários.

“Fizemos uma reavaliação da Ceal porque ela devia mais do que valia. A Eletrobras chegou a Alagoas e os recursos, na ordem de R$ 380 milhões, aportaram aos cofres do Estado, especificamente para o pagamento de pessoal. Acredito que ficou faltando 15%. Posteriormente, passamos a pagar os servidores rigorosamente em dia. Houve ainda a retomada das obras do Governo Federal que estavam todas paradas. Com pouco mais de 30 ou 40 dias, o Estado voltou a pagar porque estabelecemos prioridades”, relembra o ex-governador.

A questão econômica e de segurança pública voltou ao debate durante as tratativas  junto a Fernando Henrique Cardoso. Mano cita que os senadores Renan Calheiros, Teotonio Vilela Filho e Guilherme Palmeira foram importantes na condução de cada encontro com o primeiro escalão de Brasília, principalmente quando as negociações ameaçaram ser paralisadas numa reunião com o então chefe da Casa Civil da Presidência da República, Pedro Parente.

“Ele [Pedro Parente] garantiu a ajuda necessária para Alagoas, no entanto queria realizar uma série de indicações nas secretarias do governo. Claro que discordei de imediato. Por pouco quase retornamos à situação de litígio com o Governo Federal. Novamente, os senadores alagoanos promoveram um encontro e desta vez as tratativas funcionaram com o Pedro Malan [então ministro da Fazenda]”, completa.

O combate à criminalidade, outro peso na gestão de Suruagy, segundo Mano, saiu da teoria para a prática. Uma força-tarefa com apoio do Ministério da Justiça, na ocasião comandado por Renan Calheiros, acabou desmantelando a temida “Gangue Fardada”, bando de policiais militares que negociavam carros roubados e assassinavam por encomenda, que tinha na linha frente o coronel Cavalcante.

“Todo o Estado de Alagoas sabia quem era o comandante dessa organização criminosa que vivia aterrorizando as pessoas. Quando assumi, tomei imediatamente a posição acabar com ela. A Polícia Federal, o Poder Judiciário e o Ministério da Justiça foram essenciais. Demiti o comandante da Polícia Militar, que era um coronel do Exército, além de realizar uma série de outras mudanças. Tomamos a decisão política de determinar o fim dessa organização criminosa”, destaca.

Embora tenha sido um dos atos mais importantes de sua gestão,  ele acena que a partir do 17 de julho de 1997 as medidas mais relevantes foram relacionadas ao ajuste fiscal para ordenar as despesas de forma responsável em Alagoas.

Mano ressalta que deixou o governo sem processos e com o servidor público com os salários em dia. À reportagem, descartou traições políticas ao tratar sobre a sua derrota quando tentou disputar um novo mandato de governador em 1998.

“Vai entender. Perdi a eleição com 70% de aprovação da população alagoana. O 17 de Julho foi o ápice da esquerda no Estado e acredito que a minha ligação com o governador Suruagy teve peso nessa derrota. Cumpri o meu dever enquanto governei Alagoas”, finaliza.

Mano recebeu a maioria de votos no interior do Estado, mas perdeu na capital alagoana naquela eleição.