Polícia
Polícia investiga golpe envolvendo compra e venda de rim na Bahia
Perfil que oferece fortuna por órgão foi denunciado pelo governo; entenda
Está a fim de ganhar US$ 500 mil? Convertendo, dá algo em torno de R$ 1,6 milhão. Além do dinheiro, há uma viagem para outro país sem precisar se preocupar por passagens ou hospedagem. Mas a proposta não é à toa - e a viagem não é de férias. O objetivo é salvar a vida de alguém que pena na fila do transplante. E aqueles US$ 500 mil é o que se paga por um órgão. Seu rim, mais especificamente. Você tem dois, né? Não deve ter problema. E aí, topa?
Traduzida em bom português, essa é a proposta feita na última segunda-feira (5) num grupo do Facebook sobre transplantes na Bahia. O autor do texto é um rapaz chamado Craig Jonhson, supostamente da Nigéria, interessado em comprar um rim. Ele fez a proposta para os cerca de 40 mil membros da página “Transplantes Bahia”. Somente no estado, há 838 pessoas esperando por um rim e, no ano passado, 1.131 morreram enquanto aguardavam pelo órgão. Uma pessoa chegou a se interessar e se colocou à disposição para vender o órgão.
Virou caso de polícia. As imagens com a proposta de Craig Jonhson foram levadas ontem ao Grupo Especializado de Repressão aos Crimes por Meios Eletrônicos (GME), da Polícia Civil da Bahia, que vai investigar. É que a página onde a proposta de compra do rim foi feita pertence à Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). A coordenação de comunicação digital da pasta desativou os comentários e excluiu a postagem, depois de dois dias.
Estelionato De acordo com o delegado João Cavadas, que coordenada a GME, a linha de investigação é de que se trata de uma tentativa de estelionato, e não de tráfico internacional de órgãos.
"Na maioria das vezes não existe a comercialização do órgão propriamente dito. O que existe é um golpe, um estelionato. O autor da oferta pede um valor antecipado para que o fato seja consumado. Isso funciona com veículo, com passagem aérea, ofertas para comprar carro com 50% de desconto", cita Cavadas.
"O objetivo maior é ludibriar a pessoa, para que ela faça um pequeno depósito e, assim, levar o dinheiro", explicou.
E é exatamente isso que a proposta inclui: um pagamento antecipado de R$ 400 para um cadastro na Fundação Nacional do Rim (NKF). Esse é o primeiro registro de tentativa de estelionato com venda internacional de órgão, de acordo com o delegado, feito na Bahia. Após receber a denúncia da Sesab, a delegacia solicitou dados cadastrais de Craig Jonhson. Os próximos passos são quebrar o sigilo judicialmente e identificá-lo através do IP.
Cavadas ressaltou que há a possibilidade de Craig não ser da Nigéria - e nem ter essa identidade. “Essas pessoas se escondem através de provedores hospedados na Ásia, para dificultar a identificação”, disse. A orientação para a população é que “não fiquem assustados, porque (o tráfico de órgãos) não procede”. “Não cliquem, não façam cadastros, não mandem e-mails. Isso não existe e, além de ilegal, será vítima de estelionato”, explicou.
A proposta Ontem, a reportagem do CORREIO entrou em contato com o dr. Hanandex, o médico que representa, de acordo com a publicação de Craign, o Hospital Geral de Ikeja, em Lagos, na Nigéria, onde o procedimento seria feito. Por e-mail, o contato foi quase imediato. Menos de dez minutos depois da primeira mensagem, o suposto médico já explicava os trâmites para a negociação pelo órgão e as exigências para a cirurgia.
Cruzar o Atlântico e desembarcar em Lagos, na África Ocidental, pareceu mais fácil do que se imagina. “Toda a documentação necessária está em ordem de acordo com a política de transplante do ato 21 do Decreto Constituição de 2007. Você deve estudar os termos abaixo e condições corretamente antes que possamos avançar melhor (sic)”, dizia o e-mail, aparentemente traduzido para o português por uma ferramenta online.
Uma vez de acordo com os termos, o dono do rim a ser vendido precisava preencher dados como nome, data de nascimento, tipo sanguíneo e o país de origem. Entre as condições para fazer o transplante estão ser maior de 18 anos, ser do país declarado e, em hipótese alguma, desistir do processo de “doação”. Caso contrário, será levado ao Tribunal de Justiça.
Os termos 10, 11 e 12 chamam ainda mais atenção: o suposto médico afirma estar disposto a comprar o rim e deixa claro que metade do dinheiro será pago antes da operação. A outra metade seria paga depois do procedimento e transferida para uma conta bancária aberta pelo “doador” após o cadastro na NFK - aquele que custava R$ 400. Metade seria reembolsada. Ou não.
Dinheiro fácil Uma busca rápida no Google mostra que há mais pessoas decididas a comprar um rim. O CORREIO entrou em contato com um deles e, dessa vez, o interessado, o dr. Michael Baldwin, dizia ser dos Estados Unidos e representar o Iowa Lutheran Hospital. Bom, o hospital aparentemente existe e, segundo página oficial, está localizado em Des Moines, no estado americano da Iowa. Já Michael é um ator e produtor americano - ou um personagem de seriado com o mesmo nome interpretado por Christian LeBlanc.
O contato aconteceu de forma rápida. Em menos de cinco minutos, o suposto médico americano respondeu a mensagem da nossa equipe via WhatsApp: “Ok, se você está qualificado para vender um rim, nós compraremos um rim de você e nós pagamos a soma de 500 mil [dólares] por um rim (sic)”. Assim como no caso da Nigéria, o comprador assegura pagar as despesas da viagem.
A nossa equipe encerrou o contato com os supostos especialistas quando foi solicitado o envio de um documento com foto, identidade ou passaporte digitalizados - um documento que comprovasse quem estava do outro lado da tela. Paramos por aí.
Luta por um rim Enquanto alguns agem de má-fé, 838 pacientes esperam por um transplante de rim na Bahia, segundo levantamento da Sesab. Eles querem uma chance de se livrar de uma rotina desgastante e dolorosa causada pelas quatro sessões de hemodiálise realizadas por semana para substituição e limpeza do sangue, que deveria ser feita pelo rim saudável.
Enquanto há uma grande espera, a taxa de solidariedade das famílias andam lá embaixo: apenas 38% das famílias baianas autorizam a doação de órgãos ou tecidos de entes aptos a cedê-los após a morte.
Aliado a isso, a quantidade de transplante de rins no estado está bem abaixo do esperado: a expectativa da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) era que 917 transplantes de rim fossem realizados em 2017 na Bahia. No entanto, apenas 137 foram feitos, ou seja, 14,9% do total.
Quem esperou durante quatro anos pelo rim saudável foi José Vasconcelos, que se tornou doente renal por conta de fortes medicamentos que tomava contra diabetes e para controlar a pressão arterial. Ele conta que logo após iniciar o tratamento de hemodiálise, fundou a Associação dos Renais Crônicos da Bahia.
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