Interior
'A gente não tem mais orla, a gente tem ponto de visita': a Rota dos Milagres e a espoliação silenciosa no litoral norte de Alagoas
Comunidades tradicionais resistem à expulsão silenciosa no litoral de Alagoas
No povoado Lajes, em Porto de Pedras (AL), a fala de João, jangadeiro e filho de pescador, resume o drama que se repete ao longo da chamada Rota Ecológica dos Milagres: “A gente não tem mais orla, a gente tem ponto de visita. O pescador que levava dez minutos pra chegar na praia, hoje leva quase uma hora. Os acessos centenários estão sendo fechados pelos empreendimentos. A gente está sendo espremido”.
O que João descreve não é um caso isolado. É o retrato atual de um modelo de desenvolvimento que, em nome da “preservação” e do “turismo de luxo”, vem redesenhando o território e empurrando comunidades tradicionais para fora de suas próprias praias. A Rota Ecológica — que abrange os municípios de Porto de Pedras, São Miguel dos Milagres e Passo de Camaragibe — foi transformada, ao longo da última década, em vitrine do turismo “ecossustentável” no Nordeste. Mas por trás das piscinas de borda infinita e das diárias de cinco mil reais, há uma contradição gritante: o território vendido como paraíso natural é o mesmo onde a maioria da população vive com até meio salário mínimo e sem acesso a esgotamento sanitário.
Segundo dados do IBGE (2010–2018), apenas 3% das residências em Passo de Camaragibe, 8% em São Miguel dos Milagres e 4% em Porto de Pedras possuem esgotamento sanitário adequado, resultando em uma média de apenas 5% na Rota Ecológica. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) varia entre 0,53 e 0,59 — entre os mais baixos de Alagoas. Mais da metade da população sobrevive com renda inferior a meio salário mínimo, e os índices de educação básica estão entre os piores do estado: em 2017, Porto de Pedras ocupava a 97ª posição entre 102 municípios alagoanos no IDEB dos anos finais do ensino fundamental. Mesmo assim, o PIB per capita de Porto de Pedras, impulsionado pelo turismo, ultrapassa R$ 34 mil — o quarto maior de Alagoas, e São Miguel dos Milagres e Passo de Camaragibe superaram R$ 17 mil, cada um. O que os números revelam é um paradoxo: o crescimento econômico convive com a estagnação social, e a riqueza produzida pelo território não retorna para quem o habita.
A geógrafa Rennisy Rodrigues Cruz, em pesquisa publicada pela Revista Ciência Geográfica, em 2022, chama atenção para o que define como “acumulação por espoliação” — conceito de David Harvey que descreve a apropriação privada de bens comuns e o deslocamento forçado de populações tradicionais. Na Rota dos Milagres, esse processo é visível: praias, restingas e trilhas se tornam propriedades muradas; acessos públicos são desviados; e os moradores, antes protagonistas da pesca e do turismo artesanal, passam a ser tolerados apenas como parte do “cenário autêntico” vendido aos visitantes.
Pesquisas acadêmicas recentes descrevem esse processo como uma forma de despossessão — a retirada sistemática de territórios e direitos das populações locais em nome do capital imobiliário. A especulação sobre o solo litorâneo elevou o custo de vida, encareceu alimentos, moradia e transporte, e restringiu o acesso à água e ao mar. O resultado é um ciclo de exclusão que combina precarização do trabalho, aumento das desigualdades e perda de soberania alimentar. A população local, majoritariamente negra e de origem pesqueira, é deslocada do centro das decisões e transformada em mão de obra barata para o mesmo sistema que a expulsa.
Esse fenômeno se enquadra no que movimentos sociais e pesquisadores chamam de racismo ambiental — quando os impactos territoriais e ecológicos recaem desproporcionalmente sobre comunidades tradicionais e populações negras, reproduzindo estruturas coloniais sob o verniz do “progresso”.
João relata que o fechamento das vias começou há cerca de dez anos, junto à chegada das primeiras pousadas de luxo. “Eles desviaram as estradas centenárias, fizeram novos acessos, mas cada vez mais longos e controlados. A gente tinha uma orla de Lajes até o Curtume, era estrada de areia, mas era orla. Hoje, a gente só tem ponto de visita. O turista vai, tira foto e volta pra rodovia. Nós, que vivemos daqui, perdemos o direito de ir e vir.”
Sem espaço e sem resposta do poder público, os jangadeiros recorrem à Colônia dos Pescadores e ao Ministério Público, tentando barrar o avanço de empreendimentos que cercam a faixa costeira — muitos deles licenciados sob o argumento de “baixo impacto ambiental”. João diz que o município “pensa só no turismo”, ignorando o modo de vida local: “Eles é que deviam se adaptar à nossa região, mas é o contrário: querem que a gente se adapte ao que eles querem. A prefeitura não se manifesta. Quem tem dinheiro se instala e encontra brecha pra tomar o que é nosso.”
O Estado aparece como agente central na territorialização do capital. Sob o discurso do “ecoturismo”, a Rota Ecológica foi declarada Área Especial de Interesse Turístico (Lei Estadual nº 7.231/2011), priorizando a atração de investimentos privados em detrimento do uso coletivo do território. A legislação, ao invés de garantir a conservação e o acesso, institucionalizou a seletividade espacial — aquilo que o sociólogo Marcelo Lopes de Souza chama de “urbanização excludente em escala litorânea”.
Os efeitos são profundos. A pesca, que há gerações estrutura a economia e a cultura da região, vem sendo empurrada para a marginalidade. A atividade que sustenta famílias, alimenta comunidades e compõe a identidade local é agora tratada como incômodo visual. “A pesca não é só pra consumo, é cultura do nosso povo”, insiste João. “Mas estão tirando nosso espaço, nosso ganha-pão, nossa história. E quando a gente fala, eles agem como se fosse crime.”
A fala dele sintetiza o que pesquisadores como Haesbaert e Raffestin descrevem como disputa de poder territorial: o território não é apenas um espaço físico, mas um campo simbólico e político, produzido por relações de dominação e apropriação. Na Rota dos Milagres, o poder econômico transforma o território em mercadoria; o poder estatal legitima; e o poder simbólico — o da propaganda e do marketing — naturaliza. A natureza se converte em fetiche, e o “verde preservado” vira produto de luxo.
Mas o discurso da sustentabilidade é seletivo. Enquanto o Instituto Chico Mendes (ICMBio) mantém em Porto de Pedras uma base de proteção do peixe-boi marinho e programas de educação ambiental, o entorno se enche de condomínios e festas exclusivas, como o Réveillon dos Milagres, promovido pelo Instituto Tamo Junto — evento que movimenta milhões e fecha praias por dias. A coexistência entre a conservação oficial e a privatização efetiva revela a face contraditória do “milagre” alagoano: o território é protegido para o mercado, não para o povo.
Em meio a esse cenário, a Praia de Lages, uma das mais tradicionais áreas pesqueiras de Porto de Pedras, passou recentemente a integrar o monitoramento oficial da balneabilidade do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL). A inclusão, realizada em setembro de 2025, atendeu a uma solicitação conjunta do Ministério Público Federal (MPF) e da Prefeitura Municipal, apresentada durante uma reunião que também discutiu os índices da Praia do Patacho, já certificada com o selo internacional Bandeira Azul.
De acordo com a secretária municipal de Meio Ambiente, Flávia Rêgo, Lages foi inscrita na fase piloto do Programa Bandeira Azul, que busca aliar preservação ambiental, educação e turismo sustentável. A procuradora da República Juliana Câmara, que mediou o encontro, destacou a importância de estender o monitoramento para outras praias da Rota, afirmando que “o selo Bandeira Azul é um instrumento de incentivo à adoção de práticas sustentáveis e de valorização do turismo responsável”.
Após análise técnica, o IMA confirmou a inclusão definitiva da Praia de Lages no programa, identificando o novo ponto como Ponto 47.2 – Praia de Lages / Acesso Principal (em frente ao Quiosque Sol, Lua e Mar). As coletas estão sendo realizadas pela equipe da Gerência de Laboratório (GELAB), sob coordenação do consultor técnico Ricardo Oliveira César, e os resultados das análises microbiológicas e físico-químicas serão divulgados no Relatório de Execução de Análises (REA) nº 35.
Para os moradores, a medida representa um pequeno avanço institucional diante da ausência histórica de políticas públicas de saneamento e gestão costeira. A inclusão de Lages no monitoramento é vista como um reconhecimento tardio, mas necessário, de que a preservação ambiental não pode ser apenas vitrine turística. É também um direito das comunidades que vivem do mar — aquelas que, como lembra João, “estão sendo espremidas entre os muros e o oceano”.
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