Economia

Renda Brasil vira incógnita após Bolsonaro rechaçar espinha dorsal do programa

Ao custo anual de cerca de 19 bilhões de reais, abono consiste no pagamento de um salário mínimo a cada ano aos trabalhadores formais que ganham até dois salários mínimos

Por Reuters 26/08/2020 20h39
Renda Brasil vira incógnita após Bolsonaro rechaçar espinha dorsal do programa
Reprodução - Foto: Assessoria
A posição do presidente Jair Bolsonaro de descartar publicamente o uso dos recursos do abono salarial para vitaminar o Bolsa Família representa um tiro no coração do Renda Brasil tal qual estruturado pelo ministro da Economia, em novo capítulo do processo de desgaste sofrido por Paulo Guedes. Ao custo anual de cerca de 19 bilhões de reais, o abono consiste no pagamento de um salário mínimo a cada ano aos trabalhadores formais que ganham até dois salários mínimos, funcionando como uma espécie de 14º na suplementação de renda. A extinção do abono representava a espinha dorsal da focalização nos mais pobres pretendida por Guedes no Renda Brasil, já que o direcionamento de recursos para o Bolsa Família com o fim de outros programas teria um impacto muito menor. No total, a equipe econômica calculava um aumento de 21 bilhões de reais ao programa de transferência de renda, considerando também a incorporação do seguro-defeso e a limitação do Farmácia Popular apenas aos que tivessem inscrição em cadastro social do governo. A ideia era, com isso, aumentar a base de beneficiados e o valor pago a cada família. Em condição de anonimato, uma fonte do time apontou que, sem o pilar do abono, incrementar recursos para o Bolsa Família agora passa pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Pacto Federativo, para que haja desvinculação de gastos obrigatórios de modo que novas despesas possam ser criadas com respeito ao teto de gastos, que impõe limites ao crescimento total da despesa pública. Uma segunda fonte da equipe econômica reconheceu que, descartado o abono, será preciso “sentar e conversar” para calcular a validade ou não do esforço político de seguir adiante com uma proposta de focalização de programas no Renda Brasil sem que haja recursos tão vultosos para alimentá-lo. Na equipe econômica, a avaliação é que o abono acaba contemplando pessoas que estão empregadas e que estão no setor formal, em contraposição à população em extrema pobreza ou que não consegue trabalhar com carteira assinada, esses dois segmentos vistos como mais vulneráveis. O governo já havia sido derrotado na sua tentativa, durante a reforma da Previdência, de limitar o abono aos que ganham apenas um salário mínimo. Agora, a equipe de Guedes acreditava no sucesso da junção de programas no Renda Brasil, sob o argumento de que era necessário priorizar recursos aos que mais necessitavam, no rastro da destruição econômica deixada pela pandemia de Covid-19. Bolsonaro, contudo, expôs sua discordância ao pontuar nesta quarta-feira que a proposta do Ministério da Economia para o Renda Brasil estava suspensa e que ele não podia “tirar de pobres para dar para paupérrimos”, em referência à canalização dos recursos do abono para o Bolsa Família repaginado. A fala provocou imediata reação no mercado, com alta do dólar e queda da B3, a bolsa brasileira. Com a declaração, o presidente jogou em território incerto a estrutura do Renda Brasil, programa que havia sido prometido por Guedes para terça-feira desta semana, dentro de um anúncio de peso, apelidado nos bastidores de “Big Bang”, que viria para o reforço à economia no pós-coronavírus. A cerimônia acabou não acontecendo, em parte porque Bolsonaro queria um valor maior para o Renda Brasil do que os cerca de 250 reais propostos pela equipe econômica, tarefa que ganha contornos ainda mais desafiadores com sua recusa em mexer no abono. O episódio desta quarta-feira também ressalta a posição delicada de Guedes enquanto fiador da política econômica e responsável pela construção de uma extensão do auxílio emergencial e sua aterrissagem num Renda Brasil compatível com a regra do teto, vista como única âncora fiscal do país. Caso o valor do auxílio caia pela metade ante os atuais 600 reais mensais, sua prorrogação até o final do ano, como prometido por Bolsonaro, ainda custará aos cofres públicos 100 bilhões de reais. Se a porteira para um gasto desta magnitude está aberta neste ano pela emenda do Orçamento de Guerra, que libera despesas relacionadas ao enfrentamento da crise da pandemia da limitação do teto de gastos, no ano que vem o governo não terá a mesma prerrogativa para turbinar os gastos na área social. Ao contrário do ministro, que segue empunhando publicamente o discurso da responsabilidade fiscal, Bolsonaro admitiu recentemente que havia discussões dentro do governo para furar o teto de gastos, minimizando-as como apenas um debate. Colhendo os frutos políticos da recomposição de renda garantida pelo auxílio emergencial, o presidente também tem viajado cada vez mais pelo país para inauguração de obras. Junto à saída recente de importantes auxiliares do Ministério da Economia, os ruídos entre Guedes e a ala desenvolvimentista do governo se intensificaram nas últimas semanas, alimentando especulações sobre a eventual saída do ministro do cargo. Procurado, o Ministério da Economia não se pronunciou sobre as declarações de Bolsonaro.