Cidades
Viva Hermeto! Da infância ao estrelado
Ilustre alagoano nascido em Lagoa da Canoa deixou marca mundial na música instrumental
O menino nordestino, que nasceu lá em Lagoa da Canoa, no interior do mato de Alagoas, se transformou no bruxo dos sons, com a criação da Música Universal, “onde cabe todos os estilos e tendências”. O planeta Terra foi sacudido pelo novo som, que começou ainda quando era pequeno, no sopro de uma flauta artesanal que ele mesmo fazia, para brincar com os amigos, em banhos de rio e cachoeiras. O menino se chamava Hermeto Pascoal, que virou multi-instrumentista, cantor, compositor, e maestro, que com 89 anos ainda vivia voando pelos cinco continentes, com sua banda musical, fazendo arte, cultura e diversão.
Mas no sábado passado, 13 de setembro, no Hospital Samaritano, Rio de Janeiro, onde morava em um sítio no bairro de Bangu, Hermeto deixou o mundo mais triste com sua partida para o olimpo dos deuses e dos grandes maestros. Pelo meio do caminho ficaram partituras musicais do genial músico, bem como seus duetos espetaculares com Elis Regina, Miles Davis e toda turma do jazz internacional. No mesmo dia de sua morte, a pedido do próprio Hermeto, sua banda cumpria a agenda em um show na cidade Belo Horizonte, já sem a batuta do mestre.
Hermeto nasceu em 22 de junho de 1936, no sítio Olho d´Água, em Lagoa da Canoa, município do agreste alagoano. Hermeto trouxe com ele no sangue, a música, o ritmo e a sonoridade herdadas de sua família. O pai, Pascoal José da Silva, Seu Pascoal, trabalhava na roça, e era reconhecido como o melhor sanfoneiro da cidade. A mãe, Vergelina Eulália Oliveira, a Dona Divina, era uma campesina e dona de casa, mas também tocava zabumba, o grande tambor da música tradicional nordestina.
Diferente de quase todo mundo, Hermeto nasceu albino, de cor branca leitosa, sem o pigmento denominado melanina, que dá cor à pele e protege da radiação ultravioleta do Sol.
Seus olhos verdes-claros nunca esconderam os graves problemas de visão. Na infância nunca usou óculos, e para enxergar bem, tinha que fechar um dos olhos. Quando andava a cavalo, ou ajudava o pai na roça, usava sempre um chapéu. Na adolescência, porém, ele teve que usar aqueles óculos de fundo de garrafa. Uma das consequências do albinismo é a fraqueza do nervo óptico, com deslocamento da retina e não fixação do olhar. “Mas eu vejo tudo, muito além da conta!”, brinca o albino mais conhecido do Brasil.
Hermeto (com som agudo no segundo “e”: Herméto) sempre foi fascinado pelos sons da natureza desde pequeno. Brincalhão, alegre e espirituoso, tudo em que ele tocava transformava em som e música. Aos sete anos, Hermeto Pascoal já se ariscava na sanfona de sete baixos do seu pai. Ao ver o talentoso filho tocando escondido seu fole, Seu Pascoal falou:
- Você vai agora tocar numa sanfona maior, vou vender um boi ou uma vaca para comprar uma mais bonita para você!
As flautas e pifes ele mesmo fazia, manobrando uma faquinha, cortando os caules da carrapateira de jerimum e abrindo furinhos para poder soprar. Mas ele não parou nas flautinhas, usava as sobras do ferro-velho do avô ferreiro Sena da Bolacha, e tirava sons batendo os metais em um varal improvisado. E, assim, o garoto albino de nascença, mergulhou no universo musical de sua infância. E, os sons da natureza foram os primeiros a habitarem a mente dele.
Como um aprendiz de bruxo, ele fazia mágicas com a voz – imitando porcos, perus, galinhas e outros bichos – e com suas mãos tirava sons incríveis tocando em bacias, chaleiras, prato, garfo, garrafas, a casa inteira da família. Para o “galego”, o som vindo dos animais, dos objetos e da voz humana “é instrumento musical esperando para ser tocado”.
Não é por demais comparar os mágicos dos contos infanto-juvenis, com Hermeto e seu apelido de bruxo. Aquele menino de Lagoa da Canoa tinha a força e o poder de encantar as pessoas com sua alegria incontida, sua intuição e inteligência. Os amigos e colegas o chamam de campeão.
“Assim como os pássaros, somos pássaros também” - HERMETO PASCOAL
Criado na roça, Hermeto vivia solto tomando banho na lagoa com os amigos, experimentando diferentes sons em diferentes ambientes. Passava o dia mergulhando e tocando flauta, explorando as sonoridades do instrumento de acordo com a proximidade com a água, até mesmo afundava com o instrumento até fazer barulho nas bolhinhas que submergiam. Mas ele aprendeu mesmo, de verdade, com os artistas populares de tradição oral: es emboladores, repentistas e violeiros das ruas e feiras da região, como Vicente Cego e Juvenal Tatu.
Seguia feliz e saltitante com algum instrumento na mão, para tocar com a família e os amigos nas feiras, em casamentos, batizados e aniversários. O povo se animava com a música no ar, e dançava xotes e xaxados puxados por Seu Pascoal na sanfona, Dona Divina na zabumba, o irmão José Neto na sanfona e ele, Hermeto, no triângulo. A música sempre esteve presente no cotidiano da casa dos Pascoal, algo tão natural como beber água e cuidar do roçado.
A região onde Hermeto vivia, em Lagoa da Canoa, era habitada pelos índios Kariri Xocó, que estavam por todos os lados do sítio Olho d´Água, das cidades sertanejas até o Baixo Rio São Francisco. À noite, em sua casa, um local desabitado e sem luz elétrica, no alto de um morro, Hermeto se deitava no capim olhando as estrelas e ficava ouvindo os índios na mata, com seus cantos e suas danças, que ecoavam para ele madrugada afora.
A religiosidade e o que se passava na imaginação do povo, sempre estiveram no universo musical de Hermeto, nos dez primeiros anos de vida, e que seguiram com ele em sua memória afetiva. Os temas estavam sempre associados à sua música: crendices, superstições e histórias de santos e demônios, incorporados nos lendários Padre Cicero – de quem é devoto - e Lampião, o líder do Cangaço, formavam os mistérios de sua infância.
Quando tinha 11 anos, ainda garoto, em idade escolar, mas com o apoio dos pais, iniciou sua vida de músico profissional, formando uma dupla com seu irmão mais velho, José Neto, também albino. A banda era chamada de Os Galegos do Pascoal, revezando o fole e o pandeiro em bailes da região.
“Como será a cidade grande? Como será o som do mar” - HERMETO PASCOAL
Em 1950, aos 14 anos, estreou com o irmão José Neto nas principais rádios de Recife. Na capital pernambucana criou o trio “O mundo pegando fogo”, inspirado pela cor dos longos cabelos crespos e avermelhados do trio de músicos albinos: Hermeto, seu irmão e o já famoso cantor e sanfoneiro, Sivuca – Severino Dias de Oliveira (1930-2006), que também era albino, que sempre era confundido com Hermeto.
Em 1961, mudou-se para São Paulo, indo trabalhar como pianista da Boate Chicote. Em 1966, passou a integrar o Quarteto Novo, juntamente com Téo de Barros, Airto Moreira e Heraldo Monte. Nesse tempo desenvolveu e aperfeiçoou sua técnica como compositor, arranjador e multi-instrumentista (ele toca com perfeição mais de 20 instrumentos musicais de uma orquestra, e se tornou um exímio pianista).
Em 1967, teve sua primeira composição gravada, “O ovo”, no LP “Quarteto Novo”, lançado pela Odeon, primeiro e único disco do grupo. No mesmo ano, o Quarteto Novo acompanhou Marília Medalha e Edu Lobo na interpretação de “Ponteio”, composição de Edu Lobo e Capinam, vencedora do III Festival de MPB da TV Record, em São Paulo.
No final dos anos 1970 e início dos 1980, Hermeto Pascoal faz decolar sua carreira internacional, fazendo shows e gravando discos que o fizeram brilhar no mundo do jazz, e foram chegando grandes discos de estúdio como Slave Mass (1977); Zabumbê-bum-á (1979); Cérebro Magnético (1980); e o antológico Hermeto ao vivo em Montreux (1980), quando fez o famoso dueto com Elis Regina, em Asa Branca (1979).
Hermeto passou três anos nos Estados Unidos, a convite de Airto Moreira que incluiu em um de seus discos a música Galho de Roseira, com arranjo de Hermeto. Segundo a crítica inglesa, foi a melhor música do ano, fato que impulsionou o seu reconhecimento artístico no exterior. Em Nova Iorque, ao se apresentar em um show. Miles Dives, o estrelar trompetista norte-americano, estava na plateia. Ele gostou tanto do que viu e ouviu que convidou Hermeto para participar de um concerto em Washington. O resultado deste concerto foi o disco Live Evil, que traz duas composições de Hermeto, “Capelinha” (Little Church) e “Nem Um Talvez”.
Sua fama correu o mundo, e o “galego” se tornou uma estrela da música internacional. Ele levou na bagagem tudo que aprendeu com a natureza, com os animais, com os índios, com suas experimentações de bruxo. Entre essas invenções, estava a Música Universal. Em 2008, Hermeto criou os Princípios da Música Universal, que entre suas teorias afirmava que “a diversidade é seu princípio básico, e cabe todos os estilos e tendências; a harmonia é mãe da música, o ritmo é o pai e a melodia ou o tema é o filho; bom gosto não se aprende na escola; a prática é quem manda”.
O mundo da música instrumental nunca mais foi o mesmo desde que Hermeto Pascoal surgiu com seu estilo único e genial. Músico autodidata e de formação intuitiva, ele misturou e modernizou os ritmos nacionais como o samba, o baião, o xaxado, a bossa nova, e se transformou em um ícone pop mundial.
O “Bruxo dos Sons” fez sucesso em vários lugares do mundo. Além do Festival de Montreux, na Suíça, e do japonês Live Under The Sky, em Tóquio, Hermeto criou a “Suíte Pixitotinha”, reproduzida pela Orquestra Sinfônica de Copenhague, na Dinamarca. Alemanha, Inglaterra, Argentina e Portugal também receberam as turnês e apresentações internacionais do alagoano.
Depois de mais de 60 anos na estrada, o músico continuava trabalhando a todo o vapor. Em 2017 ele recebeu o título de Dr. Honoris Causa pela New England Conservatory em Boston, nos Estados Unidos. Em 2019 o músico alagoano foi o vencedor do Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa, em Las Vegas (EUA), quando confessou: “Esse Grammy veio dos cantadores populares, do povo das feiras de Alagoas, da turma do ganzá”.
Em 2023, aos 87 anos, Hermeto Pascoal recebeu o maior título da escola de ensino superior Julliard, Doutor Honoris Causa. A cerimônia foi no Lincoln Center, em Nova York. Quem entregou o título a Hermeto foi o também músico Wynton Marsalie, o trompetista norte-americano de Miles Davis —lendário nome da história do jazz, que definiu Hermeto como o “crazy albino” (louco albino).
THE TOWN
Em setembro de 2023, foi uma das atrações da primeira edição do festival The Town no Brasil, em São Paulo, de público majoritariamente jovem. Mas, o menino que virou o bruxo dos sons, e inventou a Música Universal, continua conhecido por sua genialidade musical e sua capacidade de transcender os limites dos gêneros musicais. Ricardo Cravo Albin, jornalista, historiador, musicólogo brasileiro, pesquisador, assim definiu Hermeto Pascoal, em sua maior obra: o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, com cerca de sete mil verbetes e referência na área musical.
“Hermeto Pascoal é albino, baixinho, gordinho e quase cego. Em compensação é gênio. E gênio com G maiúsculo por duas razões. Primeiro porque ele – só ele – é capaz de inventar os sons mais originais do mundo para recriar a música. E depois porque ele administra esses sons com extrema sutileza, elegância e precisão. Ou seja, Hermeto é o maestro de si mesmo, um homem-orquestra. O bruxo das Alagoas faz tudo. Ou seja, compõe músicas e toca todos os instrumentos”.
A cantora Zélia Duncan chamou Hermeto de “mestre absoluto” e o definiu como “o filho preferido da deusa música”. Já a pianista e compositora Leila Pinheiro lembrou da música Chá de Panela, uma parceria com Aldir Blanc em que homenageiam Hermeto: “Essa canção é uma reverência à genialidade de Hermeto, que sempre nos mostrou como fazer da música uma extensão do próprio espírito.”
ÚLTIMA SESSÃO EM MACEIÓ
Um dos últimos momentos de Hermeto Pascoal em sua terra natal, foi em Maceió, novembro de 2024, no Festival Carambola, em um grande palco na Praia de Jacarecica. Com 88 anos, ele subiu ao palco para encantar a enorme plateia presente. Hermeto estava feliz, junto com a banda, quando fez intervenções com chaleira, um mini berrante e até tocando uma taça cheia d’agua. Sua banda, competentíssima, passeou pelo repertório do bruxo tocando de clássicos incontestes do quilate de “Papagaio Alegre” (1984) a canções novíssimas como o álbum Ilza Nova, contendo 198 partituras para a esposa Ilza, falecida em 2000.
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