Cidades
Bar da Dona Nete foi lendário corredor etílico-cultural de Maceió
Proprietária do lendário 'Bar dos Jornalistas' dos anos 70, 80 e 90 e point onde baixavam também advogados, intelectuais, políticos e quem apreciasse uma boa comida caseira, regada a cerveja e uma dose de cachaça, a ex-empresária relembra histórias
![Bar da Dona Nete foi lendário corredor etílico-cultural de Maceió](http://img.tribunahoje.com/f_B-BjMZ3Kdj7kQ3EV0BzfV0Hqg=/840x520/smart/s3.tribunahoje.com/uploads/imagens/dona-nete-91-anos-a-calheiros-19-capa.jpg)
Vai longe o tempo, nos idos de 1960, que se instalou no coração de Maceió um certo botequim que se notabilizou por mais de 20 anos como o point dos burburinhos de tudo que acontecia de relevante na capital e em todo Estado de Alagoas. Fundado por Ionete Freitas Melo, hoje com 91 anos, uma pernambucana de Garanhuns, “Dona Nete”, como carinhosamente ficou conhecida, aportou por essas bandas em 1960 e, em 1967, empreendeu e colocou um negócio que revolucionou a seara gastronômica e etílica da capital.
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Embora o nome do negócio fosse “Ponto Frio”, o local se estabeleceu e foi rebatizado pelos boêmios de plantão como o “Bar da Dona Nete”, onde virou uma espécie de “senadinho”, frequentado por jornalistas, políticos, poetas e intelectuais. Enfim, com uma clientela dessas, os assuntos e burburinhos sobre a vida da cidade viraram pauta, prato cheio para jornalistas que trabalhavam aos redores do negócio. Por ironia do destino, o Bar da Dona Nete foi também batizado como “Bar dos Jornalistas”. Mas o apelido não foi por acaso. O Bar da Dona Nete ficava a um quarteirão do Jornal de Alagoas, a dois do Jornal Opinião e a três da Tribuna de Alagoas, que durante alguns anos funcionou na Rua do Sol. Por lá ainda ficavam a redação da Gazeta de Alagoas, situada à época na Rua do Comércio, bem próxima ao “Nete”. Já o Jornal de Hoje funcionou na Rua Barão de Alagoas, a quatro ou cinco quarteirões. Para completar esse circuito “noticioso” no coração da cidade, por ali também ficava a sede do Sindicato dos Jornalistas, a duas quadras, na Rua Boa Vista.
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No livro “Panorama Cultural de Maceió”, do historiador alagoano Geraldo de Majella, há um capítulo especial dedicado ao Bar da Dona Nete em que o autor o denomina como “corredor etílico-cultural”, dos jornalistas, radialistas, revisores e gráficos, do pessoal dos jornais, isso sem contar os políticos, poetas e intelectuais. Verdade é que logo o recinto se constituiu na nata de boêmios que tinham no Bar da Nete um ponto de encontro e referência.
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Mas nem só de álcool vivia o famoso bar. As guloseimas - como o cheiro do tempero das carnes preparadas por ela que saia de sua cozinha entrava pelo bar e chegava à rua -, também atraíam quem passava por lá. A galinha guisada com cuscuz no café da manhã ou no almoço com farofa, o carneiro, o camarão também eram atração para quem não quisesse ou gostasse de beber. “Eu ia todo santo dia bem cedinho para o mercado fazer feira e abastecer o bar para café, almoço e jantar”, lembra Nete.
De acordo ainda com o historiador Geraldo de Majella, o Bar da Dona Nete foi criado para os jornalistas e, mais especificamente, para alguns jornalistas: a confraria era liderada por Noaldo Dantas, paraibano que chegou a Alagoas na década de 70, para dirigir o Jornal de Alagoas, à época o mais antigo em circulação no Estado. A turma era formada por Zito Cabral, experiente jornalista policial, originário da cidade do Pilar; Juarez Ferreira, Tobias Granja e Teófilo Lins completavam o quinteto. Segundo ele ainda, essa era “a formação básica e diária”. Jornalistas como Jurandir Queiroz, Rubens Jambo, Valmir Calheiros, Aldo Ivo, João de Deus, Nunes Lima, José Elias, Freitas Neto, Adelmo dos Santos, Roberto Vilanova e o jornalista militante da esquerda Nilson Miranda, que retornou a Maceió vindo do exílio na Europa em 1979, também integravam a confraria.
Amigo é coisa pra se guardar
No final dos anos 70, aporta em Maceió o jornalista gaúcho Bartolomeu Dresch, que logo se associaria à confraria dos jornalistas e adotou esta terra e nela viveu até novembro de 2021, quando faleceu de um infarto fulminante.
“Eu gostava muito daquele galego gaúcho também, o ‘Alemão’. Boa gente, era um ótimo contador de histórias. Quanta saudade, meu Deus!”, diz Nete, saudosa, ao lembrar de outro que ela chamava de “Galeguinho”, o fotógrafo José Demétrio, irmão de outro frequentador assíduo, o Josival Monteiro, conhecido na confraria dos jornalistas como “Jacaré”.
Outro que Nete se emociona e vai até às lágrimas ao lembrar é do amigo Francisco Guilherme Tobias Granja ou simplesmente “Tobias Granja”, jornalista e advogado, um dos melhores e mais requisitados da cidade – e assíduo frequentador do Bar, uma espécie de “filho da casa”. Tobias era um sujeito que agregava os amigos em torno de uma mesa para bom papo, exímio contador de histórias e bom humor.
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Mas esse bom humor teve fim no entardecer do dia 15 de junho de 1982, na Rua Augusta, Centro de Maceió. Tobias Granja foi abatido com um tiro na nuca quando tinha apenas 37 anos de idade. Seu assassinato foi atribuído a um tal “sindicato do crime”, organização com larga atuação em crimes de pistolagem no Estado.
“Incrível, mas o Tobias passou no bar umas duas horas antes de eu receber a triste notícia de sua partida”, revela Nete, ao não segurar as lágrimas e fazer questão de mostrar o velho retrato do jornalista pendurado na parede em um dos cômodos da casa.
E por lá eram exímios frequentadores também personalidades políticas como o ex-governador Guilherme Palmeira, que não dispensava sua cachacinha, e o folclórico deputado federal Albérico Cordeiro, que tinha um vozeirão que mais parecia um cantor de ópera, de tão grave e estridente que era sua voz, com um jargão que logo se notabilizaria entre o povão. “Cordeiro Trabalha!”. Por lá eram também assíduas figuras com o ex-prefeito de Maceió João Sampaio.
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No Bar de Dona Nete ainda baixava gente como o icônico Setton Neto, carismático Rei Momo de Maceió. Segundo o historiador Majella, Setton era o melhor garfo que já passou pelo estabelecimento de Dona Nete, por uma razão gastronômica. Era o gordo mais alegre da cidade e fazia jus a sua condição de monarca dos festejos carnavalescos.
Pedro Farias, um pai pra mim!
Dona Nete guarda em seu coração também dois grandes amigos que foram importantes para que seu Ponto Frio se estabelecesse no centro da cidade de Maceió. “O pai dos meus meninos botou uma casa de negócios, mas não deu muito certo. Aí resolvi botar um bar e fiz muita amizade graças a Deus que fez o negócio durar muitos anos. A ideia do bar foi minha e se chamava Ponto Frio, mas depois ninguém chamava Ponto Frio, era o ‘Bar da Nete’, conta.
Ela conta como foi ajudada a colocar o empreendimento de pé. “Foi o ex-governador Lamenha Filho. Cheguei a passar uma semana fechada por causa de coisas burocráticas. Mas ele soube e mandou o sobrinho dele resolver e consegui reabrir. E assim foi por muitos anos”, completa a ex-empresária.
Dos amigos da época e dos primeiros passos do bar em que resolveu empreender, Nete lembra-se com carinho também do fotógrafo Pedro Farias, que morava vizinho ao bar nas imediações do coração de Maceió. “Pedro Farias era um pai pra mim. Eu só consegui o meu apartamento por causa dele. Quando meu marido morreu, foi ele quem tomou a frente e me ajudou muito”, conta, ao se emocionar.
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Ao mesmo tempo que batia as fotos para esta reportagem, o repórter Adailson Calheiros, frequentador assíduo da Nete, recordava alguns fatos daquele início de sua carreira, na época das ‘vacas magras’ no jornalismo, de salário curto. “A Nete me ajudou muito quando chegava lá liso, algumas vezes, pois o salário era pouco. Nessas vezes, precisava almoçar ou fazer um lanche. Ela tranquilizava e dizia que eu podia consumir quando e quanto quisesse e pagasse depois, sem problema”, recorda-se Calheiros.
Dos fregueses mais assíduos do bar, os jornalistas Zito Cabral e Teófilo Lins sentiam tanta necessidade de apreciar a cachaça preparada por Nete, que não se faziam de rogados e não mediam esforços para apreciar as delícias do bar, mesmo quando ele estava de portas fechadas aos fins de semana. Os dois sempre davam um jeitinho de satisfazerem seus apetites, como revela Nete. “O seu Zito {Cabral} e o Téofilo {Lins} iam muitos aos domingos lá em casa pedir por tudo uma lapada da boa cachacinha, pois o bar não abria neste dia”, recorda Nete, ao rir da secura etílica dos dois jornalistas.
Jornalista desbrava o bar não pela bebida, mas pela “comida do céu”
No fim dos anos 1970, com a ditadura militar ainda em voga, apesar de um pouco mais “branda”, ainda não era comum que as mulheres vez por outra frequentassem um bar, mesmo que fosse somente para fazer uma refeição. Uma das primeiras a romper com esta espécie de tabu no ambiente até então machista foi a jornalista Eliane Aquino.
“Conheci o Bar da Dona Nete em 1979, assim que iniciei como repórter do Jornal de Alagoas. Era o point para jornalistas, advogados, intelectuais, alguns políticos e quem apreciasse uma boa comida caseira, uma cerveja gelada ou uma dose de cachaça no ‘reforço’ e, sobretudo, um bom debate sobre política, jornalismo, futebol e amenidades”, relembra Eliane.
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“Enfim, era um centro de entretenimento para afogarmos a tensão da rotina jornalística do dia-a-dia. O local era pequeno e, muitas vezes, víamos os fregueses na calçada em discussão acirrada, mas pacífica, com um copo de café ou cerveja nas mãos. O cheiro do tempero das carnes preparadas por dona Nete saía de sua cozinha, entrava pelo bar e chegava à rua, atraindo quem passava por lá. A galinha guisada com cuscuz no café da manhã, ou no almoço com farofa, era o céu!”, ressalta ainda a jornalista.
“O fígado grelhado, então, com batata doce, era infinitamente maravilhoso. E isso servia para refeição e petisco durante todo o dia. Procurava-se um jornalista na redação e não achava? Certamente lá estava ele, no Bar da Dona Nete, onde também era celeiro de boas informações, grandes pautas e algumas arengas de bem. Eu amava aquele ambiente e o carinho da dona do estabelecimento para com todos. Dona Nete sabia o que cada um de seus fregueses gostava e como gostava e em seu atendimento havia também amizade, acolhimento e confiança. A maioria de quem frequentava o local consumia no ‘fiado’. Tudo perfeitamente anotado em um caderno pequeno que, ao final de cada mês, servia para “prestação de contas” aos pagamentos. Era uma verdadeira ‘casa de mãe’”, completa Eliane Aquino.
Outra desbravadora daquele ambiente predominante de jornalistas homens no épico bar foi a jornalista e arquivista Helenice Balbino, que trabalhava no Jornal de Alagoas. “Ah, era uma delícia os pratos que Dona Nete preparava”, confirma Helenice.
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O jornalista Edberto Ticianeli também foi testemunha de alguns fatos da época de efervescência do Bar da Nete. “Tenho alguma coisa de lá. Fui vizinho na infância e vivia lá. O filho dela, o Ubiratam, era meu amigo. Foi para o Rio e nunca mais soube dele. Depois voltei lá somente para tomar uma cachaça, de vez em quando”, relata.
“Nessa época, eu e o Aldo fazíamos o Jornal Universitário, uma página que circulava no Jornal de Alagoas todas as terças-feiras. O Exército mandou fechar. Fui para o jornal Movimento, de São Paulo. Fiz alguns freelas por aqui, mais desisti. O dinheiro era curto”, completa Ticianeli.
Novas “Netes”: e uma nova geração vem aí, será?
Mas enfim, tudo passa e o lendário Bar da Dona Nete também passou. Em agosto de 1991, ela teve que desocupar o prédio por decisão judicial. Ainda tentou ver outro lugar para que o lendário bar não acabasse, mas Nete acabou desistindo e parou, o que significou a pá de cal nas guloseimas e cachacinhas que fizeram a cabeça e aguçaram o apetite daquela geração.
Mas diz o ditado popular que onde há vida, há esperança. Admirados com as histórias contadas por Dona Nete à Tribuna Independente durante esta reportagem, uma novíssima geração do jornalismo alagoano acompanhou, in loco, a entrevista da corajosa e empreendedora mulher de 91 anos e já pensa em estudar até um point para agregar as velhas, médias e novas gerações de jornalistas.
“Fiquei admirado com essas histórias fantásticas nesse lugar que abrigou muitos dos mestres da nossa profissão”, disse o jornalista Lucas França, de 29 anos, que é repórter do portal tribunahoje.com e do jornal Tribuna Independente, acompanhado da jovem jornalista Luciana Beder, 24 anos, também repórter do jornal. Os dois foram acompanhados pela neta de Dona Nete, Bárbara Ávila, que por influência das histórias e do bar da avó atualmente é também uma comunicadora, pois exerce a profissão de publicitária.
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