Cidades

Pandemia do novo coronavírus impõe novas formas de encarar o luto

Distanciamento e ausência de despedidas tornam último adeus ainda mais pesado para quem perdeu entes queridos para a doença

Por Texto: Ana Paula Omena com Tribuna Independente 13/06/2020 08h40
Pandemia do novo coronavírus impõe novas formas de encarar o luto
Reprodução - Foto: Assessoria
Rapidez na liberação do corpo e no translado, funeral sem velórios, caixões lacrados, número reduzido de pessoas no sepultamento. Esta é a real situação dos enterros em tempos de Covid-19, que vem impondo novas formas de encarar o luto e a morte de um ente querido. “A sensação de sepultar um ente querido nesta situação é a pior possível. Foi tudo muito rápido, sabíamos que a doença é grave. Minha irmã passou oito dias internada, sendo três ou quatro na UTI. Ela falava com a gente. Inclusive no dia do falecimento dela falou conosco a tarde pelo WhatsApp”, contou o jornalista Igor Castro, que perdeu a sua irmã Iza Castro, de 37 anos, para a Covid-19 no último dia 4 de junho. “Ficamos a 20 metros de distância do local do sepultamento, sem que houvesse despedida. Buscamos forças em Deus e através das orações de inúmeras pessoas que gostavam da minha irmã, ela sempre fez o bem, por isso tanta gente liga e isso nos conforta. Todos estão em oração pela alma dela e intercedendo pelos familiares. Meu pai também está internado diagnosticado pelo coronavírus. Foi sepultando ela num dia e internando meu pai no outro”, revelou Igor. Aldo César também passou pela mesma situação que Igor, mas com a morte de sua mãe Maria Aparecida de Oliveira Holanda, de 53 anos. Ele contou que não houve despedida e o mais doloroso foi não poder fazer as cerimônias cristãs, como ela merecia, por ser devota. “Não poder ver o semblante pela última vez torna tudo um tanto mais pesado”, frisou. Dona Maria Aparecida ficou 14 dias internada no Hospital Geral do Estado (HGE) e mais 15 dias na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) da Santa Casa. “Todo esse momento é muito surreal. Ainda existe um conflito de emoções. Com a morte dela, eu perdi meus pais, já que meu pai já havia falecido há 14 anos. Então, tudo acaba sendo mais emocional. Um dia de cada vez, as coisas vão se encaixando diante desse futuro incerto, por conta da gravidade da situação que esse vírus nos coloca”, salientou. “Hoje completa um mês da passagem dela. Não busco forças, acredito mais no conforto da fé e do espírito, pelo amor que sinto por ela e por entender que ela não merecia estar sofrendo, assim como todas as famílias e pessoas que foram e são vítimas do novo coronavírus”, acrescentou. Segundo Aldo César, sua mãe lutou o quanto pôde. “Sei que ela continuará a me acompanhar em tudo, e o amor que sentimos um pelo outro sempre será nossa conexão. Então ela continuará a viver em mim”, concluiu. Falta de tempo para a despedida torna processo mais doloroso [caption id="attachment_381544" align="aligncenter" width="720"] Zaíra Mendonça explica que vivência da pandemia já é um luto em si mesmo (Foto: Ascom CRP)[/caption] A presidente do Conselho Regional de Psicologia (CRP-15), Zaíra Mendonça, explica que o luto neste momento de pandemia pode ser mais complicado, já que não houve um tempo para a despedida. Embora, segundo ela, as perdas pequenas sejam uma experiência cotidiana do ser humano. “Todos os dias temos pequenas perdas, mas o que temos que entender é o luto do ponto de vista macro”, frisou. A psicóloga explica que a vivência da pandemia já é um luto em si mesmo dentro do contexto vivido atualmente. Ou seja, muitos já deixaram, mesmo que parcialmente, a convivência, projetos, atividades, sonhos. “O que já é de certa forma um luto”. “O rito de passagem do óbito, com o corpo no caixão para ser velado, todo o processo de finalização de um ciclo de vida biológica aqui na terra é deixado para trás neste momento. Por isso se deparar com a situação pode ser mais doloroso na elaboração do processo de luto, o que é natural”, destacou. Zaíra Mendonça destaca que as experiências afetivas e o inconsciente podem levar tempo para integrar o sistema de perda no cotidiano, já que não houve a ‘passagem’ culturalmente estabelecida. “É comum entre familiares ter contato com o ente querido falecido, mas agora com caixão lacrado não se pode nem ver mais. O que pode retardar o processo do luto natural”, observou. REDES SOCIAIS De acordo com Zaíra Mendonça, o processo de viver o luto de um ente querido mudou, ela que passou pela experiência recente de perder uma tia e não poder ir ao sepultamento fala que foi estranho. “Para quem perde um ente querido, o luto é imbuído em todas as dores medos e angústias que estamos vivendo nesta pandemia, tendo que arrumar outra maneira de fazer o luto”. “Hoje vivemos o luto nos encontros virtuais para velar alguém. Não temos nada pré-estabelecidos, mas acabamos fazendo isso nas redes sociais, com os primos, com os tios; assim foi feito para resgatar as memórias de minha tia, tudo virtual, à distância, foi muito estranho não poder ir ao velório e sepultamento”, colocou. Mais desafiador ainda na visão da psicóloga é explicar a morte de um ente querido para uma criança, mas é necessário. “Como tudo na vida, quase sempre uma morte quando não é por acidente, a pessoa vem a óbito de maneira processual, o corpo vai morrendo aos poucos quando acometido por alguma doença, e aquela morte deve ser narrada para as crianças de forma processual também”, mencionou. “Todos têm um tempo aqui na terra, ninguém é eterno, e deve ser explicado para os pequeninos dentro da linguagem possível de cada criança. Elas vivem o luto cotidiano por estarem dentro de casa sem poder ir para a escola, ver seus amiguinhos, avós”, completa. Número de sepultamentos em cemitérios públicos de Maceió sobe 150% Os sepultamentos em cemitérios públicos de Maceió aumentaram 150% após a pandemia do novo coronavírus e, enquanto perdurar a situação de Calamidade em Saúde Pública, serão obedecidas as determinações dispostas no Decreto nº 8.877, de 07 de maio de 2020. Os velórios e sepultamentos de pessoas que morreram de Covid-19 ou com suspeita da doença, terão duração máxima de uma hora, caixões fechados e a presença de até dez pessoas, sendo a entrada restrita às pessoas que forem autorizadas a participar dos velórios e sepultamentos. Já no caso de óbitos que não sejam decorrentes da pandemia, a duração máxima será de três horas com a presença de 20 pessoas. Os idosos com mais de 60 anos, as pessoas com doenças crônicas e as suspeitas de ter contraído coronavírus, não devem comparecer ao cemitério. As informações são da Superintendência Municipal de Desenvolvimento Sustentável (Sudes), responsável pela administração dos cemitérios públicos em Maceió. Ainda conforme a Sudes, a entrada de pessoas nos cemitérios para visitação aos túmulos segue proibida em conformidade com o referido decreto. “Os cemitérios públicos estão seguindo a recomendação para sepultamentos com todos os trabalhadores utilizando os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Por conta da pandemia a quantidade de sepultamentos aumentou para uma média de 20 por dia. Antes da doença eram realizados cerca de 6 a 8 sepultamentos diários”, informou por meio da assessoria de comunicação. Ainda que o número de pessoas para se despedir do morto seja pequeno, há o cuidado para não haver mais de um sepultamento no mesmo horário. Todos os equipamentos de proteção usados pelos funcionários na hora do sepultamento são descartáveis. FUNERÁRIOS A gerente funerária Annielly Morgana explica como está a rotina dos serviços funerários em tempos de pandemia. De acordo com ela, o manuseio do corpo é feito com os EPIs necessários, conforme o tipo de atendimento para os casos suspeitos e confirmados. “Existe um EPI específico e um protocolo do Ministério da Saúde a ser seguido e, nesses casos, o óbito sai da unidade hospitalar para o sepultamento”, disse. “O reconhecimento do corpo para caso suspeito da Covid-19 se dá por um familiar somente, e depois de lacrado não é mais possível abertura para o familiar”, acrescenta. Segundo ela, é utilizado um desinfetante ou álcool 70% para a higienização do corpo e da urna em todo o processo. Depois a urna é lacrada com fita PVC. Para os demais atendimentos utiliza-se macacão impermeável, avental em TNT, luvas, máscara, óculos e bota. Os velórios estão ocorrendo com a tampa fechada, ficando aberto somente o visor da urna quando há. Projeto homenageia vítimas da doença em Alagoas “Inumeráveis” é um memorial on-line dedicado à história das vítimas do coronavírus no Brasil, cuja proposta principal é dar nomes aos números que aparecem nos noticiários. “Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”, como define o artista Edson Pavoni, criador do projeto. [caption id="attachment_381543" align="aligncenter" width="640"] Mércia Pimentel reuniu voluntários para dar nomes e narrar histórias de vítimas de Covid-19 em Alagoas (Foto: Arquivo pessoal)[/caption] Operando em escala nacional, o memorial acaba de ganhar um núcleo em Alagoas coordenado pela professora Mércia Pimentel, que reuniu voluntários em um projeto de extensão da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). A professora conta que se sentiu sensibilizada quando descobriu o memorial, e isso a motivou a colaborar com histórias alagoanas. “Sabia que não poderia fazer isso só, daí pensei no projeto de extensão. Seriam mais pessoas juntas a contribuir com as narrativas e homenagear as vítimas dessa lastimável doença”, relata. Além dos epitáfios e textos-tributos presentes do memorial nacional, Mércia revela que há mais ideias para o núcleo regional. “Estamos planejando a expansão do projeto para o campo do audiovisual com mais produções em homenagem às vítimas fatais do coronavírus”. Para compartilhar histórias, relatos, homenagens e quaisquer outras contribuições para o Inumeráveis Alagoas, os canais de contato são o e-mail [email protected] e o WhatsApp (82) 99954-6033.