Cidades

'É catastrófica para o saneamento', diz presidente da Casal sobre MP 868/2018

Medida possibilita competição de empresas privadas nos municípios

Por Texto: Evellyn Pimentel com Tribuna Independente 05/01/2019 12h41
'É catastrófica para o saneamento', diz presidente da Casal sobre MP 868/2018
Reprodução - Foto: Assessoria
No “apagar das luzes” de seu governo, o ex-presidente Michel Temer publicou a Medida Provisória 868 de 27 de dezembro de 2018 que altera o Marco Legal do Saneamento. Na prática, essa MP obriga, entre outros aspectos, que municípios abram chamada para a participação de empresas privadas ao fim do contrato de concessão dos serviços de saneamento. A MP 868 é uma reedição da MP 844 que “caducou” por falta de votação e excesso de discussões no Congresso ano passado. A MP prevê que a Agência Nacional de Águas (ANA) seja responsável pela regulação do serviço no país. No entanto, a própria ANA emitiu nota de esclarecimento onde afirma que não tem estrutura para abarcar a atribuição. Agora, a Medida Provisória precisa ser votada pelo Congresso nos próximos 180 dias para ser colocada em prática. Em meio à polêmica, a reportagem da Tribuna Independente conversou com o presidente da Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal), Clécio Falcão, que classifica a mudança como “catastrófica” para o setor.  Além disso, segundo Falcão, há risco de colapso para a cobertura de serviços da companhia nos municípios alagoanos.    Tribuna Independente –  A MP 868 pegou de surpresa o setor de saneamento público por ter sido publicada no penúltimo dia útil de mandato do ex-presidente Michel Temer. No que consiste essa Medida?  Clécio Falcão – A MP 844 teve o prazo no Congresso vencido e não chegou a ser votada. Então não houve a votação do mérito, vamos dizer assim. Se exauriu o tempo, os quatro meses que uma MP precisa para ser votada sem conseguirem aprovação. Com isso ela foi retirada de pauta e nós achávamos, nós as companhias de saneamento, associações... que estavam todas juntas nesse trabalho de resistência, de combate, a MP 844 a gente achava que deveria vir outra MP, provavelmente na atual legislatura. Surpresa nossa é que ainda na legislatura vigente veio essa medida. A MP 868 é muito parecida com a 844 o que abre até o questionamento da legalidade disso, mas aí é um aspecto jurídico que não vou me deter. A 868 tem algumas modificações, mas mantém os mesmos aspectos que são altamente danosos para a área de saneamento público. Principalmente o artigo que estabelece a obrigação do município de licitar os contratos de prestação de serviços de saneamento que as companhias que já executam, não tem a garantia de renovação.   Tribuna Independente – Na prática, a medida possibilita que empresas privadas concorram com o setor público. Quais os impactos dessa mudança para o sistema de abastecimento do estado?  Clécio Falcão – O problema é que a iniciativa privada tem interesse em participar de processos  licitatórios em municípios superavitários e lógico que a iniciativa privada não vai querer concorrer em cidades onde o serviço gera prejuízos. Atualmente a Casal trabalha com o chamado subsídio cruzado, que utiliza os recursos de municípios superavitários naqueles que dão prejuízo. Em muitos casos, o serviço nessas cidades chegam a  custar três vezes o que é arrecado. A iniciativa privada não vai executar papel social em lugar nenhum. Ela vai atuar onde der lucros. E isto não estou colocando de forma pejorativa. Acredito que ela é vital e tem que andar lado a lado ao serviço público. Não estou fazendo condenação. Estou dizendo o óbvio, que  a iniciativa privada existe para resolver determinados problemas mediante remuneração, ela deve ter lucro. Municípios que não proporcionam lucro não são interessantes, porque a companhia atua pelo papel social do estado. Por exemplo, Maceió representa 50% do que é arrecadado pela Casal, é uma cidade viável, digamos que a Prefeitura seja obrigada a fazer licitação e a iniciativa privada ganhe, o que não seria difícil acontecer porque ela consegue baixar o preço. Uma empresa privada ganhando e tirando Maceió do coletivo das cidades atendidas, a Casal fica inviável, a partir do momento que tira Maceió, a Casal não tem como se sustentar. As 76 cidades atendidas, a arrecadação não vai suportar as despesas e a Casal passaria a ter prejuízo. Mesmo assim, ainda teria uma meia dúzia de cidades que daria lucro, essas também vão ser alvos da iniciativa privada. Há um risco de sobrevivência da companhia. E entendemos que o prejuízo maior é da população,   porque a partir do momento que a Casal não tiver saúde financeira para prestar o serviço alguém vai ter que completar, isto é, o Governo do Estado vai ter que entrar. E o Governo vai ter capacidade para arcar com isso? Provavelmente não. O Governo já tem obrigações demais.  Tribuna Independente – É possível dizer que a MP 868 coloca em risco a sobrevivência da Casal?  Clécio Falcão – Há risco de colapso no sistema. Porque naquele município deficitário a companhia não irá conseguir arrecadar mais do que gasta e a tendência natural das companhias estaduais é reduzir o atendimento dos serviços e o que era uma falta de água esporádica passará a ser uma constante, correndo o risco de chegar a ter o abastecimento cortado. Essas cidades poderão ter em médio prazo a prestação de serviço suspensas e quem vai pagar é a população, é quem fica com o grande prejuízo. Atualmente eu cubro um prejuízo com o lucro e equilibro, caso haja sobras o valor é reinvestido porque a companhia pública não precisa de lucro, todo o valor é investido. Mas se eu só fico com os municípios deficitários eu não tenho como fazer essa compensação. Empresa nenhuma pública ou privada consegue viver com prejuízo indefinidamente. O Estado nunca precisou colocar dinheiro na Casal. A Casal é independente, não depende do Tesouro Estadual para funcionar. Ela vinha dando prejuízos há muito anos e esse prejuízo vinha sendo acumulado, chegou a um ponto tal que não podia continuar, porque se continuasse ia ter que ser fechada, privatizada... Até que no Governo Renan Filho se começou um processo de recuperação da Casal. Já são três anos seguidos com superávit, ela vem se recuperando e isso tem permitindo que ela reinvista esses valores e melhore o atendimento à população. Mas a partir do momento que perdemos as cidades que dão o suporte o serviço vai ficar prejudicado. É isto que nós estamos alertando. Para se ter uma ideia, no passado, no período de prejuízo, a Casal chegou a deixar de abastecer um povoado, de Carié em Canapi, que era abastecido e perdeu a capacidade de abastecimento, deixou de ser abastecido, os canos secaram. Atualmente estamos melhorando o abastecimento. Na cidade de Inhapi, por exemplo, só chegava água a cada quinze dias. Inauguramos um sistema que custou R$ 8 milhões e agora tem água 24 horas por dia durante os 30 dias do mês.  Tribuna Independente – Em sua avaliação, qual seria a alternativa para essa MP?  Clécio Falcão – Diversas entidades do setor de saneamento se juntaram porque enxergaram o malefício que a MP 844 traria para a sociedade. Inclusive, 26 governadores assinaram um manifesto contra a MP porque entenderam que isso traria prejuízo aos estados. Quando a MP saiu de pauta foi uma vitória muito comemorada pela área do saneamento e aí o governo Temer lança essa outra, provavelmente combinado com um governo prestes a assumir e que é catastrófica para o setor de saneamento. Aí a gente não entra em outras questões também ruins como a forma precipitada de resolver problemas antigos de saneamento. Essas questões devem ser resolvidas através de grandes debates, mas está se tentando resolver por meio de Medida Provisória. Esses assuntos devem ser resolvidos por meio de Projeto de Lei, com a participação da sociedade. A Lei do Saneamento é de 2007, é a lei que regula o saneamento do Brasil. Foram 10 anos de discussão para se chegar a essa lei. Se ela precisa de alterações, que se discuta, para se apresentar uma nova lei ou correções necessárias. Aí vem o governo e quer resolver isso por MP, é uma coisa totalmente inadequada. A MP também transforma a ANA em uma agência de regulação do saneamento. A ANA não foi criada para isso, não tem estrutura para trabalhar, por exemplo, com esgotamento sanitário. Isso é mais abrangente. A ANA teria que ser reestruturada, ampliada para fazer esse papel. Para que fazer isso de forma intempestiva?  Tribuna Independente – A quem interessa a validação dessas mudanças?  Clécio Falcão – Ao setor privado. A iniciativa privada. As empresas privadas que militam na área de saneamento, elas têm uma associação, a Abcon, Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos. A Abcon foi quem deu todo o suporte técnico e legal ao Governo Federal para edição dessas medidas. E a Abcon representa as grandes empresas de saneamento. E o que a gente tem dito a essas empresas é que nós entendemos que a iniciativa privada deve participar do serviço de saneamento, mas como prestadora de serviço, em parcerias, mas a gestão tem que ser pública. A gente está tratando de saúde, saúde pública, porque o saneamento é um viés da saúde pública. E como se quer tratar de saúde pública, privatizando? É isso que a gente é contra. Porque a partir do momento que se privatiza, o viés econômico vai prevalecer e a gente está num país com uma distribuição e renda muito ruim, com um percentual significativo vivendo abaixo da linha de pobreza e você dizer para essa população que a iniciativa privada vai entrar para resolver o problema dela, não é verdade, é uma grande mentira, porque a iniciativa privada não investe onde não há capacidade de retorno. E uma coisa que o Governo Federal não considerou: A privatização pura e simples obrigaria a determinada empresa a atender todos os municípios. Já esse modelo é ainda pior, porque permite que as empresas escolham onde querem atuar.