Cidades

Casamento Infantil: Alagoas tem 12 mil casos de menores em uniões conjugais

Comunidade internacional desaprova perda da adolescência para vida conjugal e de sacrifícios

Por Tribuna Independente 04/11/2017 08h05
Casamento Infantil: Alagoas tem 12 mil casos de menores em uniões conjugais
Reprodução - Foto: Assessoria

Maternidade Santa Mônica, hospital para gestantes de alto risco, em Maceió. Por lá, é comum chegarem jovens de todas as partes do Estado quase todos os dias, futuras mamães, uma boa parte delas meninas que mal saíram da infância e que se enquadram no perfil do chamado “casamento infantil”. 

Esse é o caso da menina A. C. de S., de apenas 14 anos, que a Tribuna Independente tentou entrevistar, mas não foi possível conseguir autorização dos pais, até porque nem o pai nem a mãe da garota se encontravam para permitir o procedimento.

A. C. de S. estava sozinha na maternidade.

A garota teve filho prematuro de sete meses e tanto ela quanto o bebê permanecem aos cuidados naturais que requer uma mulher (ou menina) em casos como esse. A Tribuna tentou entrevistá-la seguindo todos os procedimentos protocolares que uma situação dessas exige junto à assessoria de comunicação do hospital, mas na Hora “H”, A. C. de S. preferiu não falar com a reportagem.

A. C. de S. é do interior e pretende casar ou se “juntar” com o pai da criança, segundo revelou uma das enfermeiras que estão cuidando da menina.

Ainda na Santa Mônica, a reportagem conseguiu falar com outro casal no qual um de seus integrantes também mal saiu da adolescência e se enquadra nos chamados “casamentos infantis”. Trata-se do casal Joycielle Tamires do Nascimento, agora com 17 anos, e o companheiro Marcivan Faustino Frias, 23. Os dois começaram a namorar há pouco mais de um ano. Não se casaram pelos ritos formais, mas se juntaram e tiveram um filho que nasceu prematuramente de sete meses.

O relacionamento não teve o apoio de todos os responsáveis. A avó de Joycielle, que cria a menina desde quando a neta era pequenina, até hoje é contra o casamento. “Ela nunca aceitou”, conta Joycielle. 

“Mas lá em minha casa minha mãe aceitou muito bem e nos deu até uma casa para morar”, diz o companheiro Marcivan, que mora com mãe e diz ter dificuldades com o pai. “Ele está preso”.

Marcivan diz ter feito curso de pintor e tem esperança de em breve arrumar o emprego para cuidar tanto da esposa, desempregada, como da filhinha Cristal Vitória que nasceu prematura e que não tem previsão de alta.

A mãe e o pai de Vitória Cristal vão religiosamente todos os dias ver a menina na Santa Mônica.

“Esse casos aqui de casais nesta idade são bem corriqueiros e o que a gente constata é que geralmente a maioria das vezes a menina ou mulher é sempre mais nova que o homem”, afirma a enfermeira Edla Rijo, que trabalha na Maternidade Santa Mônica.

IBGE e Fundação Abrinq revelam números de Alagoas

Os chamados casamentos infantis caracterizam-se como aqueles em que meninas e meninos deixaram a adolescência para trás por um casamento. Isso mesmo: tecnicamente, elas não são mais crianças, mas toda união que envolve pelo menos uma pessoa com menos de 18 anos é considerada pela comunidade internacional como um ‘casamento infantil’.

A definição é da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CRC) - assinada e ratificada pelo Brasil em 1990 -, significa mais do que um marco de idade: esse tipo de casamento é reconhecido internacionalmente como uma violação aos direitos humanos.

Por outro lado, o número de uniões que não vão para o papel – chamadas ‘consensuais’ – ajuda a ter uma ideia do tamanho do problema.

Essa realidade que envolve os personagens descritos são colocados em números pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em Alagoas. 

De acordo com o Instituto, com base no Censo de 2010, Alagoas registrou 2.305 uniões conjugais consensuais com mulheres entre 10 e 14 anos; e 23. 382 entre casais na faixa entre 15 a 19 anos e 11.036 na faixa etária entre 15 e 17 anos.

A Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos), entidade que tem o intuito de mobilizar a sociedade para questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência, aponta dados mais recentes, de 2015, revela que em Alagoas houve um total de 3. 350 casamentos de meninas menores de 19 anos. Segundo a Abrinq, o Brasil registrou um total de 122. 805 casamentos de meninas menores de 19 anos, em 2015.

“Não quero isso para meus filhos”, diz mãe que se juntou aos 15.

Maria Patrícia foi morar com o atual marido sem oficializar e sacrificou os estudos e sua adolescência

Para a Organização das Nações Unidas (ONU), aos 14 anos uma adolescente está aprendendo a lidar com equações de segundo grau e não deveria fazer outra coisa senão estudar. Não foi assim nem com A. C. de S., nem com Joycielle, e nem com a terceira personagem desta reportagem, Maria Patrícia dos Santos, atualmente com 29 anos, mas que conheceu o marido - com quem vive até hoje -, aos 15 anos, e com esta idade se juntou. “Não casamos, preferi morar com ele”, conta. O esposo é 10 anos mais velho que Patrícia.

“Depois vi que isso atrapalhou os meus estudos porque parei de estudar para me dedicar ao marido e aos filhos e me arrependo de não ter continuado os meus estudos”, relata Patrícia, que diz ter parado de estudar na 5ª série do primeiro grau.

O casamento com Nalvo dos Santos deu como frutos Charlene, de 10 anos, e Denilson, de 8 anos. “Fui mãe dois anos depois”, diz Patrícia.

 O esposo é tecelão e Patrícia hoje trabalha como empregada doméstica e ajuda o marido nas despesas do lar. “Não quero que os meus filhos se casem ou se juntem muito cedo, quero que deem prioridade aos estudos para não passar o que passei”, confessa Patrícia, ao revelar que passou por muitos apertos na vida.

Brasil é o quarto país do mundo em números absolutos

O Brasil é o quarto país no mundo, em números absolutos, de mulheres casadas ou vivendo com companheiros aos 15 anos – são mais de 877 mil, de acordo com o estudo Ela Vai no Meu Barco: Casamento na Infância e Adolescência no Brasil, produzido entre 2013 e 2015 pela ONG Instituto Promundo. Em uma pesquisa divulgada recentemente pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, a entidade aponta que é preciso pensar em formas para enfrentar essa realidade no país – embora nem sempre ela seja abordada nas discussões sobre proteção a crianças e adolescentes brasileiros.

O que diz a lei

Pela lei brasileira, o casamento é permitido tranquilamente entre pessoas com mais do que 18 anos. Abaixo disso, só em condições especiais. No Código Civil, o casamento é permitido dos 16 aos 18 anos incompletos com autorização dos pais. Abaixo disso, a lei diz que a menina pode casar se estiver grávida.

O problema é que, segundo o Código Penal, qualquer relação com uma pessoa menor do  que 14 anos se configura como estupro de vulnerável. Pelo artigo 217, até essa idade, mesmo que a criança ou o adolescente dê seu consentimento, se trata de um estupro.

Com base na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, um casamento é permitido somente a partir dos 18 anos de idade na maioria dos países do mundo. Entre 2015 e 2017, países como Chade, Malawi, Zimbábue, Costa Rica, Equador e Guatemala elevaram a idade mínima para casamentos para 18 anos. Além disso, aboliram as exceções que validavam casamentos infantis consentidos pelos pais ou por um juiz.

Para Susanna Krüger, diretora-executiva da sucursal alemã da Save the Children, o declínio do número de casamentos infantis nesses países é um grande sucesso. “O quadro jurídico ajuda a mudar as estruturas sociais no longo prazo”, afirma.

No entanto, desde 2015, o casamento ilegal de garotas menores de idade aumentou de 11,3 milhões para 11,5 milhões mundo afora – e a tendência deve se manter. E ainda há 82,8 milhões de meninas com idades de dez a 17 anos que não estão legalmente protegidas contra casamentos infantis.