Cidades

Fé ajuda dependentes químicos a se libertar do vício

Dependentes químicos são acolhidos em instituições na tentativa de curá-los do vício por meio da religião e espiritualidade

Por Ana Paula Omena, Evellyn Pimentel e Thayanne Magalhães com Tribuna Independente 04/11/2017 10h42
Fé ajuda dependentes químicos a se libertar do vício
Reprodução - Foto: Assessoria

Túlio é um adolescente de 15 anos. Ele usa maconha diariamente. Ele diz que se sente relaxado e feliz com os efeitos da droga e toda a sua família está adoecida por conta do seu vício. Na roda de amigos, já lhe oferecem drogas mais pesadas, como cocaína e crack, e, ao que tudo indica, o rapaz vai se afundar ainda mais nesse caminho obscuro.

Olhando para o seu passado, Túlio vê seus pais consumindo bebida alcoólica todos os finais de semana. Bêbados, fumando cigarros e cometendo atos esdrúxulos. Completamente ridículos. Isso foi passado para o menino como um sinônimo de felicidade e, agora, seus pais, abatidos com a luta contra a dependência do filho, não sabem a quê atribuir a busca do adolescente pelas drogas.

Essa é uma história fictícia criada pela nossa equipe de reportagem, mas que relata inúmeras histórias reais. Com o peso das drogas nas costas, poucas são as alternativas. No entanto, instituições de acolhimento propõem uma perspectiva diante do caos instalado. Por meio da fé e espiritualidade tentam mudar a realidade de pessoas como Túlio, nosso personagem ilustrativo.

Caminhos da dependência: Família tem papel fundamental

Para o cardiologista e presidente da Associação de Médicos Espíritas de Alagoas, Ricardo Santos, a busca pela droga está diretamente relacionada aos exemplos dados pela família desde a infância e principalmente à falta de espiritualidade.

“Todo mundo hoje em dia tem bebida alcoólica dentro de casa. É como um altar. As pessoas precisam desse estimulante para serem felizes e isso leva gradativamente ao estado de dependência. Então, a principal causa da dependência química é a família mal orientada, mal estruturada, que usa bebidas e cigarros, as chamadas drogas lícitas, dentro de casa, e as crianças passam a conviver naquele ambiente. Assim, absorvem aquele comportamento como normal. Como algo natural. E gradativamente adentram no processo de dependências”, opina o médico.

O médico destaca que atualmente, a maioria das pessoas não consegue se divertir sem álcool, e que esse comportamento tem levado os jovens para o caminho das drogas. “Eu chamo muito a atenção particularmente do álcool, que é uma droga que elimina a nossa censura moral, o nosso senso crítico, e a pessoa embriagada comete desatinos, faz besteiras e coisas esdruxulas, ridículas e sem controle. Através do álcool se passa facilmente a usar outras drogas sem nenhuma resistência moral, principalmente os jovens”.

Então, segundo o médico, a família realmente precisa ter um investimento de consciência. “Quando se vê um filho adolescente usando cocaína, crack, acontece um desespero na família, ou seja, todo mundo adoece, e todo mundo fica atônito, sem saber o que fazer. Culpam o jovem, que as vezes é a vítima maior, não só da família, mas também da sociedade e dos amigos, e da invigilância dos pais. Portanto, os pais precisam ser orientados nesses casos em que se tornam co-dependentes”.

CURA X TRATAMENTO

Para psicológa, melhora é diária e precisa considerar vários aspectos

A psicóloga Joelma Nunes explica que diversos estudos a respeito da dimensão religiosa e espiritual, já apontam seus impactos não apenas no tratamento, mas na prevenção do uso abusivo de drogas. “Estão presentes em diversos centros de pesquisas, espalhados pelo mundo. Por exemplo, nos Estados Unidos, as Universidades George Washington e Duke têm centros de pesquisa em Espiritualidade e profissionais das mais diversas áreas têm reconhecido seu valor para a saúde do indivíduo”.

A especialista cita os pesquisadores Scivoletto e Morihisa, quando se referem ao consenso no meio científico de que o uso e o abuso de substâncias psicotrópicas é multifatorial, ou seja, dependem de uma dimensão biopsicossocial. E nos últimos anos, o aspecto espiritual da doença também tem sido levado em consideração.

Joelma Nunes ressalta que o dependente químico, durante seu período ativo, no uso de drogas, costuma afastar-se de qualquer lugar ou atividade que não aceite seu comportamento. Por essa razão, deixa de frequentar e praticar sua religião, quando a possui. E passa a desacreditar de tudo e de todos, seu único foco é a droga.

De acordo com Joelma Nunes, a espiritualidade é uma característica única e individual, que pode ou não incluir a crença em um “Deus”, sendo aquela responsável pela ligação do “Eu” com o Universo e com os outros, a qual também está além da religiosidade e da religião.

Já a religiosidade, segundo ela, representa a crença e a prática dos fundamentos propostos por uma religião. A religiosidade, para os que realmente conseguem identificar-se com a instituição religiosa e seus preceitos, também consegue atingir bons resultados.

No entanto, a psicóloga defende que a grande maioria não se adequa a esta realidade. “Os grupos de jovens, por exemplo, das mais diversas religiões, acabam funcionando como um instrumento de prevenção, não quer dizer que estão cem por cento seguros, mas as chances dos adolescentes e jovens que frequentam e se envolvem de fato em tais atividades, reduzem a probabilidade de usar drogas. Já que nestes espaços, costuma-se ter regras, acolhimento e responsabilidades”, observou.

Ela disse também que como doença, infelizmente a dependência química não possui cura, e sim tratamento. “Sob o ponto de vista espiritual, podemos dizer que a ‘cura’, é diária. Isso mesmo, a cada 24 horas ele é curado, desde que faça sua parte para isso”, destacou.

De acordo com Joelma Nunes, o dependente precisa estar sempre vigilante, atento ao seu compromisso com a sua recuperação, haja vista que seja um processo individual. “O resgate da espiritualidade pode alcançar ótimos resultados em seu processo de tratamento. O programa de 12 passos dos AA [Alcoólicos Anônimos], já faz um alerta para a necessidade de um contato direto, com o seu poder Superior, seja qual for e da forma como o compreender”, salientou.

A especialista colocou que as instituições de tratamento mais especializadas já contam em seu plano terapêutico com atividades que fortaleçam, ou até mesmo, promovam um despertar espiritual de seus internos, já que a grande maioria, chega em completo estado de descrença nele e em seu futuro, repleto de marcas físicas e em sua alma. “Voltar a acreditar que algo maior que eles e sua doença existe, fortalece e muito seu desejo de ter uma nova vida”, frisou.

AMPARO

Espíritas apostam no autoconhecimento como chave para evolução

Para o cardiologista, o grande problema da dependência química no mundo atual é o auto desconhecimento do ser humano. “O ser humano desconhece a sua missão e os seus talentos. Desconhece a existência de Deus. Participa às vezes de religiões, mas na maioria das vezes de uma forma bastante superficial, muitas vezes ligada a atos exteriores, como ir a uma missa, um culto, participar de um louvor, achando que é o suficiente. Mas na verdade, nós seres humanos somos seres espirituais. Somos espíritos eternos vivenciando uma experiência física. E a razão dessa experiência é nos tornarmos melhores espíritos”.

Ricardo Santos afirma ainda que, como as pessoas não se reconhecem como espíritos imortais com potencialidades divinas e recursos infinitos, elas buscam nas drogas, nas paixões, no “ter coisas”, ter dinheiro, possuir bens, todo o seu direcionamento e esforço na busca pela felicidade.

“Todo mundo quer ser feliz, todo mundo quer ter coisas, e isso cria um estresse. E nesse afã de ser feliz, de querer ser amado, de querer ser servido, a pessoa entra em processos frequentes de decepções, de perdas, de não ver as suas expectativas sendo realizadas, problemas afetivos, financeiros, familiares, e ela começa a buscar no tranquilizante uma saída. O Brasil hoje é o maior consumidor de tranquilizantes do planeta. Isso é dependência química. As pessoas, para se sentirem completas, se sentirem felizes, calmas, porque não conseguem, não encontram os recursos que estão dentro delas, buscam as drogas. Porque não se percebem espíritos eternos, imortais, com potencialidades divinas, com recursos capazes de superar os seus problemas”, afirmou.

“Deus nos criou à sua imagem e semelhança e precisamos nos reconhecer como espíritos imortais. Precisamos entender que não é possível encontrar a felicidade através da busca pelas drogas e posses, porque a felicidade só é possível de ser encontrada através da descoberta e da vivência do amor incondicional, ensinado por Jesus no Evangelho. Quando elas entram no que chamamos de ‘vazio existencial’, elas precisam de ‘muletas’, de suportes para se sentirem plenas, felizes”, continuou o cardiologista.

A DOUTRINA

O médico cardiologista conta que existe uma equipe de voluntários espíritas no Lar São Domingos, localizado em Maceió, que acolhe viciados e seus familiares para orientá-los. “Quando estudamos a doutrina espírita, temos a oportunidade de orientar os outros com aquilo que a gente aprendeu. No espiritismo não existe hierarquia, existem pessoas que estudam e se ajudam mutuamente. É um conhecimento que responde às indagações humanas”, explicou.

Ricardo Santos explica que o trabalho espiritual com os viciados em drogas e seus familiares, é um trabalho de autodescoberta. “É um trabalho de autoconhecimento, de busca e apoio espiritual, na oração, na imposição das mãos, na água benta ou fluidificada, e no conhecimento do Evangelho. A partir dessa busca, a pessoa se harmoniza, se fortalece e adquire forças para realizar o tratamento físico e psicológico contra o vício. É um tratamento integrado, biológico, que é feito pelo médico, com medicamentos, psicológico, que é feito pelo psicólogo, para conhecer a pessoa, suas fraquezas, os seus pensamentos e sentimentos, e principalmente espiritual, que deve ser a prioridade absoluta para todos”.

O cardiologista acredita que o vício pode ser curado pela fé. “A pessoa pode se curar através da fé com certeza, porque se ela se reconhece, se autodescobre e estabelece uma ligação com Deus, isso cria uma energia, uma força interior, de fé, que faz com que ela supere os obstáculos, adquira disciplina para não buscar nas drogas. E isso funciona mesmo com as drogas mais potentes. Na área da medicina, particularmente, fazemos seminários, congressos, cursos palestras, envolvendo a área de saúde e espiritualidade. Temos mais de 70 instituições no Brasil envolvidas no assunto e 45 universidades já ensinam a disciplina saúde e espiritualidade”, afirmou.

O Lar São Domingos atende os usuários de drogas e familiares toda quarta-feira. “Às 19 horas abrem-se os portões e às 19h30 e fecham-se os portões, e atendemos até às nove da noite. O atendimento é destinado às famílias e aos dependentes, que queiram, evidentemente, se tratar. Então a gente ministra esse apoio fraterno, espiritual e todas as orientações para o encaminhamento do tratamento psicológico e médico quando necessários, porque nem sempre é preciso”, explicou.

“Porque com o tratamento espiritual a pessoa se esclarece, enxerga qual a sua missão existencial, quais os seus recursos, e aonde encontrar a plenitude e a felicidade. Sem essa orientação ficamos perdidos, ficamos limitados, e adquirimos aquilo que se chama o vazio existencial”, continuou.

“Recuperação é consequência de viver a palavra de Deus”, diz voluntário

Indo muito além do material e do terreno, centenas de centros de recuperação de dependência química espalhados pelo Brasil trabalham com este foco. Em Alagoas, por exemplo, a Fazenda da Esperança, nascida em berço católico há 10 anos no Estado, foi inspirada pelos carismas da unidade, do Movimento dos Focolares, e da pobreza, dos Franciscanos. O local acolhe recuperantes e voluntários, independentemente de suas convicções religiosas e de seu estado de vida (solteiro, casado, viúvo, sacerdote, diocesano e/ou religioso), mas que desejam viver o amor recíproco.

A palavra de Deus na Fazenda Esperança parece ser um remédio eficaz para afugentar a tentação. A reportagem do Jornal Tribuna Independente esteve lá e conversou com dois membros da instituição localizada no município de Marechal Deodoro, Litoral Sul de Alagoas.

Ambos foram enfáticos quando afirmaram que a palavra de Deus é a principal fonte, quando surge a tentação de voltar a usar algum entorpecente. “Nós somos guiados pela inspiração divina e a nossa recuperação é uma consequência da vivência da palavra de Deus”, destacou Edilson Pereira, de 37 anos, que já foi um empresário bem-sucedido no Estado de Piauí, mas que perdeu tudo o que tinha por causa das drogas em sua vida.

Ele contou que experimentou cocaína aos 26 anos e foi a sua companheira quem ofereceu, eles têm um filho de 10 anos. “Há dois anos estou limpo, mas a caminhada até aqui foi muito difícil. Me afundei na cocaína, perdi muito dinheiro e quase morri ao capotar meu carro. As dívidas só aumentavam, mas o prazer do uso era maior. Junto com ele vinha também o desejo de se prostituir, eu ficava dias dentro do motel com garotas de programa e a droga chegando”, mencionou.

Edilson Pereira, como era bastante conhecido na região, resolveu seguir destino à Brasília, porém na capital federal, onde ele achava que iria se libertar do vício no local de trabalho, um deputado que também era usuário lhe fez cair mais uma vez.

“Fugi da droga de novo indo para Minas Gerais, mas foi em vão, lá da mesma maneira tinha droga e não resisti, voltei a usar. Foi quando num dia um ato involuntário pôs em xeque a minha vida. Tomei nove gotas de rivotril e adormeci, quando acordei meu braço estava paralisado, foi quando lembrei de Deus e pedi que, se saísse dessa e meu braço voltasse ao normal, eu iria buscar tratamento. E assim fiz, meu braço voltou ao normal e liguei para minha irmã que morava em Lagarto em Sergipe, ela me estendeu a mão e me internei na Fazenda Esperança. Passei três meses sem poder ver ninguém, e foi aí que começaram os meus arrependimentos, lembrei do meu filho que estava sendo criado sem pai, do que eu tinha perdido por causa da droga”, detalhou.

FÉ NA LIBERTAÇÃO

Buscando refúgio para não cair em tentação

Edilson diz que foi a espiritualidade que o salvou. “Tive um encontro pessoal com Deus, a palavra de Deus me ensinou e ensina muito, foi ela quem me fez vir à tona. Não conhecia Deus e quando bate a vontade é Ele quem busco e me refugio contra a tentação”, afirmou.

Ele fez a opção de continuar na fazenda mesmo após o tratamento de um ano e hoje é voluntário, chamado de padrinho. A companheira que lhe ofereceu a droga no início deixou seu filho com os avós paternos e Edilson conseguiu a sua guarda. “Estou ansioso para tê-lo em meus braços, quero tentar resgatar o tempo perdido. Leio a carta que ele fez para mim e suas palavras me deixam feliz, em saber que ele me admira e me dá forças por ter acreditado no tratamento e que Deus existe”, frisou com os olhos marejados.

Cláudio Moreira, de 34 anos, também usava drogas e após pedir um milagre a Deus quando se viu sendo arrastado pela camisa por policiais militares em São Paulo, decidiu mudar de vida. “Pedi com toda a fé que se Deus me tirasse daquela situação não voltaria mais a usar nenhum entorpecente”, lembrou.

Ele, que passou 12 meses na Fazenda Esperança, hoje está limpo e trabalha na entidade como voluntário. Tem duas filhas de 11 e 14 anos de mães diferentes e conta que o contato com elas é diário. Em seu testemunho de vida, Cláudio disse que começou a usar maconha com 13 anos por curiosidade e logo enveredou para outros tipos, crack, cocaína, cigarro, cola de sapateiro e álcool. Quase morou na rua e se sentiu abandonado.

Diz que as drogas nunca foram refúgio, que ele sempre recebeu conselhos da mãe evangélica, mas acredita que a solidão o puxou para as drogas pela exclusão dos pais. “Hoje sou outro e quero contribuir para ajudar ao próximo, me libertei através da palavra de Deus. Confesso que perdi muito tempo longe de minhas filhas, cresceram com a minha ausência, mas hoje o relacionamento é muito bom”, ressaltou.

Cláudio não tem dúvidas de que Jesus o transformou por meio da fé. “Deus me deu mais uma oportunidade de viver, a primeira internação eu segui à risca e ainda quando sinto a vontade de usar busco a palavra, porque ela cura e é o remédio. É crescer no amor”, declarou.

“Deus preenche, se eu for confiar nas pessoas me frustro. Tem quem ofereça, mas tem como resposta o meu não”, concluiu.

Dependente precisa estar convicto da mudança

O padre Judá, capelão do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas, que celebra missas na Fazenda Esperança, em Marechal Deodoro, enfatiza que não é a religião que faz a transformação de um dependente químico, mas sim a decisão que cada um tem para melhor evoluir e se aproximar de Deus e do próximo. Para o sacerdote é a fé que vem de dentro para fora no sentido da pessoa assumir a própria vida e confiar, acreditando que existe um Deus que está acima de tudo e que Ele restaura, orienta e mostra o caminho.

 

“A palavra de Deus só é eficaz na medida em que, nós a acolhemos, que é Jesus, o Evangelho vivo do Pai, então quando a recebemos de coração ela passa a ser uma em nós; semelhante a uma semente plantada na terra que vai crescendo e desenvolvendo. Uma vida nova se constrói por meio desta palavra, a partir desta semente, por isso é preciso que a semente caia na terra e ela morra para assim surgir uma plantinha”, explicou o padre.

“É necessário que o homem velho morra em nós, para nascer uma nova pessoa. Jesus Cristo diz para Nicodemos: ‘É preciso nascer de novo’. Então, é desta maneira que a palavra produz em nós frutos, e a consequência é o amor, o perdão, o acolher ao outro, fazer o bem. É desta forma que a palavra de Deus constrói dentro de nós uma nova vida. A pessoa deve se abrir porque a mesma palavra é dita para várias pessoas e há reações diferentes”, salientou o religioso.

Ele exemplificou comparando uma esponja e uma pedra, onde a esponja absorve toda a água e na pedra nada penetra. “Assim é a palavra de Deus num coração endurecido, não tem efeito e permanece do mesmo jeito, já em outros a profundidade é tamanha que causa uma transformação.“

Restaurando a dignidade

Tratamento traz esperança para recuperantes que precisam lidar com lembranças amargas e conflitos familiares

Seis meses se passaram desde que Alexandre dos Santos, de 32 anos, chegou à Comunidade Terapêutica Desafio Jovem. Nos 42 km que separam sua cidade natal, União dos Palmares, de Rio Largo, onde funciona o acolhimento, ele viu seus sonhos perdidos serem transformados em esperança e planos para o futuro.

“Eu tinha três opções: ser morto, preso ou viver foragido, porque eu fazia besteira e não lembrava, já era o pessoal da rua que dizia o que eu tinha feito. Mas eu não ligava pra nada, continuava fazendo. Quando cheguei aqui, no começo eu achei que não fosse aguentar. Mas o tempo foi passando e eu fui entendendo que a ajuda era boa para mim mesmo. Eu já tinha tentado parar sozinho, passei oito meses e voltei. Hoje eu estou saindo e quero reconstruir minha vida, quero arrumar um emprego, fazer um supletivo, voltar para minha companheira, tenho um filho de 15 anos e me inspiro nele, porque nunca fui presente”, detalha.

Olhando para trás, Alexandre diz que precisou passar por momentos complicados e receber muitos conselhos para entender que precisava de ajuda.

“Com 18, 19 anos eu comecei nas drogas. Já trafiquei, usei maconha, cocaína e entrei no crack, mas meu problema mesmo é o álcool. Apesar de sempre ter trabalhado, eu era envolvido com drogas. Minha companheira me deixou porque não aguentava mais viver comigo por causa da droga. Eu chegava bêbado em casa, arrumava confusão. Depois fui ficar com minha tia, que é evangélica. Mas sempre aperreando. Teve uma vez que ela precisou chamar a polícia, minha sorte que não vieram, porque senão estaria preso. Até que uma vizinha me falou que o filho tinha passado por aqui e resolvi procurar ajuda”, conta.

Com vínculos familiares afetados, ele diz que o maior arrependimento é não ter visto o filho crescer. Ele diz que sua vida mudou e que hoje enxerga as coisas sob outro ponto de vista.

“Eu vi meu filho me chamar de pai, mas não o vi crescendo, andando de bicicleta, nunca levei na escola, nunca participei nessas coisas porque eu esquecia dele e só sabia das drogas. Ele está com 15 anos e era para ele se inspirar em mim, mas eu que me inspiro nele, porque ele não seguiu o meu exemplo. Eu não falava com  minha irmã, depois que vim para cá voltei a falar, pedi perdão à minha tia, eles sempre vêm me ver. Vou levar muitas coisas boas daqui, posso dizer que isso mudou minha vida”.

Das mãos dos profissionais do acolhimento, Alexandre recebeu o certificado de alta do tratamento com alegria e muito entusiasmo.

PIONEIRA

Há 22 anos, comunidade realiza tratamento baseado em princípios bíblicos

Com 22 anos de existência, a Comunidade Desafio Jovem é presidida pelo Pastor Márcio Ferreira Oliveira. Contrariando o que especialistas do tema afirmam, ele acredita na cura pela fé.

“A ciência diz que uma vez dependente sempre dependente. Mas a palavra de Deus diz ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. Nós somos a casa mais antiga do Estado, há 22 anos, e temos pessoas recuperadas há 18, com família restaurada, casamentos. Nós acreditamos que a cura está em Cristo”, defende.

O pastor explica que o direcionamento dado aos acolhidos é centralizado nos preceitos bíblicos. Todo o processo envolve a conscientização de que o homem é dependente de Deus e busca as drogas como forma de preencher um vazio interior.

“Nós não usamos medicamentos, trabalhamos com os doze passos dos Alcoólicos Anônimos que foram adaptados para a dependência química, esses doze passos são baseados na palavra de Deus. É um conjunto de suporte que tem o eixo principal na espiritualidade, que tem o objetivo de pôr o homem de volta a Deus, já que entendemos que viemos de Deus”.

De acordo com a assistente social Monique Alexandre, na instituição os acolhidos seguem uma rotina com devocionais, momentos de oração e louvor, estudos, sessões em grupo com psicólogos e assistentes sociais, atividades recreativas além da laborterapia, que envolve a realização de afazeres nas instalações da comunidade.

“Um acolhido ajuda na cozinha, outros na organização da casa do pátio. Eles fazem atividades em grupo durante o dia inteiro e a partir das 17h eles ficam com as atividades recreativas, jogos de tabuleiro, dominó. À noite temos atividades com os monitores, visitas de voluntários e missionários. Eles precisam viver esse processo em grupo, em comunidade, para desenvolver o trabalho psicológico e terapêutico, e é nesse momento de grupo que eles aceitam as diferenças, de conviver com pessoas diferentes”, explica Monique.

O perfil dos acolhidos é muito similar, garante o pastor. Pessoas com sérios problemas familiares e dificuldades nos relacionamentos. O que segundo o líder religioso é a principal causa da dependência.

 “Nós trabalhamos a espiritualidade para a restauração da vida. Porque acreditamos que não é uma questão apenas de dependência química, porque quando a gente vai avaliar o caso deles, em quase 100% a procura das drogas foi uma reação a uma ação na vida deles, ou seja, um trauma, uma incompreensão, desestrutura familiar, falta de presença de pai ou mãe, enfim todo um contexto que acaba abrindo essa porta para as drogas”, pontua.

ASSISTÊNCIA

Familiares também precisam ser acompanhados e motivados

Fatores psicológicos, sociais e emocionais são abordados

É um círculo vicioso onde a desestrutura familiar gera mais instabilidade. A dependência química vai devastando a família que também precisa ser acompanhada para, após a recuperação, estar apta a superar as dores do passado.

 “Eles chegam desestruturados emocionalmente, em relação à família também em relação à falta de confiança, porque muitas vezes não é a primeira vez, a luta já vem de muito tempo. São famílias que se tornam co-dependentes e precisam de acompanhamento, por isso reunimos a família mensalmente, porque não adianta só tratar o dependente, porque quando ele volta, a família vai ver ele sempre como um risco, ver com desconfiança e isso são portas para a recaída”, explica.

Além da questão espiritual, a comunidade terapêutica atua na assistência emocional, psicológica e social. Após seis meses de tratamento, que podem ser prorrogados por mais dois, eles são assistidos no retorno à sociedade.

“A espiritualidade é primordial nesse processo terapêutico. A gente orienta para que após o tratamento eles deem continuidade buscando fortalecer a fé quando retornarem à sociedade. A gente também os direciona para os CAPS, CRAS, porque existem outras demandas além do tratamento. Existe o processo de reinserção no mercado de trabalho também”, reforça.

Monique destaca a importância da família em todo o processo de tratamento.  “Algumas famílias participam ativamente, mas existem casos que os laços já foram rompidos, fragilizados, de situações que já sofreram. A gente tem os dias da visita e procura as famílias, chama para participar. Mas como são usuários de todo o Estado, fica um pouco complicado de estarem sempre presentes”.

Segundo o pastor Márcio Oliveira, o período de tratamento dá uma nova esperança aos relacionamentos tão desgastados entre os parentes e os dependentes.

“Muitos vêm das ruas porque a família não suporta, não aguenta... À medida que eles chegam, começa esse processo de reparação, conciliação, a família começa a dar um voto de confiança”, diz.

POLÍTICAS PÚBLICAS

Parceria entre Estado e comunidades já acolheu 25 mil dependentes

Atualmente, o Estado de Alagoas tem 850 dependentes químicos em tratamento nas 37 instituições credenciadas pela Secretaria de Estado da Prevenção da Violência (Seprev). De acordo com o órgão, desde a criação da Rede Acolhe, em 2009, mais de 25 mil dependentes químicos foram acolhidos de forma voluntária.

A maioria das instituições de acolhimento é ligada a movimentos religiosos, mas além da fé precisa atuar nos padrões estabelecidos pelo órgão que envolve o suporte social e psicológico. Acerca disso, a secretária Esvalda Bittencourt diz que existe uma triagem que consulta a opção religiosa para que o acolhido seja direcionado ao local mais adequado.

“Em sua maioria as comunidades são católicas ou evangélicas. A questão da fé contribui porque eles estão se agarrando na fé para poder mudar de vida. Nos casos onde há superação, eles dizem que a fé contribuiu muito porque eles estão sempre em oração, pedindo força a Deus para essa mudança. Além da religiosidade e da fé, temos o pilar da laborterapia e do acompanhamento psicossocial, em todas as comunidades é obrigado a ter. Não é um trabalho baseado só na religiosidade, ela faz parte de todo o acompanhamento, mas tem as outras áreas”.

Mas a secretária destaca a importância da reinserção social e necessidade de colocação no mercado de trabalho.

“Existe a laborterapia do dia a dia com os afazeres, hortas, roças e os cursos profissionalizantes e oficinas nas comunidades que ajudam na reinserção. Para que eles mudem a rotina e tenham outra visão”, ressalta.

O psicólogo e pastor Paulo Nunes da Comunidade Desafio Jovem é enfático ao afirmar que a sociedade precisa abrir os olhos para o acolhimento de dependentes químicos. Para ele, a reinserção continua sendo uma dificuldade.

“A sociedade precisa ver que nos acolhimentos existem seres humanos que precisam ser entendidos e aceitos. O drama é grande e a escala das drogas é crescente. A sociedade é intolerante e não permite o diálogo com eles, nenhuma grande empresa chega para oferecer vagas, eles fecham as portas. A sociedade precisa entender que eles não são uma casta inferior, temos um drama social”, expõe.