Cidades

O balanço gostoso da tradição

Rede, velha companheira de descanso de alagoanos que mantêm firme o costume de usá-la como utensílio

02/09/2017 09h34
O balanço gostoso da tradição
Reprodução - Foto: Assessoria

 “A cama obriga-nos a tomar o seu costume, ajeitando-nos nele, procurando o repouso numa sucessão de posições. A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete, dócil e macia, a forma do nosso corpo. A rede é acolhedora, compreensiva, ondulante, acompanhando, morna e brandamente, todos os caprichos da nossa fadiga e as novidades imprevistas do nosso sossego”.

A afirmação é do historiador, antropólogo, advogado e jornalista Câmara Cascudo, notável estudioso da cultura brasileira, ao referir-se a um dos costumes mais comuns do povo nordestino, no clássico trabalho intitulado “Rede de dormir”, um estudo etnográfico no qual o autor defende a rede como um produto de exportação ao lado de outras possiblidades, tamanha a sua abrangência e funcionalidade.

E foi para verificar este hábito, que a Tribuna Independente foi à caça de gente que mora em Maceió, mas que não deixa por nada o velho costume de descansar, tirar um cochilo ou mesmo dormir uma noite inteira no utensílio que atravessa o tempo sem perder seu charme.

                                                                                                                          (Crédito: Adailson Calheiros)

"Não dispenso a minha bichinha quando quero escutar um sonzinho, dar uma golada numa cervejinha ou quando termino o almoço para pegar aquele cochilo", diz o aposentado Carlos Leão

 

Costume de dormir em rede se perpetua até hoje com netos, revela aposentado

Um desses personagens é o aposentado Carlos Leão, 69 anos, morador da parte alta de Maceió que até hoje mantém viva a tradição de dormir em rede, hábito este que vem da infância.

“Antigamente as pessoas não  tinham cama. A gente dormia todo mundo em rede e, lá em casa, era menino que não acabava mais, somente dezoito, tudo em rede”, conta o bem-humorado Carlos.

“O material das redes era todo feito com saco de açúcar”, relembra Leão.

Bagunça gostosa

E a tradição é coisa tão levada a sério na casa de Carlos Leão que até hoje a nova geração da família segue à risca o velho hábito. “Tenho quatro filhos e nove netos e todos conservam esta tradição. Quando eles vêm aqui em casa é uma festa”, completa o aposentado, ao fazer uma revelação: “Na minha família, a única pessoa que não gosta de rede é minha esposa”.

Carlos mantém incólume a tradição na sua ‘redinha’, como chama carinhosamente, em horários e momentos sagrados para ele: “Não dispenso  a minha bichinha quando quero escutar um sonzinho, dar um golada numa cervejinha ou quando termino o almoço para pegar aquele cochilo”, diz. “No caso da cervejinha, até aproveito o vaivém e o balançar da redinha, porque é o balanço pra lá e pra cá e uma goladinha”, brinca.  

                                                                                                                          (Crédito: Adailson Calheiros)

Casal Neuza e João: rede é tão importante que faz parte da história de vida dos dois

“Quatro mocotós e dois corações batendo no balanço”

E se rede é tradição, por favor não deixar de fora deste rol o casal Neuza Berenice, assistente social, e o empresário João Manoel Carnaúba, moradores de um belo  e moderno condomínio na parte alta da capital alagoana, mas que não falta a boa e velha rede.

O utensílio é um gênero tão importante para o casal que está presente na varanda e no quarto. Mas tamanho carinho pela rede tem uma explicação não só histórica e cultural, como também afetiva.

“Sou sertaneja, nasci numa cidade que hoje é capital da indústria de rede no país. E lá todo mundo tinha que ter uma rede quando eu era criança, inclusive para dormir”, conta Neuza, ao referir-se à cidade de São Bento Brejo Cruz da Paraíba, sertão daquele Estado, que de fato é considerado o maior polo industrial quando o assunto é rede.

Como se diz na gíria popular, na terra de Neuza todos gostam de rede, seja velho, moço, menino e cachorro.  

Alagoano de Viçosa, na zona da Mata, e município que nunca teve muita tradição no assunto, o marido de Neuza, João Manoel, se tornou um aficcionado por rede quando teve que morar em São Bento por 12 anos de sua vida. “Meu amigo, imagine uma cidade cuja temperatura média é entre 40 e 45 graus. Então, não tinha como não se acostumar a apreciar uma rede e uma varanda com um calorzão desses. Isso sem contar que ela te dar um certo conforto, mesmo com um calor nesse nível”, explica João.

Tal conforto, porém, se explica por causa do tipo de tecido que João usava na rede em que dormia. “Era o Gabardine, que te dar a sensação de ar-condicionado, principalmente em lugar quente como aquele do sertão paraibano”, completa.

“A rede é um coisa muito gostosa, porque o corpo se molda”, defende João, ao não perder a oportunidade para filosofar. “Numa rede, são quatro mocotós e dois corações batendo”, disse, para a alegria da esposa. 

O município de São Bento, cidade de Neuza, está localizado na microrregião de Catolé do Rocha, a 375 Km da capital paraibana João Pessoa, é a maior produtora de redes do Brasil e produz mais de 12 milhões de redes por ano.

 A cidade possui até uma praça em homenagem aos Redeiros. Atualmente, São Bento exporta redes para todo os estados do Brasil bem como para a maioria dos países da América do Sul, África, Europa e Ásia.

No próximo dia 6 de setembro, o município promoverá a Expo Têxtil São Bento.

Tradição no Brasil vem de longe

A primeira citação nominal em português da rede de dormir foi feita em 27 de abril de 1500 pelo escrivão da frota portuguesa, Pero Vaz de Caminha, na ocasião em que o Brasil foi descoberto. Segundo consta em seus relatos, os índios dormiam sobre redes altas, atadas pelas extremidades.

Hoje em dia, as redes são fabricadas de diversas formas e materiais, desde as mais tradicionais de fio, tecidas em “batelão” (tear) mecânico ou elétrico, até as feitas a partir de tecido ou de materiais sintéticos como nylon e outros materiais. Na Região Nordeste do Brasil, a rede ainda é muito utilizada para dormir em substituição à cama, sendo também tradicionalmente utilizada para descanso em casas de praia (casas de veraneio).

                                                                                                                           (Crédito: Adailson Calheiros)

 

José Medeiros vende redes e conta que tem público cativo; ele conta que paixão vem da época dos pau-de-araras

 

Fruto deste costume é o vendedor José Medeiros, 55 anos, que desde os 18 anos é um expert quando o assunto é vender redes.

Com um ponto na Feirinha do Tabuleiro, Medeiros revela que a saída do produto “ainda é boa”, apesar da crise e do pouco costume que as pessoas na capital alagoana têm em relação a usar uma rede nos dias atuais.

O interesse de Medeiros pelo utensílio se deu quando ainda era criança, no município de Patos, na Paraíba, ao achar bonito os romeiros armarem aqueles tecidos vistosos nos caminhões conhecidos como “Pau-de-Araras”, que seguiam em viagens longas para verem o “Padim Ciço”, nas caravanas até Juazeiro do Norte, no Ceará.   

“Temos redes de vários tecidos e preços que variam entre R$ 25 e R$ 50. Mas é claro que antigamente as pessoas compravam mais para usar em casa ou levar para uma casa de praia”, ressalta o vendedor.  

Pesquisa atesta benefícios para quem usa

Um estudo recente realizado pela residência de ortopedia da Universidade do Estado do Pará (UEPA) com o Hospital Porto Dias, apresentado durante o último Congresso Paraense de Ortopedia e Traumatologia, mostrou que dormir em rede pode trazer benefícios para a coluna.

 A pesquisa foi realizada inicialmente com donas de casa do Bairro da Vila da Barca, em Belém, com idade entre 30 e 60 anos, público em que esses casos são mais comuns, segundo os estudos feitos pela Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT-PA).

Ouvido pela Tribuna Independente, o ortopedista Rafael Kennedy também é um dos adeptos cuja opinião é de que não existe nada que desabone o uso de uma rede quando o assunto é a saúde.  “Sou um incentivador que as pessoas façam uso, inclusive”, aconselha o médico.

Já o também ortopedista Rogério Barbosa, apesar de também ser favorável ao uso de redes, faz um alerta sobre quem quer ter uma em casa: “A rede não provoca ou agrava um problema na coluna, uma escoliose ou é a causa de uma hérnia, por exemplo, mas acho que é preciso ter cuidado na anatomia de cada pessoa, uma vez que a posição correta para se dormir é o decúbito lateral, posição que uma rede normalmente não oferece com facilidade”, alerta o profissional.  

 Segundo os estudos, o uso da rede promove um sono mais rápido e profundo. Indivíduos adormeceram mais rápido e mais profundamente quando dormiam em uma rede balançando lentamente, ao contrário de uma cama comum. Doze voluntários do sexo masculino que tinham bons hábitos de sono, tiveram dois cochilos de 45 minutos por semana. Em ambos os cochilos os voluntários dormiam em uma rede experimental. Durante o sono a rede balançou lentamente por um motor.

 Pesquisadores mediram a atividade elétrica no cérebro dos participantes e constataram que na rede de balanço, os participantes tiveram um rápido aparecimento do sono. Outra pesquisa é planejada, diz a coautora Sophie Schwartz, da Universidade de Genebra. “O que queremos saber agora é se uma noite inteira de sono nessas condições tem o mesmo efeito.” Um estudo completo da noite nova está em fase de início, diz ela.

 O novo estudo também incluirá mulheres, diz Schwartz. As mulheres ficaram de fora do primeiro estudo por causa dos efeitos do ciclo menstrual, pois eles influenciam no sono, embora seja muito provável que as mulheres irão sentir os mesmos efeitos de balançar como os homens. Embora a ligação entre o movimento e o sono pode parecer intuitiva para conseguir provocar sono nos bebês, seu uso para causar  sono em adultos não é amplamente reconhecido.

Para aqueles que tentam pegar no sono, sem redes, criando um ambiente repousante no quarto, o uso da rede pode ser uma boa aposta. É recomendado manter o quarto o mais escuro possível durante o sono, sem relógios digitais, computadores e outras fontes de luz.