Política

STJ impõe exigência de “provas robustas” e reacende debate sobre proteção a mulheres vítimas de violência

Decisão relatada pela ministra Marluce ressalta necessidade de comprovação mínima, mas especialistas apontam risco de esvaziar a palavra da vítima

Por Thayanne Magalhães 17/11/2025 07h42
STJ impõe exigência de “provas robustas” e reacende debate sobre proteção a mulheres vítimas de violência
A ministra Maria Marluce Caldas Bezerra destacou que a simples narrativa da vítima, ainda que relevante, não substitui a necessidade de elementos concretos e consistentes quando há dúvida sobre os fat - Foto: Andressa Anholete/Agência Senado

A decisão assinada pela ministra Marluce Caldas — ao determinar que medidas da Lei Maria da Penha só sejam aplicadas diante de “indícios mínimos” e “provas robustas” — movimentou o debate jurídico e acendeu um alerta entre entidades que atuam na defesa dos direitos das mulheres. Embora a relatora destaque que a palavra da vítima permanece relevante, a exigência de maior respaldo probatório acabou soando, para críticos, como uma porta aberta para o enfraquecimento de um dos pilares da legislação: a proteção emergencial baseada no relato da mulher.

O caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça envolve a suspensão de medidas protetivas decretadas por um Juizado de Violência Doméstica após a defesa alegar ausência de elementos que justificassem a restrição. No entendimento da ministra, não basta a narrativa isolada — é preciso que haja, ao menos, “circunstâncias que deem suporte mínimo à versão dos fatos”, sob pena de banalização da lei. Ela reforçou que o sistema de proteção não pode se transformar em instrumento de punição automática, sem o devido processo.

Mas a decisão chega em um momento delicado. Delegacias especializadas, defensorias e organizações que acolhem vítimas lembram que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) nasceu justamente para romper a lógica histórica de desconfiança sobre relatos de agressões — contexto em que a denúncia é, por si só, um ato de enorme risco. A legislação prevê, entre seus princípios, a intervenção rápida do Estado para interromper o ciclo de violência, mesmo antes da completa formação de um conjunto probatório.

A exigência de “provas mais consistentes”, embora juridicamente defensável, preocupa profissionais da ponta. Isso porque a maioria das agressões ocorre sem testemunhas, em ambiente doméstico, e muitas vítimas chegam às delegacias apenas com marcas no corpo, histórico de ameaças ou o medo estampado. Esses elementos, que sempre foram considerados indícios suficientes para acionar o sistema de proteção, agora correm o risco de serem relativizados.

O STJ, por outro lado, sustenta que a decisão não altera a essência da lei e não reduz a centralidade da palavra da vítima, apenas reforça a necessidade de algum nível de verificação preliminar antes de impor medidas que restringem direitos — como afastamento do lar, proibição de contato ou prisão preventiva. Segundo o tribunal, a determinação busca garantir segurança jurídica sem comprometer a proteção das mulheres.

O fato é que o entendimento abre uma discussão incômoda: até que ponto o Judiciário deve calibrar a proteção sem, involuntariamente, reeditar a velha cultura de suspeição sobre quem denuncia? Operadores do Direito temem que a exigência de provas imediatas funcione, na prática, como uma barreira para mulheres que já enfrentam enormes obstáculos emocionais, financeiros e sociais para buscar ajuda.

A Lei Maria da Penha permanece intacta em seu texto, mas a interpretação dada pelo STJ tende a influenciar decisões em instâncias inferiores — e isso pode alterar o panorama do atendimento nos estados. Delegados, promotores e juízes agora lidam com um novo parâmetro tácito: verificar, ainda na fase inicial, se a denúncia está acompanhada de elementos mínimos.

Se a intenção da ministra foi equilibrar garantias individuais e proteção às vítimas, o impacto da decisão está longe de consenso. No campo jurídico, continuará a discussão técnica; no cotidiano das mulheres que recorrem ao sistema, a dúvida mais urgente é outra: será que, na prática, sua palavra ainda basta?

Advogada esclarece: decisão não muda aplicação da Lei Maria da Penha



A advogada Andrea Alfama, especialista em Direito das Mulheres, diz que a interpretação de que o STJ passou a exigir “provas robustas” para aplicação da Lei Maria da Penha é equivocada. Segundo ela, a decisão da ministra Marluce Caldas trata exclusivamente de um caso específico vindo do Tribunal de Justiça do Amazonas — e não altera o entendimento geral da Corte, especialmente em relação às súmulas 536, 542, 588, 589, 600 e tema 983.

De acordo com Alfama, o processo analisado envolvia uma acusação de violência física que, ao chegar ao STJ, apresentava fragilidades evidentes no conjunto probatório. “me parece que havia fragilidades técnicas em relação ao laudo pericial, as fotografias não tinham data e faltavam elementos que comprovassem a agressão. Diante dessa inconsistência, a ministra aplicou o princípio in dubio pro réu: na dúvida, absolve-se”, explica.

A advogada frisa que a decisão é monocrática, não passou pela Corte Especial — composta pelos 15 ministros mais antigos — e não possui efeito vinculante, ou seja, não obriga outros tribunais a seguir o mesmo entendimento. “Não significa que agora o STJ decidiu que só com prova robusta se aplica a Lei Maria da Penha. Esse discurso é tecnicamente incorreto”, afirma.

Alfama também chama atenção para um ponto central ignorado nos debates públicos: a violência doméstica não se limita à agressão física. “Há violências que não deixam marcas — como a psicológica e a moral — e que, muitas vezes, sequer têm testemunhas. Isso não significa que não ocorreram”, destaca. O mesmo vale para a violência sexual dentro de relações íntimas, frequentemente silenciada por medo, vergonha ou dependência emocional.

Para ela, a absolvição no caso do Amazonas reflete “muito mais uma falha na instrução probatória do que a inexistência de violência”. E faz um alerta: as mulheres precisam buscar ajuda imediatamente, registrar ocorrência e reunir elementos que possam comprovar a agressão. “Provas testemunhais, gravações, laudo pericial quando há marcas físicas decorrente de agressão ou violência sexual, qualquer registro é fundamental para que o caso não se perca na linha do tempo”, orienta.

Alfama reforça que a Lei Maria da Penha permanece íntegra e que a palavra da vítima continua sendo um instrumento de grande relevância no sistema de proteção — mas lembra que, sem registros mínimos, o Estado pode encontrar obstáculos para garantir responsabilização. “Buscar apoio o quanto antes é essencial para que essa mulher não fique desprotegida e para que seu agressor não se beneficie de lacunas processuais”, conclui.