Política

“Mulheres estão perdendo o medo”

Promotora Maria José fala sobre combate à violência contra a mulher e defende continuidade das denúncias em repulsa aos agressores

Por Carlos Amaral com Tribuna Independente 25/08/2018 08h31
“Mulheres estão perdendo o medo”
Reprodução - Foto: Assessoria
Até o mês de junho deste ano, a Promotoria de Justiça de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher já recebeu 339 denúncias de ameaças contra mulheres e 300 de lesão corporal. Isso fora os casos de estupro ou outros tipos de agressão ocorrida dentro de casa. Para a promotora de Justiça do Ministério Público Estadual, Maria José Alves, titular da promotoria, as mulheres estão denunciando mais, porém é preciso mais ações preventivas para diminuir significativamente esses números e evitar o surgimento de novos agressores. Tribuna Independente – Que tipos de agressão às mulheres – que se enquadram na Lei Maria da Penha – são mais cometidos em Maceió? Maria José – O que nós temos mais são, e isso em todos os anos, ameaças e agressão. Para você ter uma ideia, em 2016 tivemos 712 ameaças; em 2017, 967; em 2018, no primeiro semestre, até 30 de junho, foram 339 ameaças. Lesão corporal foram, em 2016, 921 casos; em 2017, 974; e em 2018, no primeiro semestre, 300. Os outros tipos de caso diminuíram também. Estupro, em 2018, são quatro casos até agora; em 2016 foram sete; e em 2017, quinze. Tribuna Independente – Esses números são os que chegaram à Promotoria. As mulheres ainda têm medo de denunciar agressões? Maria José – Olha, eu gostaria muito que a imprensa mudasse o foco, isso no Brasil inteiro. Duas coisas que não são tão incidentes como antes. Primeiro, a questão do medo da denúncia. Óbvio que há mulheres que têm medo, claro que sim. Em 2013, ano em que cheguei aqui [na Promotoria], o perfil das mulheres vítimas de violência, de lá para cá, mudou muito. Hoje tem muitas que dizem ‘eu vim mesmo denunciar’. Muitas vêm diretamente a nós ou vão à Defensoria porque não gostam de ir à delegacia, apesar de maioria dos casos virem das delegacias. É claro que as campanhas, a imprensa, o que tem se divulgado, os trabalhos feitos nas comunidades e nas escolas têm modificado isso. Por isso é importante, pois é o eixo da prevenção. Quando ele é trabalhado, se está dando força à mulher e dizendo a ela que não precisa ter medo, que ela pode denunciar. O medo que ela pode ter é o de não fazê-lo. Quando isso ocorre, está fortalecendo e estimulando, cada vez mais, as agressões. Às vezes um crime contra a honra, à difamação ou injúria acaba em ameaça. Como foi o caso da Joana Mendes, em que tínhamos um processo aqui de ameaça, mas acabou se transformando num caso de feminicídio trágico. Por isso é tão importante e eu percebo isso. Para você ter uma ideia, tinha mulheres aqui que, no gabinete e sozinha comigo, não me olhava nos olhos, com a cabeça sempre baixa, com vergonha e se desculpando muito. Ela achava que a culpa da agressão era dela. Outro caso foi o de uma empregada doméstica que recebia seu salário em espécie, dentro de um envelope. Essa mulher entregava seu dinheiro ao marido, com o envelope do jeito que recebeu, intacto, porque ele gerenciava as despesas da casa. Num dia, seus filhos pediram para ela comprar pipoca. Ela comprou dois sacos e ao chegar em casa apanhou do marido por isso. O dinheiro era dela, o salário era dela. Óbvio que um casal pode dividir as despesas da casa, de comum acordo, mas a mulher não precisa entregar seu salário ao marido. Em 2016, um homem bateu em sua mulher porque o feijão não estava cozido. E na instrução do processo ele fala isso, sob o argumento de que a mulher não faz nada, só toma conta dos filhos. ‘Dou o de comer e o de vestir’, ele falou. Ele sequer perguntou o motivo de o feijão não estar pronto. Tribuna Independente – Essa violência do homem contra a mulher ainda é muito naturalizada, não é? Maria José – Esse caso, sim. A gente vive numa sociedade, não só Alagoas, é bom que se diga, mas a gente mostra muito os casos negativos que ocorrem e esquece dos casos em que as mulheres seguem com suas vidas e os homens entenderam o problema também. É preciso trabalhar o homem-agressor. Se o machismo, sexismo, é resultado de uma cultura eu tenho de entender que as mulheres também vivem nessa cultura. Mas como eu mudo cultura, só trabalhando os processos que chegam para mim? Não. Esses processos são crimes que já aconteceram, não é? Onde se tem de trabalhar para diminuir os números? No campo da prevenção. Só cadeia não combate a causa e origem desse machismo, desse sexismo. O homem do feijão era uma pessoa simples, de baixa instrução, mas a violência doméstica é bem democrática. Ela acontece em todos os lares. Temos aqui na Promotoria casos das áreas nobres, de pessoas com doutorado. Não tem isso. Óbvio que o maior número de casos são das camadas menos privilegiadas, mas isso é lógica. Pegue a pirâmide social do país e você verá que o número de pessoas menos privilegiadas é ‘um trilhão’ de vezes menor que as outras classes. Por isso a prevenção. Mas também é verdade que as mulheres mais pobres têm menos vergonha de fazer denúncias. Teve um caso aqui em que uma mulher veio de lenço e óculos escuro para encobrir o rosto e ninguém a reconhecê-la porque ela figurava nas colunas sociais. Tribuna Independente – A senhora fala em prevenção e estamos no mês da campanha Agosto Lilás. Campanhas como esta são suficientes ou que outras ações deveriam ser feitas na prevenção à violência doméstica? Maria José – Claro que não. O Agosto Lilás é só uma luz. Por exemplo, a questão do sarampo. Por quê? Por que as pessoas deixaram de se vacinar e a doença voltou no Brasil e na Europa. A campanha de vacinação do sarampo é só um alerta, mas as vacinas devem ser disponibilizadas de forma perene. O Agosto Lilás, é uma campanha por conta do mês da mulher. Vamos aos bairros para falar às pessoas sobre os serviços de proteção e como fazer denúncias, além de discutir a forma como muitas autoridades ainda reagem a esse tipo de situação. ‘Você foi agredida, cadê a marca?’, como se agressão psicológica não adoecesse as pessoas. Não é fácil você chegar em casa, como mulher, e nunca poder dar opinião em nada, por exemplo. Adoece os filhos. Conheço um caso o marido passou a vida chamando a mulher de burra e a mandando calar a boca. Ela tinha uma boa casa, tinha dinheiro e cartão de crédito, mas não tinha, por parte do marido, nenhum respeito. Mesmo depois de divorciada, ela continuava a não opinar sobre as coisas. Ficou introjetado algo que aquele homem, por mais de vinte anos, falou a ela. Antes da Lei Maria da Penha, a agressão psicológica não era considerada. Se as autoridades não vissem nenhuma marca em você, diziam que não era nada e ainda perguntavam o que você fez. Isso ainda acontece, mas diminuiu bastante.