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108 anos após o Quebra de Xangô, Alagoas ainda mostra intolerância religiosa

Agressões físicas, xingamentos, depredações e destruições de imagens ocorrem em pleno século XXI

Por Texto: Wellington Santos com Tribuna Independente 14/03/2020 17h44
108 anos após o Quebra de Xangô, Alagoas ainda mostra intolerância religiosa
Reprodução - Foto: Assessoria
QUEBRA DE 1912 CONTRA RELIGIOSOS DE MATRIZES AFRICANAS AINDA RESPINGA NA TERRA DE ZUMBI Entre os dias 1º e 2 de fevereiro, Alagoas lembrou os 108 anos de um dos mais emblemáticos episódios da história do Estado que ficou conhecido como “O Quebra de 1912”. O movimento foi organizado por integrantes da Liga dos Republicanos Combatentes, em Maceió, e responsável por um dos piores casos de violência e intolerância religiosa contra terreiros e praticantes de crenças de matriz africana. O episódio teve conotação ainda de preconceito contra os negros alagoanos e abuso de autoridade, figurando, segundo os historiadores, como caso gravíssimo de discriminação explícita ocorrida no Brasil. Também denominada Operação Xangô, o movimento tinha viés político que objetivava a queda do então governador do Estado, Euclides Vieira Malta, que já administrava Alagoas por 12 anos ininterruptos e era adepto da religião de matriz africana. Não raro, a reboque do que significou o Quebra para a história, esse episódio sempre que lembrado suscita os mais diversos questionamentos que pululam o universo imaginário e o inconsciente das pessoas que dão prosseguimento às crenças religiosas de matriz africana e até mesmo dos historiadores que ouviram relatos dos contemporâneos do episódio. Um exemplo disso é o mito que ficou de uma personagem que para muitos é a personificação de um mártir do Quebra de 1912 – Tia Marcelina, que, segundo as informações colhidas na imprensa da época e obras literárias que versam sobre o assunto, seria a mais famosa yalorixá dessa época. No “corpo” intelectual do Quebra, faziam parte políticos locais, como Clodoaldo da Fonseca, então candidato a governador; Fernandes Lima, seu vice, e Manuel da Paz, um sargento militar responsável pela liderança da Liga e da devassa aos terreiros alagoanos. O ataque coordenado pela Liga dos Republicanos Combatentes, comandado por Paz, tem outro importante componente para análise: o movimento foi muito profissional na ação, isso porque o sargento era integrante do Exército e serviu no batalhão da Guerra de Canudos (BA) e reforça a versão dos historiadores no viés político como o principal motivo para a destruição dos terreiros. “Foi uma perseguição ao governador Euclides Malta, que tinha ligação com os terreiros e havia recebido até o título de papa do xangô alagoano. O interessante é que Euclides era um fervoroso católico”, conta o médico, historiador e ex-vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) Fernando Gomes, autor do livro “Legba”, que aborda a “Operação Quebra-Quebra da Soberania”, que vitimou o governo de Euclides Vieira Malta, coroado o papa do xangô alagoano, o deus Legba. A oposição conseguiu destituí-lo e, com isso, a Liga dos Republicanos Combatentes – uma associação civil miliciana – junto com o apoio popular - conseguiu destruir com fúria os terreiros. INTOLERÂNCIA CRESCE; JÁ EM ALAGOAS, NÚMEROS SÃO SUBNOTIFICADOS Passados 108 anos do triste episódio na Terra de Zumbi dos Palmares, sabe-se que, constitucionalmente, o Brasil é laico há mais de 120 anos e não discrimina nenhuma religião. Mas na prática, o país ainda mostra as faces da intolerância religiosa, com agressões físicas, xingamentos, depredações, destruições de imagens, tentativas de homicídio e incêndios criminosos. Levantamento feito pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), com base nas ligações para o Disque 100, aponta que, no primeiro semestre de 2019, foram registradas 210 denúncias de discriminação por religião. Os estados campeões são Rio Grande do Norte, São Paulo e Rio de Janeiro. Desde 2015, o estado potiguar lidera o ranking, e os outros dois têm alternado o segundo e o terceiro lugares. A maior parte dos relatos foi feita por praticantes de crenças como a umbanda e o candomblé. Os casos são registrados via Disque 100, número de telefone do governo criado em 2011, que funciona 24 horas por dia para receber denúncias de violações de direitos humanos. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa – uma média de 50 por mês. Os números podem ser ainda mais expressivos, já que, em muitos casos, as vítimas não realizam a denúncia, por medo de que a violência se repita ou de que o Estado não preste o apoio necessário. Já em Alagoas, um outro ponto a ser levado em consideração na questão de casos de intolerância é a chamada subnotificação, que são registros abaixo do que realmente acontece, não formalizados, gerando índice abaixo da realidade. Procurada pela reportagem do Tribuna Independente, a Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, através da assessoria, afirmou que recebeu duas denúncias recentes, mas informou que muita gente não formaliza denúncia de discriminação religiosa. A Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, também por meio da assessoria, informou que não existe um departamento ou delegacia específica para apurar os casos de intolerância religiosa. Quando ocorrem, eles são investigados pela delegacia que cobre a área do fato. Sobre casos em investigação, a Polícia Civil informou que há três registros. Entre as religiões que mais sofrem discriminação, está a umbanda, com 34 denúncias; o candomblé, com 20; e a evangélica, com 16 casos. A pesquisa do MDH também traçou o perfil dos agressores. A maioria das ações de intolerância é praticada por mulheres. Elas também encabeçam a lista das vítimas — são 45,18%, contra 37,35% dos homens. “SOU DISCRIMINADO DENTRO DO ÔNIBUS, POIS FAZEM QUESTÃO DE NÃO SENTAREM A MEU LADO” Em Alagoas, o historiador, pesquisador da cultura afro-brasileira Célio Rodrigues, também conhecido como “Pai Célio”, administrador e fundador do primeiro museu a céu aberto de tradições de matriz africana de Maceió, conta que sofre na pele a discriminação nada velada por ser adepto da religião. “Muitas vezes precisei me deslocar de ônibus até o centro da cidade e notei que quando uso turbante, ninguém senta na poltrona onde eu estou por pura discriminação, desconfiança, medo e ignorância também”, relata Pai Célio. “Essa coisa de não sentar perto é também uma espécie de Quebra, porque mostra a faceta psicológica com viés discriminatório das pessoas”, completa.

O primeiro grande Quebra foi no ano de 1695, no século dezessete, com o extermínio e os grandes genocídios em todo os quilombos ligados à Serra da Barriga, no município de União dos Palmares, afirma Pai Célio (Foto: Sandro Lima)

Em Brasília, por exemplo, Adna Santos, 56 anos, mais conhecida como Mãe Baiana, sentiu na pele a discriminação contra o candomblé, religião à qual pertence. Chefe da Divisão de Proteção de Patrimônio da Casa Palmares, ela possui um terreiro no Lago Norte, na divisa com o Paranoá. Em novembro de 2015, o Ylê Axé Oyá Bagan foi incendiado e vários santos e instrumentos religiosos foram queimados ou destruídos. Um laudo da polícia apontou curto-circuito, conclusão contestada por membros da comunidade. No mesmo ano, foram registrados mais de 10 ataques a terreiros no DF. “Sofro preconceito. Sou preta, mãe de santo, com um terreiro instalado em uma área nobre. A situação melhorou com a implantação da delegacia contra crimes religiosos e com a visibilidade da Palmares. Antes, o próprio governo desconhecia o nosso povo. A população nos tratava como macumbeiros”, diz Mãe Baiana. Em Maceió, em 2019, um caso tomou as manchetes do noticiário que lembrou bem o episódio que ocorreu em 1912. Um terreiro de candomblé foi alvo de violência e intolerância religiosa durante a madrugada do emblemático dia 13 de maio, dedicado à memória da assinatura da Lei Áurea. O centro fica localizado no Conjunto Otacílio de Holanda, na Cidade Universitária. De acordo com Veronildes Rodrigues da Silva, a “Mãe Vera”, durante a noite alguém tentou entrar no centro, mas não conseguiu e retornou durante a madrugada por volta de 4h. “Tentaram entrar, mas não conseguiram devido ao portão ser muito forte, e correram. Às 4h eles voltaram, derrubaram o portão e destruíram o que tinha na área, foi quando eu chamei os vizinhos”, afirmou. Segundo Mãe Vera, havia várias pessoas dentro do centro, mas ninguém ficou ferido, e só a área externa foi afetada. “Por eu viver na militância da vida, cuidando da minha comunidade, sei que não foi ninguém daqui. Não posso apontar o dedo para dizer que foi alguém, não tenho como. Há pouco terminei um projeto, ‘Maracatu na Comunidade’, não tivemos atrito com ninguém que motivasse o ataque”, completou Mãe Vera. Vera foi uma das poucas a registrar Boletim de Ocorrência na Polícia Civil por esse tipo de crime. MÃE MIRIAM, HEROÍNA DE LONGAS DATAS QUE MANTÉM RESPEITO DE SUA FÉ Quem visita o terreiro de Mãe Miriam, uma das mais antigas yalorixás de Alagoas, no bairro da Ponta da Terra, em Maceió, tem como boas-vindas a saudação na língua yorubá com o significado: “casa de amor, filho das águas do Poço Betá”. “O Poço Betá é um elemento da natureza”, explica ela, que há 85 anos nasceu Miriam Araújo Souza Melo, e se tornou uma referência na religião de matriz africana. O yorubá é um idioma da família linguística nígero-congolesa falado secularmente pelos yorubás em diversos países ao sul do Saara, principalmente na Nigéria e por minorias em Benim, Togo e Serra Leoa. No Brasil, quando se fala em Orixá, normalmente o termo refere-se a uma força pura, geradora de uma série de fatores predominantes na vida de uma pessoa e também na natureza. Os Orixás são os intermediários entre Olódùmarè - Olórun (Deus) e os seres humanos.

Mãe Miriam é uma das sacerdotisas mais antigas da religião de matriz africana em Alagoas e luta pelo respeito e o direito de vivenciar sua fé (Foto: Edilson Omena)

Questionada se o centro religioso já sofreu algum tipo de ataque de intolerância desde que inaugurou em 1975, Mãe Miriam, que foi iniciada aos 12 anos de idade na religião, responde que nunca passou por esse tipo de situação desagradável no local de sua crença. “Graças a Deus o meu centro nunca sofreu represálias de quebra-quebra, ele é respeitado aqui no bairro”. Porém, revela perseguição quando deu os primeiros passos na crença. “Naquele tempo era difícil assumir que se acreditava em qualquer religião afro. Eu ainda hoje sofro e já sofri discriminação quando ando por aí com gente que diz assim, ‘o diabo que te carregue’...’olha a endemoniada’ e ouço piadas ainda”, conta Miriam. “Infelizmente, apesar da luta que nós temos no movimento negro, religioso e dos quilombolas, luta pela liberdade, da mulher, ainda existe a discriminação, mas estamos unidos. Graças a Deus temos ao nosso lado o Ministério Público, o Tribunal de Justiça para que nossos direitos de professar a religião que acreditamos não sejam retirados”, diz. PESQUISADOR APONTA MAIS TRÊS GRANDES QUEBRAS Para Pai Célio, os ‘Quebras’ contra casas de religiões de matriz africana aconteceram em número de quatro episódios na historiografia brasileira e alagoana, e não somente no ano de 1912. “O primeiro grande Quebra foi no ano de 1695, no século dezessete, com o extermínio e os grandes genocídios em todo os quilombos ligados à Serra da Barriga, no município de União dos Palmares. Se não tivesse ocorrido aquele Quebra, com certeza teríamos em Alagoas o maior povo bantu do mundo fora da África”, sustenta o historiador. “Vieram homens e mulheres livres da África. Aqui é que eles foram escravizados”, completa Célio. O segundo grande Quebra, de acordo com ele, foi a divisão de 1817 com a separação de Alagoas e Pernambuco. “Um problema que ocorre em Pernambuco, a Revolução Praieira, respinga em Alagoas. E por isso digo que Alagoas passou a ser o quintal cultural de Pernambuco porque é um estado que tem o maior número de folguedos como o maracatu, taieira, baianas, todos relatando os sofrimentos do povo negro alagoano. O batido do tambor do bumba meu boi é a batida do xangô, com origens negras”, explica. E o terceiro Quebra de 1912, acrescenta Pai Célio, foi gerado por um problema político que respinga contra a religiosidade. “Um grupo contrário ao governador não havia encontrado nenhuma mácula para derrubá-lo e foram mexer e encontraram brecha justamente na religiosidade do então governador”, explica Pai Célio. E os dias 1 e 2 de fevereiro não foram escolhidos à toa. Era o dia de Oxum, e no sincretismo religioso era também o Dia de Nossa Senhora das Candeias, com tudo preparado para a festa em homenagem à santa com as chamadas “obrigações”, em todos os terreiros naquele fatídico dia. O quarto grande Quebra, diz Célio, foi a ditadura Vargas, na ascensão do gaúcho Getúlio Vargas ao poder em 1930, o qual culminou com o fechamento de todas as casas de terreiro do país, mediante a outorga de uma lei. Sobre se considera os episódios de violência dos dias atuais uma espécie de Quebra moderno, Pai Célio diz que não é um quebra-quebra propriamente dito, mas um ‘Quebra administrativo’. “A atual presidência da Fundação Palmares, por exemplo, tem uma visão distorcida. E outro absurdo são os fatos de violência e intolerância religiosa em várias casas de terreiros no Rio de Janeiro por movimentos e milícias ligados a evangélicos”, relembra. Ele acrescenta que em Alagoas tiraram um terreiro antigo no bairro de Jaraguá de uma yalorixá para colocá-la em um apartamento “Onde já se viu candomblé dentro de apartamento?”, questiona, ao lembrar também do quebra-quebra no centro de Mãe Vera. “As igrejas neopentecostais no bairro do Cruzeiro do Sul jogaram chuvas de pedras em um terreiro de uma senhora por lá. Mas o pior é que esses inquéritos não andam, não chegam. É o preconceito institucional de um policial que é crente e não se interessa em apurar”, diz Célio, sem se importar com possíveis críticas, justamente porque também é um policial civil, porém aposentado. “Com o fenômeno ocorrido em 1912, o grupo étnico africano da Nação Xambá foi expulso de Alagoas e se ramificou por vários Estados do Nordeste, principalmente em Pernambuco. Em verdade, 1912 é considerado uma diáspora do candomblé em Alagoas”, avalia. COLEÇÃO PERSEVERANÇA: RELÍQUIA TOMBADA MANTÉM RESPEITO ÀS TRADIÇÕES A Coleção Perseverança é considerada uma das mais importantes e raras coleções etnográficas existentes no País. São esculturas, imagens, instrumentos, indumentárias e paramentos que resistiram ao “Dia do Quebra”. As peças, antes de chegarem ao Instituto Histórico e Geográico de Alagoas (IHGAL), pertenciam ao museu da extinta Sociedade Perseverança e Auxílio dos Empregados no Comércio de Maceió, conhecida como agremiação dos caixeiros – como antigamente eram chamados os comerciários. Por isso o nome da coleção, que por sua importância foi cobiçada, antes de passar a fazer parte do acervo do Instituto, por uma organização americana. De procedência africana em sua maioria, os objetos encontram-se em perfeito estado de conservação. Uma das peças consideradas de maior valor da coleção é o capacete Ogum-China. Coberto com búzios africanos e contas brancas, ele chegou a ser avaliado, em 1912, em 500 mil réis. As esculturas de Oxalá, Ogum-Taió, Xangô-Dadá e Oxum-Ekum, por exemplo, representam os Orixás, divindades das religiões afro. Cajado, espada, ganzá, agogôs, pandeiro e vasilhas de barro também fazem parte do acervo. No livro Legba, o médico e escritor Fernando Gomes destaca no volume uma marca singular: a do conhecimento de que a arte da religiosidade negra dos malês no Brasil vai além de uma manifestação folclórica ou antropológica. Como se observa na longa introdução, um verdadeiro estudo do autor reafirma que o Quebra é oriundo de uma disputa política que resultou na apreensão de objetos de culto. O governo da época reprimiu e recolheu as peças, o que permitiu, mais tarde, o acesso a esse importante acervo de esculturas religiosas e objetos de culto nos terreiros xangôs dos negros malês. A Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas serve como fonte de consultas para vários estudos e elucidação de pontos fundamentais para a compreensão das influências dos orixás, vodus, inquices, malês, caboclos, candomblés, umbanda, catimbó, jurema, xangôs nos símbolos da travessia do homem vivente das Alagoas. TIA MARCELINA, A PRETA ANCESTRAL No episódio de 2012, nenhuma história é mais emblemática que o da africana Tia Marcelina, fundadora do candomblé em Alagoas e a mais famosa mãe de santo do estado à época, e a quem é atribuída uma frase que vive no imaginário de adeptos e simpatizantes da religião de matriz africana. A famosa yalorixá teve seu terreiro invadido por um grupo miliciano. Ela resistiu à invasão de seu terreiro e recebeu golpes de sabre enquanto, banhada de sangue, bradava: “Bate moleque, quebra braço, quebra perna, tira sangue, mas não tira saber”, gemendo para Xangô a cada chute. Tia Marcelina e outros adeptos exerciam livremente a prática do seu ofício na pacata e burguesa Maceió, pelos idos de 1910. O famoso xangô da tia Marcelina ficava situado num baixio à margem dos trilhos da Great Western, quase em frente à rua da Aroeira, habitada por mascates e bicheiros. O Quebra de 1912 se estendeu a várias cidades próximas de Maceió. Os objetos que não eram queimados na fogueira pública eram levados para a sede da Liga e colocados em exposição no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) onde se encontram até os dias atuais. A influência da cultura afrodescendente oriunda de negros escravos que vieram para o Brasil trouxe enormes bagagens culturais, como a arte, gastronomia e a religião, além de usos e costumes com linguajar próprio, ritmos e vozes. E Alagoas não foi diferente. E dessa forma, há uma singularidade que transformou a Terra de Zumbi dos Palmares como ponto inicial para a disseminação da cultura afro em uma de suas vertentes para outros estados do país.