Cidades
108 anos após o Quebra de Xangô, Alagoas ainda mostra intolerância religiosa
Agressões físicas, xingamentos, depredações e destruições de imagens ocorrem em pleno século XXI
14/03/2020 17h44
![108 anos após o Quebra de Xangô, Alagoas ainda mostra intolerância religiosa](http://img.tribunahoje.com/bktBy5nqoGNV0DOhiB76yEEOuoY=/840x520/smart/s3.tribunahoje.com/uploads/imagens/especial-2.jpg)
O primeiro grande Quebra foi no ano de 1695, no século dezessete, com o extermínio e os grandes genocídios em todo os quilombos ligados à Serra da Barriga, no município de União dos Palmares, afirma Pai Célio (Foto: Sandro Lima)
Em Brasília, por exemplo, Adna Santos, 56 anos, mais conhecida como Mãe Baiana, sentiu na pele a discriminação contra o candomblé, religião à qual pertence. Chefe da Divisão de Proteção de Patrimônio da Casa Palmares, ela possui um terreiro no Lago Norte, na divisa com o Paranoá. Em novembro de 2015, o Ylê Axé Oyá Bagan foi incendiado e vários santos e instrumentos religiosos foram queimados ou destruídos. Um laudo da polícia apontou curto-circuito, conclusão contestada por membros da comunidade. No mesmo ano, foram registrados mais de 10 ataques a terreiros no DF. “Sofro preconceito. Sou preta, mãe de santo, com um terreiro instalado em uma área nobre. A situação melhorou com a implantação da delegacia contra crimes religiosos e com a visibilidade da Palmares. Antes, o próprio governo desconhecia o nosso povo. A população nos tratava como macumbeiros”, diz Mãe Baiana. Em Maceió, em 2019, um caso tomou as manchetes do noticiário que lembrou bem o episódio que ocorreu em 1912. Um terreiro de candomblé foi alvo de violência e intolerância religiosa durante a madrugada do emblemático dia 13 de maio, dedicado à memória da assinatura da Lei Áurea. O centro fica localizado no Conjunto Otacílio de Holanda, na Cidade Universitária. De acordo com Veronildes Rodrigues da Silva, a “Mãe Vera”, durante a noite alguém tentou entrar no centro, mas não conseguiu e retornou durante a madrugada por volta de 4h. “Tentaram entrar, mas não conseguiram devido ao portão ser muito forte, e correram. Às 4h eles voltaram, derrubaram o portão e destruíram o que tinha na área, foi quando eu chamei os vizinhos”, afirmou. Segundo Mãe Vera, havia várias pessoas dentro do centro, mas ninguém ficou ferido, e só a área externa foi afetada. “Por eu viver na militância da vida, cuidando da minha comunidade, sei que não foi ninguém daqui. Não posso apontar o dedo para dizer que foi alguém, não tenho como. Há pouco terminei um projeto, ‘Maracatu na Comunidade’, não tivemos atrito com ninguém que motivasse o ataque”, completou Mãe Vera. Vera foi uma das poucas a registrar Boletim de Ocorrência na Polícia Civil por esse tipo de crime. MÃE MIRIAM, HEROÍNA DE LONGAS DATAS QUE MANTÉM RESPEITO DE SUA FÉ Quem visita o terreiro de Mãe Miriam, uma das mais antigas yalorixás de Alagoas, no bairro da Ponta da Terra, em Maceió, tem como boas-vindas a saudação na língua yorubá com o significado: “casa de amor, filho das águas do Poço Betá”. “O Poço Betá é um elemento da natureza”, explica ela, que há 85 anos nasceu Miriam Araújo Souza Melo, e se tornou uma referência na religião de matriz africana. O yorubá é um idioma da família linguística nígero-congolesa falado secularmente pelos yorubás em diversos países ao sul do Saara, principalmente na Nigéria e por minorias em Benim, Togo e Serra Leoa. No Brasil, quando se fala em Orixá, normalmente o termo refere-se a uma força pura, geradora de uma série de fatores predominantes na vida de uma pessoa e também na natureza. Os Orixás são os intermediários entre Olódùmarè - Olórun (Deus) e os seres humanos.Mãe Miriam é uma das sacerdotisas mais antigas da religião de matriz africana em Alagoas e luta pelo respeito e o direito de vivenciar sua fé (Foto: Edilson Omena)
Questionada se o centro religioso já sofreu algum tipo de ataque de intolerância desde que inaugurou em 1975, Mãe Miriam, que foi iniciada aos 12 anos de idade na religião, responde que nunca passou por esse tipo de situação desagradável no local de sua crença. “Graças a Deus o meu centro nunca sofreu represálias de quebra-quebra, ele é respeitado aqui no bairro”. Porém, revela perseguição quando deu os primeiros passos na crença. “Naquele tempo era difícil assumir que se acreditava em qualquer religião afro. Eu ainda hoje sofro e já sofri discriminação quando ando por aí com gente que diz assim, ‘o diabo que te carregue’...’olha a endemoniada’ e ouço piadas ainda”, conta Miriam. “Infelizmente, apesar da luta que nós temos no movimento negro, religioso e dos quilombolas, luta pela liberdade, da mulher, ainda existe a discriminação, mas estamos unidos. Graças a Deus temos ao nosso lado o Ministério Público, o Tribunal de Justiça para que nossos direitos de professar a religião que acreditamos não sejam retirados”, diz. PESQUISADOR APONTA MAIS TRÊS GRANDES QUEBRAS Para Pai Célio, os ‘Quebras’ contra casas de religiões de matriz africana aconteceram em número de quatro episódios na historiografia brasileira e alagoana, e não somente no ano de 1912. “O primeiro grande Quebra foi no ano de 1695, no século dezessete, com o extermínio e os grandes genocídios em todo os quilombos ligados à Serra da Barriga, no município de União dos Palmares. Se não tivesse ocorrido aquele Quebra, com certeza teríamos em Alagoas o maior povo bantu do mundo fora da África”, sustenta o historiador. “Vieram homens e mulheres livres da África. Aqui é que eles foram escravizados”, completa Célio. O segundo grande Quebra, de acordo com ele, foi a divisão de 1817 com a separação de Alagoas e Pernambuco. “Um problema que ocorre em Pernambuco, a Revolução Praieira, respinga em Alagoas. E por isso digo que Alagoas passou a ser o quintal cultural de Pernambuco porque é um estado que tem o maior número de folguedos como o maracatu, taieira, baianas, todos relatando os sofrimentos do povo negro alagoano. O batido do tambor do bumba meu boi é a batida do xangô, com origens negras”, explica. E o terceiro Quebra de 1912, acrescenta Pai Célio, foi gerado por um problema político que respinga contra a religiosidade. “Um grupo contrário ao governador não havia encontrado nenhuma mácula para derrubá-lo e foram mexer e encontraram brecha justamente na religiosidade do então governador”, explica Pai Célio. E os dias 1 e 2 de fevereiro não foram escolhidos à toa. Era o dia de Oxum, e no sincretismo religioso era também o Dia de Nossa Senhora das Candeias, com tudo preparado para a festa em homenagem à santa com as chamadas “obrigações”, em todos os terreiros naquele fatídico dia. O quarto grande Quebra, diz Célio, foi a ditadura Vargas, na ascensão do gaúcho Getúlio Vargas ao poder em 1930, o qual culminou com o fechamento de todas as casas de terreiro do país, mediante a outorga de uma lei. Sobre se considera os episódios de violência dos dias atuais uma espécie de Quebra moderno, Pai Célio diz que não é um quebra-quebra propriamente dito, mas um ‘Quebra administrativo’. “A atual presidência da Fundação Palmares, por exemplo, tem uma visão distorcida. E outro absurdo são os fatos de violência e intolerância religiosa em várias casas de terreiros no Rio de Janeiro por movimentos e milícias ligados a evangélicos”, relembra. Ele acrescenta que em Alagoas tiraram um terreiro antigo no bairro de Jaraguá de uma yalorixá para colocá-la em um apartamento “Onde já se viu candomblé dentro de apartamento?”, questiona, ao lembrar também do quebra-quebra no centro de Mãe Vera. “As igrejas neopentecostais no bairro do Cruzeiro do Sul jogaram chuvas de pedras em um terreiro de uma senhora por lá. Mas o pior é que esses inquéritos não andam, não chegam. É o preconceito institucional de um policial que é crente e não se interessa em apurar”, diz Célio, sem se importar com possíveis críticas, justamente porque também é um policial civil, porém aposentado. “Com o fenômeno ocorrido em 1912, o grupo étnico africano da Nação Xambá foi expulso de Alagoas e se ramificou por vários Estados do Nordeste, principalmente em Pernambuco. Em verdade, 1912 é considerado uma diáspora do candomblé em Alagoas”, avalia. COLEÇÃO PERSEVERANÇA: RELÍQUIA TOMBADA MANTÉM RESPEITO ÀS TRADIÇÕES A Coleção Perseverança é considerada uma das mais importantes e raras coleções etnográficas existentes no País. São esculturas, imagens, instrumentos, indumentárias e paramentos que resistiram ao “Dia do Quebra”. As peças, antes de chegarem ao Instituto Histórico e Geográico de Alagoas (IHGAL), pertenciam ao museu da extinta Sociedade Perseverança e Auxílio dos Empregados no Comércio de Maceió, conhecida como agremiação dos caixeiros – como antigamente eram chamados os comerciários. Por isso o nome da coleção, que por sua importância foi cobiçada, antes de passar a fazer parte do acervo do Instituto, por uma organização americana. De procedência africana em sua maioria, os objetos encontram-se em perfeito estado de conservação. Uma das peças consideradas de maior valor da coleção é o capacete Ogum-China. Coberto com búzios africanos e contas brancas, ele chegou a ser avaliado, em 1912, em 500 mil réis. As esculturas de Oxalá, Ogum-Taió, Xangô-Dadá e Oxum-Ekum, por exemplo, representam os Orixás, divindades das religiões afro. Cajado, espada, ganzá, agogôs, pandeiro e vasilhas de barro também fazem parte do acervo. No livro Legba, o médico e escritor Fernando Gomes destaca no volume uma marca singular: a do conhecimento de que a arte da religiosidade negra dos malês no Brasil vai além de uma manifestação folclórica ou antropológica. Como se observa na longa introdução, um verdadeiro estudo do autor reafirma que o Quebra é oriundo de uma disputa política que resultou na apreensão de objetos de culto. O governo da época reprimiu e recolheu as peças, o que permitiu, mais tarde, o acesso a esse importante acervo de esculturas religiosas e objetos de culto nos terreiros xangôs dos negros malês. A Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas serve como fonte de consultas para vários estudos e elucidação de pontos fundamentais para a compreensão das influências dos orixás, vodus, inquices, malês, caboclos, candomblés, umbanda, catimbó, jurema, xangôs nos símbolos da travessia do homem vivente das Alagoas. TIA MARCELINA, A PRETA ANCESTRAL No episódio de 2012, nenhuma história é mais emblemática que o da africana Tia Marcelina, fundadora do candomblé em Alagoas e a mais famosa mãe de santo do estado à época, e a quem é atribuída uma frase que vive no imaginário de adeptos e simpatizantes da religião de matriz africana. A famosa yalorixá teve seu terreiro invadido por um grupo miliciano. Ela resistiu à invasão de seu terreiro e recebeu golpes de sabre enquanto, banhada de sangue, bradava: “Bate moleque, quebra braço, quebra perna, tira sangue, mas não tira saber”, gemendo para Xangô a cada chute. Tia Marcelina e outros adeptos exerciam livremente a prática do seu ofício na pacata e burguesa Maceió, pelos idos de 1910. O famoso xangô da tia Marcelina ficava situado num baixio à margem dos trilhos da Great Western, quase em frente à rua da Aroeira, habitada por mascates e bicheiros. O Quebra de 1912 se estendeu a várias cidades próximas de Maceió. Os objetos que não eram queimados na fogueira pública eram levados para a sede da Liga e colocados em exposição no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) onde se encontram até os dias atuais. A influência da cultura afrodescendente oriunda de negros escravos que vieram para o Brasil trouxe enormes bagagens culturais, como a arte, gastronomia e a religião, além de usos e costumes com linguajar próprio, ritmos e vozes. E Alagoas não foi diferente. E dessa forma, há uma singularidade que transformou a Terra de Zumbi dos Palmares como ponto inicial para a disseminação da cultura afro em uma de suas vertentes para outros estados do país.Mais lidas
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