
A Tribuna traz à baila a segunda reportagem sobre o Mocambo de Osenga, uma comunidade quilombola localizada no município de Chã Preta, na Zona da Mata alagoana, que carrega séculos de história, resistência e cultura afro-brasileira. Herdeiros diretos de africanos escravizados que buscaram refúgio na mata para construir um novo modo de vida, os moradores do mocambo preservam até hoje práticas tradicionais, como a agricultura familiar, a medicina natural e manifestações culturais que remontam aos tempos do Quilombo dos Palmares.
A presença de mocambos ganha força e legitimidade histórica através de uma série de documentos e relatos que atravessam séculos. Três fontes principais se destacam nesse processo: o diário de expedição do capitão holandês John Blair, a obra cartográfica do etnólogo baiano Edson Carneiro e os relatórios administrativos dos presidentes das províncias, especialmente os de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, presidente da província de Alagoas.

A primeira fonte a lançar luz sobre a existência de um antigo mocambo em Chã Preta é o diário de expedição do capitão John Blair, oficial holandês que percorreu o interior do Nordeste durante o período de domínio neerlandês no Brasil. Em suas anotações, Blair descreve com detalhes geográficos bastante precisos a paisagem da região de Chã Preta, fazendo menção a comunidades ocultas nos vales e matas fechadas — descrições que coincidem com a localização de antigos mocambos. Essas observações, ainda que não nomeiem diretamente todos os núcleos de resistência, indicam claramente a presença de agrupamentos de africanos fugitivos organizados, que se estabeleceram estrategicamente em áreas de difícil acesso.
Na reportagem anterior, a Tribuna mostrou no silêncio verde da Zona da Mata alagoana, entre a Serra do Cavaleiro e a Mata Limpa, um pedaço esquecido da história negra do Brasil e que começa a ganhar voz.

Capela de São Lázaro, construída por descendentes de quilombolas em 1904, como símbolo de fé e proteção (Foto: Adailson Calheiros)
Etnólogo baiano também ratifica mocambo
Décadas mais tarde, outro importante registro viria consolidar essas informações: a obra "Quilombo dos Palmares", do etnólogo baiano Edson Carneiro. Com uma abordagem rigorosa e uma profunda análise da geografia dos quilombos, Carneiro não apenas documenta o território do célebre Quilombo dos Palmares, mas também traça um amplo mapa dos mocambos que compunham sua rede de sustentação. Um dos pontos identificados por Carneiro em seus estudos é o mocambo de Osenga, localizado justamente na região que hoje compreende Chã Preta. Sua cartografia, desenhada em 1947, revela a complexidade da organização territorial dos quilombos e comprova que Palmares não era um núcleo isolado, mas parte de uma malha extensa de resistência negra.

Por fim, um terceiro documento relevante é encontrado nos relatórios administrativos dos presidentes das províncias brasileiras, com destaque para o presidente da província de Alagoas, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior. Cerca de 150 anos atrás, ao atravessar a região de Viçosa, próxima a Chã Preta, ele registrou a existência de um aldeamento de antigos quilombolas ou seus descendentes. Este relato, ainda que feito no contexto do Brasil pós-colonial, reforça a ideia de continuidade histórica e ocupacional dessas comunidades, cujas origens remontam aos tempos da resistência contra a escravidão.
Esses três documentos — o diário do capitão Blair, o trabalho cartográfico de Edson Carneiro e os relatórios administrativos provinciais — formam um conjunto robusto de evidências que sustentam a tese da existência do Mocambo de Osenga. “Eles não apenas comprovam a ocupação do território por populações negras em fuga, mas também revelam a importância desses espaços como núcleos de resistência, memória e identidade afro-brasileira”, diz o escritor, advogado e folclorista alagoano Olegário Venceslau de Oliveira, 39 anos, que traz à tona, com rigor histórico e paixão pelo território onde nasceu, um capítulo quase oculto da resistência africana: o Mocambo de Osenga, um quilombo ativo no século XVII, que funcionava como ponto estratégico de defesa e comunicação do famoso Quilombo dos Palmares.
Olegário põe luz nessa história no livro “Mocambo de Osenga: um reinado africano em Chã Preta no século XVII” que será lançado na segunda quinzena de dezembro em sua cidade natal, Chã Preta.

Serviço
Lançamento do livro: “Mocambo de Osenga: um reinado africano em Chã Preta no século XVII”
Autor: Olegário Venceslau de Oliveira
Data prevista: Segunda quinzena de dezembro
Local: Cidade de Chã Preta, Alagoas
Livro trará mais detalhes, revela escritor
Outros documentos que comprovam tal existência são relatórios do Conselho Ultramarino de Portugal, feitos em consonância com relatórios recepcionados pelos então governadores da Capitania de Pernambuco, cujos relatórios originais nós tivemos acesso, onde tais governadores da época enviaram informações ao Conselho Ultramarino de Portugal, uma vez que o Brasil naquele momento era colônia ainda de Portugal. “Mas esses documentos eu reservei apenas para o livro e serão publicados esses documentos na obra que será lançada em breve”, diz à Tribuna o escritor.
Na reportagem anterior, a Tribuna mostrou no silêncio verde da Zona da Mata alagoana, entre a Serra do Cavaleiro e a Mata Limpa, um pedaço esquecido da história negra do Brasil e que começa a ganhar voz.
“Esse local que nós estamos aqui agora, se você observar para o lado poente, vai ver a Serra do Cavaleiro. Dali, se avistava Palmares. Por isso Osenga era uma fortaleza”, explica Olegário durante uma visita com a reportagem da Tribuna ao sítio histórico do antigo mocambo.

Segundo o autor, Osenga abrigava 211 negros africanos que, além de se estabelecerem em comunidade, atuavam como sentinelas e informantes. A localização privilegiada – entre o litoral e a Serra da Barriga – tornava a região um verdadeiro ponto de controle: todos que buscavam alcançar Palmares passavam primeiro por ali.
Holandeses invasores no final do século 17 na Zona da Mata foram os responsáveis pela dizimação do Osenga. Alguns integrantes do mocambo conseguiram fugir. Tanto que depois alguns voltaram e hoje há seus descendentes na região, como Francisco.
Tudo foi por volta de 1655, após os portugueses destruírem o Palmares, ou seja, entre 8 e 10 anos após.
“Zumbi sabia da importância desse caminho. Ele transformou Osenga em um campo estratégico, para atrasar ou impedir a chegada de invasores”, explica Venceslau.
A importância da localidade já era mencionada por nomes como Nina Rodrigues, Alfredo Brandão e Edison Carneiro, mas jamais havia sido aprofundada com tanta precisão documental como agora.
DIÁRIO EM MUSEU DE PARIS
Um dos pontos altos do livro é a referência ao “Diário do Capitão Blaer”, escrito em 1645 pelo oficial holandês Johan Blaer, cuja expedição rumo a Palmares passou justamente por Osenga. No diário, atualmente arquivado no Museu do Louvre, em Paris, Blaer relata a queima de casas de taipa e os embates com os quilombolas da região.
“Os holandeses saquearam algumas casas aqui, e depois subiram rumo à Serra do Cavaleiro. De lá, conseguiram ver o platô da Serra da Barriga, onde estava o núcleo de Palmares”, detalha Olegário.

FÉ NO TOPO DA SERRA
Na reportagem anterior, a Tribuna revelou que o livro porá luz não apenas a geopolítica da resistência negra, mas também os aspectos culturais, étnicos, religiosos e sociais do povoado. O nome “Osenga”, segundo o autor, tem origem angolana e significa fortaleza, o que se encaixa com a geografia da região.
“Aqui era muito mais que um esconderijo. Era um reinado africano com organização própria, religiosidade, resistência e memória”, afirma.
No local, ainda hoje, permanece erguida a Capela de São Lázaro, construída por descendentes de quilombolas em 1904, como símbolo de fé e proteção. “Essa capela é o último marco físico do mocambo. São 121 anos de história viva”, reforça o escritor.
UM LIVRO PARA REESCREVER A HISTÓRIA
Com o lançamento de “Mocambo de Osenga”, Olegário oferece ao Brasil a chance de reconhecer e reverenciar uma parte esquecida da história negra, que pulsa ainda hoje nas serras e vales de Chã Preta. O livro promete ser não apenas um documento histórico, mas um ato de justiça narrativa, trazendo à luz vozes silenciadas por séculos.
“Contar a história de Osenga é devolve protagonismo aos que resistiram, viveram e sonharam aqui, mesmo sob a sombra da escravidão”, conclui o autor.