Saúde

Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta emagrecedora Mounjaro em dose fracionada e até por delivery

Anvisa afirma que venda só pode ser feita por farmácias. Fabricante alerta para riscos 'potencialmente fatais'

Por G1 02/05/2025 12h12
Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta emagrecedora Mounjaro em dose fracionada e até por delivery
Clínica de estética de São Luís mostra canetas emagrecedoras à venda - Foto: Divulgação
Clínica de Teresina vende dose de Mounjaro sem prescrição médica — Foto: Reprodução/Arte g1

O medicamento Mounjaro só estará disponível nas farmácias do Brasil a partir da segunda quinzena de maio, mas algumas clínicas de estética já lucram com a comercialização irregular da chamada caneta emagrecedora.

O g1 encontrou o remédio sendo vendido por dose fracionada, sem receita médica, em dois estabelecimentos, um no Maranhão e outro no Piauí. As clínicas anunciam o produto nas redes sociais ou pelo WhatsApp.

Elas ainda oferecem “bioimpedância grátis” e “consulta”, não com um médico, mas com a proprietária do estabelecimento, em Teresina, ou com uma biomédica, em São Luís, onde é feita também entrega delivery.

De acordo as regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), há um combo de irregularidades:

apenas farmácias e drogarias podem vender o medicamento;

o Mounjaro não pode ser vendido por dose, porque a embalagem registrada na Anvisa não é fracionável;

o medicamento só pode ser vendido com receita e apenas médicos podem prescrever.

Procurada, a dona da clínica de Teresina alegou que tem equipe multidisciplinar. A clínica de São Luís não respondeu.

Fabricante denuncia venda ilegal


Segundo uma carta aberta divulgada pela farmacêutica norte-americana Eli Lilly, fabricante do Mounjaro, nenhum estabelecimento está vendendo o remédio legalmente no Brasil, porque ele ainda não foi disponibilizado para o mercado brasileiro.

“Esses produtos podem ser falsos ou estão sendo ‘revendidos’ por indivíduos que os obtiveram por outros meios”, diz o comunicado.

Em resposta ao g1, a empresa disse que versões falsificadas ou manipuladas representam “riscos de segurança potencialmente fatais aos pacientes”.

Autorizado pela Anvisa em 2023 para tratamento do diabetes tipo 2, o Mounjaro é produzido a partir do ingrediente ativo tirzepatida. Ele ficou conhecido como "Ozempic de rico", por ser mais caro e prometer mais resultados e menos efeitos colaterais do que o concorrente.

A fabricante do medicamento ainda aguarda a liberação de uso do remédio para emagrecimento no Brasil, mas médicos já podem prescrevê-lo com este.

‘Fiz primeiro em mim para depois vender’


Legalmente, apenas pessoas físicas podem adquirir o Mounjaro por meio de importação ou comprando diretamente nos países onde o produto já é vendido, apresentando uma receita médica.

No caso das clínicas encontradas pelo g1, em Teresina (PI), e em São Luís (MA), a reportagem confirmou que o medicamento era vendido sem qualquer prescrição. Na primeira clínica, o g1 viu a caneta de Mounjaro. Na outra, recebeu uma foto por WhatsApp. Os números de lote foram enviados à fabricante, que não confirmou se o medicamento é original.

No início de março, a clínica de Teresina anunciou a oferta da caneta, dizendo que clientes poderiam agendar uma consulta para garantir uma dose de Mounjaro.

Procurada, a clínica disse que "desenvolveu um método próprio de emagrecimento patenteado denominado Peso Certo" e que o método é feito por uma equipe multidisciplinar "com acompanhamento médico, nutricional, fisioterapeuta, psicólogo e nutricionista".



Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta por delivery

Clínica de Teresina vende dose de Mounjaro sem prescrição médica — Foto: Reprodução/Arte g1. Clínica de Teresina vende dose de Mounjaro sem prescrição médica — Foto: Reprodução/Arte g1A informação é diferente da que foi repassada por Whatsapp pela atendente da clínica. Sem saber que falava com uma jornalista, ao ser questionada se era agendada consulta com médico, a funcionária disse que a dona da clínica, que é nutricionista, faz o acompanhamento e a bioimpedância -- avaliação física feita por um aparelho que estima a composição corporal, como o percentual de massa magra, gordura e água.

A clínica justificou que as conversas referiam-se ao "convite para uma consulta e a propaganda da tirzepatida, caso tenha indicação médica do Mounjaro, quando estiver disponível para liberação pelos órgãos de controle". Mas o anúncio da clínica fala em "estoque limitado".







Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta por delivery

Clínica estética de Teresina oferece dose de Mounjaro — Foto: Divulgação. Clínica estética de Teresina oferece dose de Mounjaro — Foto: DivulgaçãoO g1 não encontrou nenhum médico na clínica quando esteve lá. Sem saber que falava com uma repórter, a proprietária, Lanna Coelho, também não citou equipe multidisciplinar. Seu conhecimento sobre como funciona o Mounjaro foi adquirido por experiência própria.


“Eu perdi 21kg. Fiz primeiro em mim para depois vender. Eu precisava saber o que meu cliente sentia, quais eram os efeitos colaterais. Só comecei a trabalhar com o Mounjaro depois que emagreci”, contou Lanna.

Ela ainda explicou como funciona o tratamento. “O protocolo é de um mês. Eu fecho, geralmente, com tudo: a suplementação [de vitaminas e minerais] e as quatro aplicações”, disse.

Para quem quer perder pouco peso, ela orienta outro protocolo: tomar duas doses e depois fazer aplicação de enzimas na gordura localizada que restar.

Segundo a médica Simone Van de Sande Lee, diretora do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, esses protocolos não são indicados.

“Não é um produto de uso recreativo para quem quer perder alguns quilos. A titulação de dose deve ser feita conforme prescrição médica, com aumento gradual da dose de acordo com a bula ou mais lentamente, de forma individualizada, dependendo da tolerância do paciente”, explicou a endocrinologista.

‘Enviamos a dose na seringa’


Na clínica de São Luís, a entrega do Mounjaro é delivery. Por WhatsApp, sem saber que falava com uma jornalista, a atendente explicou que o medicamento é extraído da embalagem original com uma seringa, e entregue em um isopor com gelo.


Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta por delivery

Clínica em São Luís faz entrega delivery da dose de Mounjaro. — Foto: Reprodução/Arte g1. Clínica estética de Teresina oferece dose de Mounjaro — Foto: DivulgaçãoSegundo a endocrinologista Sande Lee, isso traz riscos de eventos adversos imprevisíveis. “Não há qualquer garantia de que o produto é original. Além disso, há risco de contaminação, pelo possível manuseio inadequado”.



O g1 foi até a clínica, mas a funcionária não mostrou o produto, alegando que ele estava em local refrigerado. Posteriormente, atendendo a um pedido pelo WhatsApp, ela enviou uma foto da caneta de 15 mg.

Procurada, a clínica não respondeu aos questionamentos.

Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta por delivery
Clínica de estética de São Luís mostra canetas emagrecedoras à venda — Foto: Divulgação. Clínica estética de Teresina oferece dose de Mounjaro — Foto: Divulgação




De acordo com fabricante do Mounjaro, a empresa é a única fornecedora legal da tirzepatida e “não a fornece para farmácias de manipulação, spas médicos, centros de bem-estar, varejistas on-line ou outros fabricantes”.

Dados de apreensões do Mounjaro nos aeroportos brasileiros mostram que o produto tem sido mais contrabandeado em 2025.

Segundo a Receita Federal, o valor das canetas apreendidas apenas no primeiro trimestre - R$ 1,2 milhão - já é 74% maior do que em todo o ano de 2024. Já a Polícia Federal apreendeu cerca de 1.313 unidades nos últimos 12 meses, sendo 1.079 apenas em 2025.

Sem aval, clínicas de estética oferecem caneta por delivery

Apreensões de Mounjaro feitas pela Receita Federal em 2024 e em 2025 — Foto: Arte g1. Clínica estética de Teresina oferece dose de Mounjaro — Foto: DivulgaçãoA Anvisa determinou que a partir de julho, quando o Mounjaro já estará nas farmácias, a receita desta e de outras marcas de canetas emagrecedoras terá que ficar retida.

A medida foi tomada após relatos de eventos adversos relacionados ao uso desses medicamentos para fins de emagrecimento. Até 19 de março de 2025, a Anvisa recebeu 51 notificações referentes apenas à tirzepatida.