Política

“Trabalho infantil causa mortes”

Opinião de Jair Bolsonaro sobre disponibilizar crianças para trabalhar ganhou repercussão negativa e gera preocupações

Por Carlos Amaral com Tribuna Independente 13/07/2019 08h43
“Trabalho infantil causa mortes”
Reprodução - Foto: Assessoria
Após uma declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL) em defesa do trabalho infantil, muitos aliados e apoiadores seguiram a lógica do ex-capitão e passaram a relativizar a prática. Para Marluce Pereira, coordenadora das Ações Estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Aepeti) em Alagoas, a fala do presidente demonstra descompromisso com a Constituição Federal. Ainda de acordo com ela, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) está sob ameaça. Tribuna Independente – Segundo dados do IBGE, há no Brasil cerca de um milhão de crianças trabalhando e em Alagoas esse número é de 31 mil. Esse é um problema corriqueiro no país, nos sinais, ônibus e feiras se vê crianças trabalhando quando deveriam estar na escola, mas o presidente Jair Bolsonaro – e aliados – defende o trabalho infantil. Qual a sua avaliação do atual momento para combater essa prática? Marluce Pereira – A gente se que há retrocesso. O combate ao trabalho infantil, nos últimos 20 anos, teve ações implementadas tanto pelos governos quanto pela sociedade civil e serviram para termos uma redução significativa dessa prática. Se formos olhar a série histórica de Alagoas em relação ao trabalho infantil, nos dados da Pnad de 2004 a 2017, tivemos 75% de redução. A gente sai de 105 mil crianças para essas 31 mil. Ainda é muito e preocupante, mas essa redução significativa se deve ao trabalho conjunto de órgãos governamentais – com suas políticas públicas – e da sociedade civil. Esse combate, ao longo dos anos, vem sendo feito e estimulado com campanhas para sensibilizar a sociedade para o problema e para cobrar do poder público o que está garantido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA], que é a doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes. Quando um presidente, o chefe maior do Estado brasileiro, defende o trabalho infantil, ele desconstrói um trabalho que vem sendo feito há anos e revela uma falta de compromisso com os direitos da criança e do adolescente; revela uma falta de respeito à Constituição Federal, a Carta Magna do país; revela também um descompromisso com os acordos do Brasil com organismos internacionais. O Brasil ratificou as convenções da Organização Internacional do Trabalho [OIT], a 138 e a 182. Também temos compromisso com a agenda de desenvolvimento sustentável que, entre suas metas, está a erradicação do trabalho infantil. Tribuna Independente – Entre os argumentos de quem defende o trabalho infantil está o fato de experiências em empresas de familiares, como pais e tios. Em boa medida, esse discurso vem de pessoas abastadas economicamente. Como a senhora avalia essa relativização do trabalho infantil? Marluce Pereira – A gente não tem como flexibilizar, nem relativizar o trabalho infantil. Toda criança que é exposta, explorada, pelo trabalho infantil tem sua infância roubada. E isso – estudos e estatísticas comprovam – causa sérios danos ao desenvolvimento físico, psicológico e intelectual a essas crianças porque elas precisam viver sua fase de infância com atividades lúdicas, escola, brincadeiras. Não tem como flexibilizar em nenhum aspecto. Mas a gente trata aqui também das piores formas de trabalho infantil. Quando as pessoas relativizam, elas não enxergam para as piores formas de trabalho infantil, que são aquelas que causam danos irreversíveis na vida de uma criança. A única forma permitida para que uma criança trabalhe é se as condições se enquadrarem no que preconiza o programa ‘Jovem Aprendiz’, idade entre 14 e 16 anos, no contra turno escolar e com cursos de qualificação. Tribuna Independente – Quais os danos? Marluce Pereira – Acidentes de trabalho. Mesmo aqueles que estão relativizando, dizendo que trabalhou ‘no caixa do supermercado do meu pai’, mesmo esses eu considero que parte de sua infância foi roubada. Mas também não dá para comparar com trabalhos insalubres e perigosos, nos quais as crianças sofrem riscos a sua saúde e psicológicos. Em muitos trabalhos elas são humilhadas. Só para se ter ideia, entre 2007 e 2017 foram, no Brasil, 40.849 crianças sofreram acidentes de trabalho. Desses, 24.654 de forma grave, com amputações, por exemplo. Esses dados são Ministério da Saúde. Fora isso, 236 crianças perderam a vida. Então, o trabalho infantil mata. E quando não mata, causa danos, muitas vezes, irreversíveis. Tribuna Independente – E aqui em Alagoas, qual a situação e quais as dificuldades de fazer o Peti ser executado? Marluce Pereira – Em Alagoas, nós tivemos, em 2018, 68 casos notificados de acidentes de trabalho, mas pode ser maior porque somente 52% dos municípios notificam. Ou seja, temos subnotificação. Na série história, entre 2010 e 2018, foram 1.013 casos de acidentes do trabalho com crianças. O Peti passou por um redesenho. Ele foi criado em 1999 e implantado em todo o estado, mas em 2014 ele foi remodelado para assumir os acordos assumidos pelo Brasil para erradicar o trabalho infantil e os municípios passaram a receber recursos federais para executar ações estratégicas. Mas não são todos que recebem esses recursos. O critério utilizado pelo Ministério da Cidadania – que vem do Censo do IBGE de 2010 – é o maior índice de trabalho infantil. No caso de Alagoas, 31 municípios. Desde 2014 eles recebem um recurso para desenvolver ações e estruturar equipes para o combate ao trabalho infantil. Mas a gente percebeu que – segundo a Pnad – entre 2014 e 2015 nós tivemos uma redução significativa de trabalho infantil, só que o Governo Federal ainda não pactuou o recurso para 2019. Então, os municípios desenvolvem suas ações com saldo de recursos de anos anteriores, mas isso está acabando. Alguns já estão no zero, inclusive, alguns que já indicados como experiência exitosa no combate ao trabalho infantil em feiras ao Ministério da Cidadania. O trabalho infantil nas feiras é a principal situação detectada no interior de Alagoas. São José da Tapera é um desses municípios que foi indicado como experiência exitosa, pois mobiliza toda a rede de proteção e encaminha as crianças às redes de serviço socioassistenciais. Mas por causa da falta de recursos, tudo pode parar. Vivemos um desmonte das políticas públicas aliado à Emenda 95 – que limita o investimento público. O Peti necessita, fundamentalmente, da intersetorialidade porque articula todas as políticas públicas e mobiliza a sociedade para cumprir o que está na Constituição Federal, que é garantir a proteção integral de crianças e adolescentes.