Política

Família Bolsonaro prospera, de forma atípica, em região pobre de São Paulo

Mãe, irmãos, sobrinhos e cunhados do presidente são donos de 19 empresas na região, 14 delas abertas nos últimos oito anos

Por Thais Reis Oliveira com Carta Capital 24/06/2019 11h25
Família Bolsonaro prospera, de forma atípica, em região pobre de São Paulo
Reprodução - Foto: Assessoria
Em uma rua pacata no caminho da zona rural de Eldorado Paulista, um canteiro de obras desperta a atenção de quem passa. No topo da estrutura alta e imponente, debaixo de uma bandeira nacional e sobre oito janelas, lê-se um nome: “Igreja O Brasil Para Cristo”. Naquela região pobre do Vale do Ribeira, onde quatro em cada dez cidadãos vivem com meio salário mínimo por mês, tudo o que reluz remete ao mais ilustre cidadão: Jair Bolsonaro, o ex-militar-deputado convertido em presidente da República. A cidade de 16 mil habitantes começou a ser povoada em meados de 1630 por portugueses cobiçosos do ouro que enchia as margens do Rio Ribeira. Foi primeiro batizada de Xiririca, referência guarani ao som da água corrente, e só virou Eldorado em 1948. Os Bolsonaro chegaram à cidade três séculos mais tarde, em 1966, depois de circular por várias cidadezinhas do sertão paulista. Eram liderados pelo patriarca Percy. O dentista prático e a mulher, dona Olinda, tiveram seis filhos: Angelo, Jair, Maria Denise, Solange, Renato e Vânia. “Foi ele que colocou o meu dente, era conhecido na cidade”, recorda um morador, antes de apontar para um dente de ouro, entre os poucos que lhe restam na boca. O presidente fez a vida em Brasília, mas a família continuou por ali: a mãe e quatro irmãos ainda moram em Eldorado e outras cidades do entorno. São eles, além da matriarca dona Olinda, Renato, Angelo, Vânia, Denise e os sobrinhos Vitória Leite, Angelo Guido, Orestes e Osvaldo Campos. Somam-se ainda os cunhados José Orestes Fonseca Campos e Theodoro Konesuk, apontados como os mentores financeiros do clã. O sobrenome Campos batiza a maioria dos empreendimentos. FESTA NA PRAÇA CENTRAL No dia em que as urnas comprovaram a vitória de Bolsonaro, a praça central da cidade foi tomada por uma festa regada a caixas e mais caixas de cerveja. Desde então, os parentes mantêm certa discrição. Pouco falam sobre o presidente e evitam qualquer contato com a mídia. Exuberante tem sido, no entanto, a prosperidade financeira da família. Mãe, irmãos, sobrinhos e cunhados do presidente são donos de 19 empresas na região, 14 delas abertas nos últimos oito anos. O levantamento foi feito por CartaCapital a partir de dados da Junta Comercial de São Paulo. A carteira de negócios vai de sapatos e vestuário a material de construção, passando por conserto de eletrônicos. Há empreendimentos registrados em sete cidades. O irmão Angelo, vive em Eldorado e é dono, ao menos no papel, de uma loja de móveis e outras duas de assistência técnica. Angelo Guido, seu filho, toca a casa lotérica e uma loja de consertos de eletrônicos. É considerado antipático pelos moradores de Eldorado. O caçula Renato mora na cidade de Miracatu, a cem quilômetros de Eldorado, onde tem uma loja de móveis com filiais em outros dois municípios vizinhos. Em nome de sua filha Vitória está registrada uma loja de materiais de construção também em Miracatu, com filiais em Juquiá, Iguape e Apiaí. Renato é considerado simpático e gregário. É o único, além de Jair, que demonstra algum pendor para a política. Tentou ser prefeito da cidade, sem sucesso. Em 2016, uma reportagem do SBT descobriu que, durante três anos, ele recebia 17 mil reais mensais como assessor de um deputado, mas não aparecia para cumprir o seu dever. Em vez de bater ponto na função legislativa, preferia cuidar de suas lojas de móveis. Naquela mesma praça central que abrigou o rega-bofe da vitória, os Bolsonaro dominam o comércio. Há uma casa lotérica, administrada pelo sobrinho do ex-capitão, Angelo, de 37 anos. Logo ao lado, segue a construção de um pequeno shopping que, segundo moradores, também pertence aos Bolsonaro. A família possui ainda uma loja de calçados e outras duas de móveis. O total de imóveis registrados em nome do clã passa de 70. Uma das aquisições mais recentes, segundo moradores, é um terreno próximo à sede de uma empresa de fertilizantes americana, a Mosaic, que explora fosfato de cálcio em uma área próxima à cidade de Cajati. CONTRASTES O contraste chama atenção. Nos fundos da praça, uma população majoritariamente negra avoluma-se entre os ônibus que fazem o transporte intermunicipal entre as cidades vizinhas e as comunidades rurais e quilombos. Esses últimos, aliás, têm um motivo especial para temer os novos donos do poder. O racismo forjou a identidade eldoradense. Na década de 1960, a sede do Clube Caraitá, onde militares que permaneceram no município costumavam organizar bailes para arrecadar fundos para um time de futebol, só aceitava brancos. Não muito longe do centro da cidade, a vitória eleitoral do ex-capitão coloca em risco os grupos quilombolas da região. O presidente referiu-se a eles nominalmente em um dos mais escabrosos episódios de preconceito que estrelou antes de ser eleito. Durante uma palestra no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, em abril de 2017, o então deputado federal disse que quilombolas não faziam nada e que o mais leve pesava sete arrobas. Denunciado pelo Ministério Público por racismo, Bolsonaro chegou a ser condenado a pagar uma indenização de 50 mil reais. Acabaria inocentado em junho deste ano. Outra história ainda pulsa nas entranhas de Eldorado. Theodoro Konesuk, o cunhado apresentado como um dos mentores da família parágrafos atrás, está no centro de um imbróglio fundiário com uma das mais tradicionais comunidades descendentes de escravos na região, o quilombo do Bairro Galvão, em Iporanga, cidade vizinha a Eldorado. Konesuk é casado com Vânia, irmã de Bolsonaro. No fim do ano passado, foi condenado a devolver à comunidade uma área invadida, terra devoluta anexada ilegalmente à sua fazenda. No papel, a reintegração de posse é considerada cumprida. “Entre o pago e o roubado, tem cerca de 150 alqueires”, calcula a líder Jovita Furquim de França, uma das fundadoras do Quilombo do Galvão. A extensão equivale a 1,5 quilômetro quadrado. A terra, conta Jovita, passou por muitas mãos até chegar a Konesuk. O processo começou, na verdade, com o pai dele, Theodoro Júnior, ex-prefeito de Iporanga pela Arena. Segundo os quilombolas, o político passou a criar gado nas proximidades e ocupou um espaço que não lhe pertencia. Sem uma estrutura organizada, a comunidade não pôde fazer nada. “Os Konesuk beneficiaram a terra e nos deram emprego”, lembra Jovita. A situação começou a mudar a partir de 2003, quando uma lei promulgada pelo governo Lula reconheceu, demarcou e titulou as terras ocupadas por descendentes de escravos. Com base na nova legislação, o governo paulista e a Fundação do Instituto de Terras do Estado de São Paulo exigiram, em 2013, que o cunhado de Bolsonaro devolvesse as terras aos legítimos proprietários. No papel, a reintegração de posse foi considerada cumprida – após uma negativa inicial, Konesuk foi notificado sobre a devolução e os quilombolas receberam o documento de posse em 2014. Nesses cinco anos, jamais ocuparam o terreno. Uma família do quilombo começou a cultivar uma roça de banana, mas foi expulsa. Empregados de Konesuk, ao saber do avanço do roçado, destruíram as cercas que protegiam a plantação. As bananas acabaram comidas ou pisoteadas pelo gado. “Isso fez com que as pessoas ficassem com medo de voltar lá e acontecer o pior”, explica Jacira Santos, presidente da Associação do Quilombo Galvão. O gado do cunhado do presidente, diz ela, continua a circular livremente pela área. Quando exige a posse de uma terra devoluta, o governo não paga pelo valor do terreno, por se tratar de área pública anexada ilegalmente. Mas é comum que o ocupante receba uma indenização por conta das benfeitorias. No caso específico, os quilombolas acham que o problema está no valor oferecido pelo Itesp a Konesuk – esse é um expediente comum nas contestações fundiárias a envolver o Estado. O cunhado de Bolsonaro, dizem, teria ficado com um imóvel com piscina no terreno e considerou baixo o pagamento oferecido pelo governo paulista. “O ódio, o fato de ele não desistir está nessa casa”, acredita Jovita. Nos últimos cinco anos, Konesuk em nenhum momento se manifestou nos autos do processo. Também não atendeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Naquela palestra em 2017, sob aplausos da plateia, Bolsonaro encerrou sua participação com a promessa de “não dar nenhum centímetro a mais de terra” aos povos tradicionais, indígenas ou quilombolas. As declarações do presidente nascem de uma tese popular em alguns segmentos da sociedade, de que esses grupos marginalizados têm direitos demais garantidos pelo Estado. Não é verdade. Segundo a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas, existem no Brasil perto de 6 mil quilombos, mas apenas cerca de 200 estão titulados. No Vale do Ribeira, estima-se que vivam hoje mais de 88 comunidades tradicionais, em diferentes níveis de reconhecimento pelo poder público. A presença negra na região começou no século XIX, quando escravos fugidos estabeleceram pequenas comunidades rurais na região. Esses descendentes produziam arroz, café, cachaça e carvão. Os conflitos fundiários se intensificaram a partir dos anos 1980. Naquela época, em meio à confusão jurídica sobre o direito às terras, as ameaças dos grileiros tornaram-se mais ostensivas. Muitos quilombolas foram expulsos. Outros, ameaçados, assinaram contratos fajutos e venderam suas terras por valores irrisórios. Garantidos pela tênue proteção legal conquistada, os quilombolas hoje manejam cipós, plantas medicinais, sementes e promovem o trabalho coletivo em forma de mutirão. Esses costumes têm, aos poucos, ganhado status de patrimônio histórico. No ano passado, uma técnica tradicional de plantio, a roça de coivara, foi reconhecida pelo Iphan. O Instituto Socioambiental, que documentou o sistema agrícola para o reconhecimento, listou 240 variedades de culturas em 19 quilombos do Vale do Ribeira – há, por exemplo, 23 tipos de arroz e nove de laranja. O Vale também guarda um importante corredor biológico, formado pela maior área remanescente de Mata Atlântica. A família Bolsonaro tem boa relação com os bananicultores da região. Não raras vezes, o presidente prometeu mexer na legislação ambiental para liberar o plantio em áreas de várzea, próximas a rios, sem medir as consequências pela contaminação por agrotóxicos (o atual governo, aliás, tornou-se campeão na liberação de pesticidas. Foram quase 200 em menos de seis meses de mandato). Outro alvo recorrente de Bolsonaro é o turismo. Em várias oportunidades, ele criticou e prometeu mudar a legislação ambiental que protege a biodiversidade de áreas turísticas no Vale do Ribeira, entre elas as cidades de Cananeia e Ilha Comprida. O presidente também defende a construção de hidrelétricas na região. As terras quilombolas do Vale são cercadas por fazendas. As comunidades vivem do turismo rural e da agricultura familiar. Sem direito garantido à terra, podem perder o sustento. Restará trabalhar como empregados nesses empreendimentos. Apesar dos temores, Jovita e Jacira mantêm a cabeça erguida. “Sabemos que, sempre que troca o presidente, troca a reforma. Pode ser que eles queiram reivindicar tudo o que era deles, porque compraram, declarar guerra. Estamos com os pés no chão, mas não muito firmes. Eu rezo todo dia. Mas medo de fazendeiro eu não tenho”, diz Jovita. O DESPERTAR Bolsonaro viveu na região até os 18 anos. A passagem de Carlos Lamarca pela pacata cidade marcaria para sempre o moleque magro e sapeca, segundo colegas de infância. Ali, o guerrilheiro montara um campo de treinamento de militantes. A ditadura descobriu o esconderijo em maio de 1970. Houve troca de tiros, morte e burburinho, mas Lamarca conseguiu escapar. Depois daquele episódio, Bolsonaro ficaria obcecado por se juntar às fileiras do Exército – gaba-se até hoje de ter servido de guia para os policiais que caçavam o guerrilheiro. Três anos depois, deixaria Eldorado para ingressar na escola de cadetes em Resende, no Rio de Janeiro. No segundo turno das eleições do ano passado, a cidade deu a Bolsonaro 54,5% dos votos válidos, cerca de 700 a mais do que no primeiro turno. Não há quem não o conheça. Nos primeiros minutos das conversas, o clima é amistoso e reflete um certo orgulho do filho da terra. Basta, porém, um pouco mais de tempo de papo para descobrir que a cruzada do governo contra o Bolsa Família e outros benefícios assistenciais afeta a popularidade do presidente. “O pessoal está meio decepcionado com ele, com medo de perder o Bolsa Família”, diz o aposentado José Hermes, amigo de infância do presidente. “Aqui não tem emprego, é só banana e gado.” Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro foi visto na cidade em visita a amigos e parentes. Desde que se tornou presidente, voltou uma única vez, em uma rápida passagem durante o feriado de Corpus Christi. Centenas de pessoas o esperavam no aeroporto de Eldorado, enfeitado e faixas de boas vindas patrocinadas pelos produtores e comerciantes da cidade. Depois, circulou pela região central da cidade rodeado por uma claque. É natural que um município que ostenta indicadores tão ruins, como a segunda maior taxa de mortalidade infantil do Estado, exija de seu rebento mais ilustre um cuidado especial. Mas não há motivos para esperança. Como o ex-capitão disse recentemente em um vídeo publicado nas redes sociais, quem gosta de pobre é o PT. Sua família também parece gostar. A prosperidade em meio à pobreza e em parte ancorada na invasão de terras comprova.