Política

‘Justiça boa é a que respeita as regras’

Advogado criminal e professor, Leonardo Moraes cita que para prender alguém, a pessoa precisa causar riscos

Por Carlos Amaral com Tribuna Independente 28/04/2018 08h06
‘Justiça boa é a que respeita as regras’
Reprodução - Foto: Assessoria

É cada vez mais crescente no Brasil o apelo por prisões e, nesse afã punitivo, direitos passam a ser tratados como proteção a criminosos. Ou seja, tem valido a máxima de que ‘Justiça boa é a que prende’, ignorando o fato de o país ter a terceira maior população carcerária do planeta. Para tratar desse tema, a Tribuna Independente entrevistou o advogado criminalista – e professor de Direito e Processo Penal, presidente da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Alagoas (Acrimal) e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) em Alagoas – Leonardo de Moraes, que classifica como engodo a afirmação de que o Brasil é o país da impunidade.

Tribuna Independente – Tem ficado cada vez mais forte no Brasil a cobrança por mais prisões, sob o manto de combate à impunidade. Justiça boa é a Justiça que prende?

Leonardo de Moraes – Uma Justiça boa é a que respeita as regras do processo, as regras do jogo. Vivemos numa democracia e quando se fala em democracia, se fala num Estado que vive para determinar regras para as pessoas cumprirem e para que traga para si uma autocontenção. Quando se fala em prisão, se fala também em humanização, em humanidade. Logo, a prisão das pessoas só pode acontecer quando todas as regras do processo penal forem satisfeitas. Hoje vivemos um momento complicado. Você falar em obedecer às regras, em haver processo penal ou só haver prisão quando for realmente necessário é algo difícil, em pleno século 21. Hoje se fala muito em justiçamento. Pessoas pegas em flagrante após um furto são amarradas em postes e agredidas pelas pessoas. Quando a polícia chega, essa pessoa está quase morta. Essa fase de hoje, do ponto de vista do comportamento das pessoas e do cumprimento das regras do processo penal, levam à advocacia – e à sociedade – certo debate: até quando necessário observar as leis? Será que você submeter alguém a um processo penal é tão demorado que as pessoas não aceitam essa morosidade e querem fazer justiça com as próprias mãos? Hoje, te digo uma coisa, o pressuposto para que alguém seja preso é o da necessidade. Se prende alguém quando essa pessoa cause algum risco. Primeiro: essa pessoa representa risco de fuga? Comprou passagem aérea ou de ônibus para ir a outro estado? Se isso acontece, justifica uma prisão preventiva. Segundo: ameaçou alguma testemunha? Se ameaçar alguma testemunha, ela causa risco ao processo penal.

Tribuna Independente – Mas as pessoas, de forma geral, repetem a afirmação de que há muita impunidade. O Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo, mas a prisão é resposta às injustiças?

Leonardo de Moraes – A prisão é a última razão. Significa que quando alguém está preso não há nenhuma medida menos gravosa que possa ser aplicada. Por exemplo, tem projetos de lei que querem criminalizar quem estaciona em vagas para idosos. Repare, isso quer dizer que se alguém para numa vaga para idosos, ela merece ser presa. Isso não é problema que afeta o Direito Penal. Para numa vaga para idoso não precisa de delegacia de polícia. Logo, uma multa pode resolver o problema com eficiência, mas querem criminalizar. Hoje, atravessamos um momento onde se afirma que para resolver o problema da criminalidade é preciso prender as pessoas. Nesse conjunto todo, muita gente inocente tem sido presa. Há inúmeros casos de pessoas que não representam nenhum tipo de risco, mas estão presas. Ou seja, mesmo entre aqueles que cometeram algum crime, há quem não mereça estar preso. Hoje em dia se coloca na vala comum: todo mundo que vier a cometer um crime, em regra, vai ser preso. Essa discussão de que o Brasil é o país da impunidade é um engodo. Os Estados Unidos, tido como modelo de segurança pública, tem população carcerária superior a 2,5 milhões de pessoas. A China, que é quase uma ditadura, tem cerca de dois milhões de pessoas presas. E o Brasil, já ultrapassou a Rússia. Somos um país que encarcera muito.

Tribuna Independente – Em 2011, a Lei 12.403 alterou alguns pontos do Código Penal cujo intuito era o de abrandar o instituto da prisão, mas isso não ocorreu. Por quê?

Leonardo de Moraes – É uma questão cultural. A Lei estabeleceu que quando alguém responde a um processo penal, ela pode ser submetida a algumas medidas cautelares, estabelecidas de forma crescente: da menos para a mais grave. Há a fiança; monitoramento eletrônico; comparecimento periódico em juízo; você pode ter de informar ao juiz mudança de endereço; ser obrigado a se recolher à noite; e, se todas elas não derem conta de forma suficiente, como última razão, se pode aplicar a prisão preventiva. Infelizmente, aqui no Brasil, a mentalidade é outra. A prisão preventiva, em vez de ser a última, tende a ser a primeira medida aplicada. E por isso, várias pessoas que não merecem estar presas, estão. Sobre esse argumento, vou ampliar um pouco. Há uma questão de dignidade da pessoa humana e econômica. Imagine que no Brasil são entre 750 mil e 800 mil presos. Multiplique isso por três e teremos dois milhões e 400 mil refeições por dia; agentes penitenciários trabalhando; revistas; energia elétrica; presídio privado onde o preso custa cerca de R$ 4 mil. Quanto se gasta com isso? Quando alguém preso, o que a lei quer? Que essa pessoa fique neutralizada. Mas se você a transfere para a prisão domiciliar, ela segue neutralizada porque essa pessoa estará sob monitoramento eletrônico com raio zero, sem poder sair de casa para nada. Economicamente, a prisão domiciliar seria viável? Sim, porque o Estado não vai gastar um centavo com isso. E do ponto de vista da dignidade, é muito mais eficaz do que a penitenciária. Veja o caso recente dessa jornalista [Maria Aparecida de Oliveira Garrastazzu], ela teria cometido um crime contra a honra: calúnia e injúria. Se somar as penas dos dois crimes, dá três anos. A lei é clara, não se admite prisão preventiva para alguém cuja pena não chega a quatro anos. É realmente necessário, para neutralizar alguém que dá declarações ofensivas, prender uma mulher de 68 anos de idade numa penitenciária? É proporcional? A questão do punitivismo é uma onda no mundo. Temos candidatos a presidente da República que pregam prender mais pessoas.

Tribuna Independente – Isso, no Brasil tem relação com a nossa História, não? Fomos o último país das Américas a acabar com a escravidão; só três presidentes da República concluíram seus mandatos e tivemos um período ditatorial recente...

Leonardo de Moraes – A onda de punição é muito grande, mas há uma equação. Quando se fala em Estado Democrático de Direito, essa palavra ‘democrático’ rima com liberdade. Numa democracia, a liberdade é a regra: de expressão, religião ou de trabalho. E quando você traz essa onda de punitivismo, se tem um conflito entre liberdade e segurança. Quanto mais segurança, menos liberdade. Os antigos já diziam: ‘quando se dá prevalência à segurança diante da liberdade, acaba perdendo os dois’. Nem há liberdade porque a segurança é muito boa e quando a segurança é muito grande, significa que quem tem a responsabilidade de promovê-la vai agir com abuso. E aí, como ficamos? Nos países mais desenvolvidos, quando se empodera um órgão para combater o crime, se toma o cuidado para outro órgão exterior fiscalizar aquele poder. Aqui se empodera os órgãos com perseguem o crime, como a polícia e o Ministério Público, mas esquecemos dos órgãos de fiscalização. Quem fiscaliza o excesso de poder? Muitas pessoas nas ruas cometem crime, mas, sem passar a mão na cabeça de ninguém, é muito mais grave é quem usa a proteção do Estado, ao qual ele age em nome da lei, cometem abusos. Para mim, esse é o pior delinquente possível.

Tribuna Independente – Até que ponto a mídia tem influência nessa cultura punitivista que o senhor citou?

Leonardo de Moraes – Hoje se estuda muito a chamada ‘Publicidade Opressiva’. Ou seja, publicidade como forma de oprimir as pessoas. E claro, a imprensa é ávida por notícias, mas às vezes a informação passada, pega pelos órgãos de persecução penal como a polícia ou o Ministério Público, está completa. Essa publicidade causa um mal aos atores do processo, cujo principal é o acusado. Às vezes alguém é acusado de praticar crime e tem seu rosto estampado em todos os jornais. Ele é preso e sofre medidas que sequestram seu patrimônio. Então ele fica sem liberdade, sem fonte de renda, sem patrimônio e sua imagem eternizada porque nem sempre se consegue restabelecê-la. Essa publicidade também traz estrago para o magistrado porque ele julga, muitas vezes, conforme a imprensa para não se rotulado de defensor da impunidade. Antigamente, o magistrado corajoso era aquele que prendia. Hoje, em alguns casos, é o que solta. Em relação à polícia ou Ministério Público, esses órgãos deveriam falar nos autos. As entrevistas dadas, muitas vezes, mortificam o princípio da presunção de inocência. Há pouco tempo atrás, um ex-presidente da República [Lula, PT] teve seu nome colocado num Power Point, no centro com várias ligações para apontá-lo como chefe de organização criminosa. Se a discussão disso é no processo, é válido e democrático. Os órgãos investigam, ingressam com ação penal e se ficar comprovado, se aplica a pena. Mas a forma como se faz esse tipo de explanação, está se dizendo que a pessoa já está condenada. A presunção de inocência não é somente para o processo, mas para todos nós. Devemos tratar a todos como inocentes. Se eu digo que alguém é desonesto, que tem de provar sou eu. Mas hoje se inverte essa lógica. Essa questão da publicidade deve ser vista com responsabilidade. Não falo em censura, mas é importante que sempre se leve em consideração que amanhã o rosto exposto pode ser o nosso. Seria interessante um noticiário mais equilibrado e que dialogasse com a sociedade, de um modo geral.