Política

“Cor é apenas uma marca simbólica”

Sociólogo Carlos Martins trata sobre a herança cultural negra e os motivos da baixa representatividade política

Por Carlos Amaral / Tribuna Independente 18/11/2017 10h13
“Cor é apenas uma marca simbólica”
Reprodução - Foto: Assessoria
Na próxima segunda-feira (20) é celebrado o Dia da Consciência Negra, data em que a discussão sobre a igualdade racial no Brasil ganha a mídia quase por completo. Contudo, o país ainda está longe ter uma sociedade equilibrada nesse sentido, principalmente em relação aos espaços de poder. Contraditoriamente, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pretos e pardos são maioria entre os eleitos em 2016. Mesmo assim, para o sociólogo Carlos Martins, isso não significa presença negra nesses espaços. Em entrevista à Tribuna Independente, ele falou sobre a importância da herança cultural negra para que essa população seja de fato representada. “Cor é apenas uma marca simbólica”.   Tribuna Independente – Segundo dados do TSE, nas eleições municipais de 2016, em Alagoas, 65,16% dos candidatos se declararam pardos e 5,26% pretos; dos eleitos, 59,38% pardos e 3,44% pretos. Quem vê esses percentuais diz haver representação dos negros nos espaços políticos, condizente com a proporção populacional. É isso mesmo, quem se declara pardo se sente negro? Carlos Martins – Você levanta uma questão dessa discussão, que é sociológica. As pessoas que se declaram pardas, elas se percebem negras? Institucionalmente, o IBGE define a população negra no Brasil os pretos e pardos. Mas se se perguntar às pessoas ‘você se percebe negra?’, eu não sei o que elas vão dizer porque não há dados sobre isso. E isso vai na mesma sintonia do que propõe o IBGE: a constituição étnica no Brasil não se dá a partir de o Estado dizendo quem você é, mas você mesmo dizendo quem é. Então, se o IBGE perguntar qual a sua cor, isso será de forma estimulada porque se dá as opções branca, parda, indígena, amarela ou preta. Mas negro, é mais que a cor da pele. O preto, sim. O negro traz junto com esse conceito toda uma herança cultural. Se você me pergunta ‘os negros estão nessas instâncias?’, respondo que não. Porque se você ver nesses espaços de poder, como os parlamentos municipais, terá um crucifixo lá. E essa não é uma simbologia da herança negra. Tribuna Independente – Quando você fala negro é para além da cor da pele? Carlos Martins – O tom da pele é o preto. O IBGE quer saber como você se define enquanto cor, entendendo que o racismo no Brasil passa apenas pela cor. Mas não é. Cor é apenas uma marca simbólica que define você dentro de um grupo social. Só quando se ganha aspectos étnicos como valores, ética, interpretação sobre vida e morte, essa população é negra. Dentro desse contingente negro, e isso é um conceito de elaboração étnica, você tem religião de matriz africana, com todas as suas ramificações, capoeira, samba... Uma identidade de um povo que define como negro. Preto é a cor da pele. Você pode ser preto, mas ser evangélico, por exemplo. Tribuna Independente – E por que é tão difícil ter os negros, nesse sentido que você coloca, nos espaços políticos no Brasil? Carlos Martins – Porque esses símbolos foram sendo, historicamente no país, eliminados. Você tem historicamente como proposta de construção da identidade nacional, a exclusão dos elementos indígenas e africanos. Foi a hegemonia da linhagem cultural europeia. Então, todos esses outros elementos foram marginalizados. Resistiram com o tempo, mas foram projetados para serem destruídos. Então, por isso você tem uma população que entende ser legítimo ter num espaço público, do Direito, e ter um crucifixo lá. Ninguém se importa. Agora coloque um patuá [amuleto do Candomblé], uma estátua de Xangô, que é o orixá da justiça. As pessoas não vão aceitar porque essa simbologia foi construída historicamente para ser negada. Tribuna Independente – Isso não se reflete apenas nos espaços políticos, mas também nos demais setores da sociedade, ou não? Carlos Martins – Com certeza. Os espaços institucionais são reflexos dos espaços sociais. O Estado é uma reprodução de seu modelo de sociedade. Veja, o policial vai dizer ‘eu não sou racista, a população que é. O policial é apenas mais um membro dessa população’. O Estado perde uma grande discussão que é a institucionalização do racismo. Quando você percebe que, por mais que se tenha essa representação numérica – que é importante –, não vê os outros elementos simbólicos que refletem essa sociedade dinâmica do ponto de vista cultural, se questiona onde estão elementos simbólicos? O nosso próprio modelo decisório é de linhagem europeia, da Grécia. Os modelos de decisão africanos e indígenas não aparecem nesses espaços. Então, simbolicamente eles não existem. Os negros estão nas universidades, nos espaços de poder? Não. Agora, do ponto de vista da cor, como se faz essa estratificação? Se afirmando como sendo de tal cor. Tribuna Independente – E há alguma particularidade em relação a Alagoas, já que tivemos aqui o Quilombo dos Palmares e, segundo o Censo de 2010, quase 70% da população é negra? O Estado acompanha o resto do país nisso ou ficamos um passo atrás e dá para dizer em quanto tempo as relações estarão mais equilibradas? Carlos Martins – Tem uma pesquisa do sociólogo Alberto Carlos Almeida, ‘A Cabeça do Brasileiro’, em que aponta que quanto mais analfabeta a população, mais ela está voltada para uma política de violência. ‘Bandido bom é bandido morto’, a intervenção de Deus na vida cotidiana... Ele vai de uma percepção de um cristianismo cotidiano exacerbado para o ‘a solução é matar’. Quanto maior o grau de analfabetismo, de pobreza e desigualdade social, mais conservadores esses segmentos pobres são. Do ponto de vista do cotidiano, qual a estética do cabelo das meninas? Alisado. Há uma ‘ditadura’ do alisamento. Mas há um movimento contra isso, o Encrespa. As meninas afirmando seu cabelo black. Então, esses elementos vão tendo repercussão e se vai vendo até meninas brancas encrespando o cabelo. Eu não acho que elas devam encrespar, elas têm de ser quem são, mas têm de respeitar quem é crespo. Você ter um prefeito negro, como o Júlio Cezar [Palmeira dos Índios], por exemplo. Independente de suas ideias, é um cara negro lidando direto com a população, como é no interior. Isso molda, não tem para onde. As pessoas não percebem, mas estão naquela relação estabelecendo novos códigos. Um âncora negro no jornalismo. A Teoria do Agendamento mostra como os meios de comunicação agendam como temos de pensar, o que temos que vestir. Por isso a disputa pelos meios de comunicação é importantíssima, porque é lá que se vai agendar o biótipo padrão, a roupa padrão. Esse tipo de coisa se reflete em presença no parlamento, no Executivo. Mas temporalizar quando isso muda é muito difícil, não dá.