Política

Pequena ala progressista do PSDB alia-se a Alckmin

Grupo quer para influenciar os rumos do partido

Por Victória Damasceno com Carta Capital 06/11/2017 09h43
Pequena ala progressista do PSDB alia-se a Alckmin
Reprodução - Foto: Assessoria

O movimento propõe a descriminalização do aborto, a regulamentação do uso da maconha, a adoção de cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas, a gratuidade do transporte coletivo e o respeito aos direitos humanos. Manifestou-se ainda contra o impeachment de Dilma Rousseff, além de opor-se às propostas de redução da maioridade penal. Diante desse breve histórico, o leitor certamente não vai adivinhar o candidato que o grupo apoia: Geraldo Alckmin. As proposições são defendidas pela “Esquerda pra Valer”, uma corrente do PSDBque se considera “progressista” e disposta a resgatar os ideais social-democratas presentes no manifesto de fundação do partido, aprovado em 25 de junho em 1988.

Alckmin não é exatamente o candidato dos sonhos do grupo. Defensor do endurecimento de penas para menores infratores, o tucano é ligado a ultraconservadores grupos católicos e chegou a batizar uma rua de Pindamonhangaba com o nome de Josemaría Escrivá, criador do Opus Dei, em 1978, quando era prefeito do município do interior paulista. Para a Esquerda pra Valer é, porém, bem mais palatável do que João Doria, a tentar ocupar o lugar do antigo padrinho político como candidato do PSDB à Presidência em 2018. O prefeito paulistano é a perfeita antítese do que o grupo defende: privatista e liberal na economia, reacionário nos costumes, a ponto de apoiar a infantil cruzada moralista do MBL, sua milícia virtual.

Apesar de desconhecida, a Esquerda pra Valer tem 13 anos de existência e pouco mais de 5,5 mil militantes, diante de um universo de 1,5 milhão de filiados do PSDB. A vertente só despertou a atenção da mídia em 20 de outubro, quando Alckmin prestigiou um evento do grupo. “O laissez-faire, esse liberalismo completo, é a incivilização, porque é o grande comer o pequeno, o forte massacrar o fraco”, afirmou o governador, ao evocar a célebre frase do economista francês Vincent de Gournay (1712 -1759), um dos arautos do livre-comércio: “Laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui même” (Deixe fazer, deixe passar, o mundo vai por si mesmo).

Bastante aplaudido, o governador paulista compareceu ao debate acompanhado dos deputados federais Otávio Leite e Eduardo Barbosa, dos deputados estaduais Antonio Souza Ramalho e Carlos Bezerra e do ex-ministro Walter Barelli, titular da pasta do Trabalho no governo de Itamar Franco. Também estava presente o ex-deputado José Aníbal, hoje presidente do Instituto Teotônio Vilela, ligado ao PSDB. A deferência à vertente minoritária, quase inexpressiva, pode causar estranhamento, mas é um gesto calculado. Enquanto Doria aposta todas as fichas no discurso antipetista e antilulista, Alckmin parece compreender melhor o alvo das atuais insatisfações populares.

Na Câmara, durante a votação da segunda denúncia contra Michel Temer, os deputados mais afinados com o governador votaram em peso para que o peemedebista, aprovado por míseros 3% dos brasileiros, fosse processado. Em seus planos presidenciais, Alckmin quer distância de Temer. A interlocutores queixa-se de que seu estado recebeu verba federal somente até o governo de Dilma Rousseff. A torneira da União só abre para o prefeito João Doria, com quem Temer troca afagos constantes.

Para o coordenador da Esquerda pra Valer, Fernando Guimarães, as críticas do governador ao liberalismo trouxeram alento ao grupo. “Alckmin sempre representou a social-democracia, enquanto o Doria nem sequer conhece a doutrina partidária”, diz o militante. Segundo ele, o prefeito pisou no Diretório Nacional do PSDB pela primeira vez como candidato, nas prévias das eleições municipais de 2016. “É evidente que a direção não realizou debates e discussões suficientes. Doria nunca ouviu o que o partido tinha a propor. Hoje, a cada medida do seu governo, vemos o quanto está distanciado dos direitos humanos, da social-democracia e do respeito à democracia.”

A velha guarda do PSDB tampouco esconde a insatisfação com a ambição desmedida do prefeito. O ex-governador Alberto Goldman, vice-presidente do PSDB, foi categórico ao apresentar Doria como um dos “piores políticos” da história de São Paulo, antes de ser ofendido pelo alcaide marqueteiro. A descompostura do prefeito apenas reafirmou a decisão de a Esquerda pra Valer apoiar Alckmin para a Presidência e Goldman para o comando nacional do PSDB.

A despeito do histórico do partido no governo Fernando Henrique Cardoso e na oposição às gestões petistas, Guimarães considera o PSDB um partido de “esquerda”. Somente os adeptos do liberalismo, a exemplo de Doria, estariam francamente à direita. Em sua origem, emenda, o PSDB abrigava outras três vertentes “mais progressistas”, o socialismo democrático, a social-democracia e a democracia cristã. A epígrafe do manifesto de fundação da legenda sinaliza um princípio esquecido: “Longe das benesses oficiais, mas perto do pulsar das ruas”. Além de propor o parlamentarismo, o documento defende textualmente a implementação de “políticas de melhora dos serviços públicos básicos e de distribuição de renda, que conduzam à erradicação da miséria no Brasil”.

O partido ainda engatinhava e algumas lideranças já o colocavam à prova. Não fosse o punho firme do falecido governador Mario Covas, um dos fundadores do PSDB, Fernando Henrique Cardoso teria aceitado de bom grado ocupar o Ministério das Relações Exteriores de Collor. Em oito anos de mandato, FHC não hesitou em fazer alianças com as oligarquias rurais para tocar o seu projeto neoliberal, que dilapidou o patrimônio público e quebrou o País. Mas em nenhum outro momento da história do partido foi tão difícil defender os princípios do manifesto de fundação do PSDB como agora.

Com quatro ministros no governo Temer, o partido contribuiu decisivamente para a manutenção do peemedebista no poder, denunciado pela Procuradoria-Geral da República por corrupção passiva, formação de quadrilha e obstrução da Justiça. Enquanto desfruta das benesses do poder, o PSDB abriga figuras como o deputado estadual Coronel Telhada, com 36 mortes no currículo policial e defensor de uma intervenção militar no Brasil, e abrigou o deputado federal João Campos, autor do projeto da “Cura Gay”. A bancada tucana contribuiu decisivamente para a aprovação da redução da maioridade penal na Câmara. E diversas lideranças sempre trataram com desdém as políticas de distribuição de renda, a exemplo do Bolsa Família, ora apelidado de “Bolsa Esmola”, ora reivindicado como cria tucana.

Doria em Veneza: o prefeito é rejeitado pelo Esquerda pra Valer

 

 

Para Guimarães, ao fazer oposição aos petistas, o PSDB deslocou-se indevidamente para o campo da direita, abrindo espaço para pautas reacionárias e militantes sem identificação com a doutrina do partido. “Para se filiar, basta preencher três fichas na internet”, lamenta. Superintendente da Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso, o cientista político Sérgio Fausto disse ao jornal El País ver com “bons olhos” a movimentação do grupo. “O PSDB foi um partido de centro-esquerda nas suas origens e o que este movimento busca fazer é deslocar o partido para a sua posição original.”

O deputado Otávio Leite, do Rio de Janeiro, também concorda com o diagnóstico sobre o distanciamento do partido com os ideais contidos no manifesto, a ponto de afirmar que o PSDB precisa se “refundar”. Embora simpatize com o grupo, o parlamentar votou pela redução da maioridade penal, pelo impeachment e pela PEC que congelou os gastos públicos, incluídos os investimentos sociais, por 20 anos. Um ano e cinco meses após o afastamento de Dilma, Leite não é tão assertivo na defesa do processo que alçou Temer ao poder. “Havia um contexto de profunda pressão e a posição do partido expressava um movimento majoritário na sociedade. A avaliação a posteriori não nos permite voltar no tempo”, esquiva-se, sem mencionar o crime de responsabilidade atribuído à presidenta.

Contrário ao endurecimento das penas aos menores infratores e dos parlamentares mais próximos da Esquerda pra Valer, o deputado Eduardo Barbosa, de Minas Gerais, discorda radicalmente do grupo na questão do impeachment. Para ele, Dilma “fazia parte de um grupo que estava instituindo um processo de corrupção dentro da máquina estatal”.

O coordenador Guimarães considera “insuficientes” as razões apresentadas no processo. “Se for se utilizar o critério de pedaladas fiscais, então que se fizesse disso uma regra para analisar caso a caso todos os governadores, todos os prefeitos do País inteiro”, explica. “Trata-se de um golpe brando.” Não deve ser fácil defender posições como essa no PSDB de hoje, ainda que o primeiro objetivo destacado no manifesto de fundação do partido seja a defesa da democracia “contra qualquer tentativa de retrocesso a situações autoritárias”. O tempora, o mores!