Interior

Comunidade branca tradicional Tingui recebe visita de técnicos da FPI

Narrativa local sugere uma origem holandesa para povoado do Sertão de Alagoas

Por Ascom FPI do São Francisco 03/12/2022 15h36
Comunidade branca tradicional Tingui recebe visita de técnicos da FPI
Narrativa local sugere uma origem holandesa para povoado do Sertão de Alagoas - Foto: Ascom FPI do São Francisco

Em Água Branca, pleno Sertão alagoano, um pequeno povoado quase inteiramente de membros de uma mesma família forma uma peculiar comunidade tradicional. Não são indígenas, nem quilombolas. Em Tingui, a comunidade branca que busca suas origens numa suposta ascendência holandesa, os vínculos com a Europa estão sugeridos na tonalidade da pele e dos olhos claros de grande parte dos moradores, mas, principalmente, no imaginário coletivo local.


Pela primeira vez numa Fiscalização Preventiva Integrada (FPI) do São Francisco, a comunidade recebe a visita da Equipe 10, responsável pelas comunidades tradicionais, que conta com profissionais da antropologia, história e arqueologia, entre outros. Logo no primeiro encontro, durante a visita na última quarta-feira (30) no Centro Comunitário Pé-de-Serra, sede de uma organizada associação de moradores, a questão da origem foi posta em questão.

De tanto ouvir falar dessa história de origem, a dona Maria Soares.de Oliveira,, filha do morador mais antigo do povoado, foi pesquisar nos arquivos e, remexendo numa pasta de um curso que frequentou dez anos atrás, encontrou um texto sem assinatura, impresso num papel e escrito num estilo bastante coloquial, que conta a suposta história do início do povoado. Sem citar a origem holandesa, fala de um senhor de escravos "fugido" da guerra que, por volta de 1800, teria fundado o atual vilarejo.

De nome Arnaldo, o suposto fundador do povoado teria sido envenenado por um dos escravos que havia torturado, e enterrado numa área repleta de uma erva daninha conhecida por Tingui (uma planta que realmente é tóxica para o gado, e que viria a dar nome à comunidade. Nos relatos colhidos pelos técnicos do Iphan, durante os trabalhos da FPI, o surgimento do povoado teria se dado no início do século XIX. Eles também confirmaram os costumes conservadores adotados pela comunidade ao longo do tempo, como o casamento entre os membros da própria comunidade, fato que justifica a predominância dos sobrenomes Sandes e Oliveira entre os moradores de Tingui.


Encontro com Lampião - Na memória do mais velho dos moradores, Gonçalo Oliveira, entretanto, o que ficou marcado foi a violência da época do cangaço, quando o bando de Lampião deu cabo da vida do seu pai e dos dois irmãos mais velhos na frente da casa onde então moravam. "A gente tinha acabado de almoçar e eles chegaram, deram um bocado de aguardente pra minha mãe, pra ela "aguentar o rojão", e levaram a vida deles na bala. Depois deixaram ali mesmo no chão, " relembra o ancião.

O menino de nove anos, na época, é hoje um senhor quase centenário. Aos 96 anos, Gonçalo ainda lembra de terem poupado sua vida e a de um outro irmão, de 14 anos. "Um conhecido chegou dizendo pros cangaceiro pra deixar o menino vivo, pra trabalhar e ajudar a mãe. E deixaram a gente", completa. O cenário da tragédia é hoje uma tela pintada a óleo por uma artista local, que decora um dos cômodos da casa de sua filha Maria.

Museu - A relação da comunidade com a questão da memória também está presente no pequeno museu criado por um dos moradores, conhecido como "Seu Paulo". Instalado numa velha casa de farinha, cujos equipamentos ainda se encontram no local, o museu reúne fotos antigas de moradores da comunidade nascidos na primeira metade do século XX e mesmo no século XIX, porcelanas e garrafas de estilo antigo, artefatos indígenas cerâmicos e de pedra, entre outros.

O povoado é, por si só, histórico, segundo constataram os técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), devido à expressiva quantidade de antigos muros de pedra presente nas imediações da comunidade Tingui. Estruturas que, segundo eles, eram comumente utilizadas nos séculos XVIII e XIX para criação de animais e indicam que possivelmente a origem da localidade se relaciona com os antigos currais de bois que caracterizaram a ocupação do Sertão de Alagoas.

E é do povoado localizado aos pés da Serra do Craunã (o primeiro refúgio biológico da Caatinga alagoana) que têm início a movimentada trilha da Pedra Montada: um atrativo turístico que, segundo o presidente da associação local de moradores, Petrúcio Oliveira Sandes, tem trazido preocupação para as cerca de 100 famílias da comunidade. "É um local muito bonito, que dá vista pro Canal do Sertão, dá pra ver (a cidade baiana de) Paulo Afonso do alto, mas é um lugar perigoso. O IMA (Instituto do Meio Ambiente) colocou placa lá, mas às vezes os turistas se perdem, é arriscado se acidentar e ficar sem socorro", afirma o presidente da associação.

Para a equipe da FPI, Petrúcio também revela que o aumento do fluxo de "gente de fora" incomoda a pacata comunidade, bem como a falta de uma estratégia para que a comunidade também se beneficie economicamente com a atividade turística. Como forma de preservar a memória e ao mesmo tempo marcar território, a entrada para a trilha ganhou recentemente uma estátua inspirada na mãe de 'Seu Gonçalo ", que, viúva, teve de criar os filhos sozinha no início do século passado.

Condomínio fechado - Mas se a violência marcou a história de vida do mais antigo ancião do local e deu origem ao nome do povoado, hoje em dia o clima é de sossego. Fora a festa da padroeira, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, sobram poucas opções de lazer no vilarejo. A não ser os três bares onde os homens costumam se reunir. "Aqui é muito sossegado. Nunca teve caso de um furar o outro, nem nada de dar tiro, não. As vezes que tem confusão é por causa de cachaça, mas é gente que vem de fora. Aqui todo mundo se conhece. A gente vive em paz", diz o agricultor José Fernando de Oliveira, 65 anos, enquanto ostenta, na principal rua do povoado, seu chapéu de couro, tipicamente sertanejo, seus olhos azulados e a pele avermelhada do sol.

"Aqui é um condomínio fechado" brinca Moisés Morais Lisboa, cujos sobrenomes denunciam: trata-se de um "forasteiro". A cor da pele, parda, contrasta com a da esposa, Isabela Oliveira, neta de "Seu Gonçalo". Mas o contraste é apenas visual. O casamento dos dois revela que os anos de uma comunidade conservadora e fechada, como a própria Isabela afirma, já passaram. Moisés é de Piranhas, mas passou a viver na comunidade depois do casamento e foi muito bem recebido. Ambos são professores de geografia, mas apenas Moisés - também bastante curioso pela história de Tingui - está em sala de aula, enquanto Isabela trabalha na prefeitura. "Tingui é uma comunidade tradicional diferente não apenas por ser "branca", mas por conta da capacidade de organização. Até quem mora em outros povoados comenta isso. Como a comunidade ficou muito fechada durante muitos anos, isso acabou unindo mais as pessoas", afirma Isabela.

Uma prova dessa organização é o sistema de comunicação utilizado pela associação para os informes de interesse geral: um sistema de som instalado na sede da associação ligado a um alto-falante na torre da igreja, na praça do povoado. Numa área onde a telefonia móvel é precária (apenas uma operadora funciona), o recurso é simples e eficiente. Mal havia feito um comunicado sobre a documentação necessária para a obtenção de um benefício para os agricultores, Petrúcio é abordado ali mesmo na praça por um morador que queria tirar dúvidas. Mas, além da organização, o povoado tem uma notável articulação política. "Temos uma boa relação com o gestor", afirma Isabela ao se referir ao prefeito local. "E também somos bem prestigiados pelo poder público. Até mesmo na festa da padroeira, a comunidade é consultada para saber que banda (a prefeitura) vai contratar para tocar'" comenta.

No caso de Tingui, o ditado " a união faz a força" parece ter bastante sentido. "Até moradores de outros povoados fazem questão de entrar na associação daqui porque sabem que as coisas aqui vão pra frente", afirma a servidora pública do município. "A gente só tem medo de Tingui virar uma cidade fantasma porque não tem muita opção de renda para os mais jovens, que estão indo embora, sem perspectiva; além de outras famílias que estão deixando muitas casas vazias", lamenta Isabela. Hoje, a comunidade vive basicamente de agricultura de subsistência, criação de animais (em pequena escala) e artesanato: escultura em madeira, couro, pintura em tela, pano de prato, biscuit, etc.

Durante o encontro com a Equipe de Comunidades Tradicionais e Patrimônio Cultural da FPI, os moradores apontaram a Casa do Mel, um projeto da prefeitura de Água Branca, para potencializar o comércio de mel na região, que vai contemplar também os produtores da comunidade. Além do interesse na reativação de antigas casas de farinha existentes na comunidade, como forma de fortalecer a economia local. O ecoturismo e o turismo cultural também estão no "radar" da associação. Sobretudo depois das descobertas de dois novos sítios arqueológicos na região, apontadas pelos próprios moradores durante a visita da FPI, e confirmada pela arqueóloga do Iphan, Rute Bezerra, integrante da Equipe 10.

Quanto à origem precisa da "comunidade branca", talvez ainda leve tempo até ser confirmada, pois há relatos de que o patriarca do povoado - aquele certo Senhor Arnaldo - também poderia ter origem baiana, e não europeia. A filha de Gonçalo Oliveira, Isabela, conta que a hipótese de uma origem holandesa começou a ser levantada depois da visita de um projeto intitulado Universidade Solidária (Unisol), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no início dos anos 2000. Mas, até hoje, nenhum documento oficial demonstra a veracidade desse argumento. Apenas as aparências, e a imaginação.