Interior

Meio século de uma das maiores tragédias do Brasil

Tribuna conta o que as testemunhas viram na tromba d’água que arrasou a cidade de São José da Laje no fatídico dia 14 de março de 1969

Por Wellington Santos com Tribuna Independente 14/03/2019 09h55
Meio século de uma das maiores tragédias do Brasil
Reprodução - Foto: Assessoria
Como diz a velha canção, “essas recordações me matam”   Jacineide Maia, Vera Estela e Angélica Lyra eram meninas felizes, como qualquer menina de suas idades na pequena e bucólica São José da Laje, cidade a cerca de 90 km de Maceió, no fim dos anos 1960. Parte dessa felicidade delas foi embora quando “A Laje” — como as amigas e boa parte dos nativos gostam de se referir carinhosamente em relação à cidade também chamada de “Princesa das Fronteiras” — foi tragada pela enxurrada de águas no fatídico 14 de março de 1969. Nesta data, a Laje conviveu com sua maior tragédia e ofuscou para sempre o sorriso daquele trio de amigas e de seus quase 20 mil moradores. A cidade que tanto amam e em qual vivem até hoje foi abaixo. [caption id="attachment_286215" align="aligncenter" width="750"] São José da Laje era terra arrasada no dia seguinte com tromba d’água que flagelou a cidade (Foto: Arquivo)[/caption] Uma enchente no Rio Canhoto por causa da chuva em excesso e mais o rompimento da barragem da Usina Serra Grande na cabeceira dos outros rios, no agreste setentrional de Pernambuco, ultrapassou seus limites. A avalanche invadiu ruas, vielas e tudo que encontrara pelo caminho como um tufão, causou a morte de mais de mil e duzentas pessoas, segundo dados oficiais. E o pior: a precipitação feroz das águas fez desaparecer  para sempre outras centenas de pessoas que não tiveram direito a sepultamento por parte dos entes queridos. Em número de mortos, o episódio de São José da Laje está entre os maiores do planeta até hoje, segundo entidades que se preocupam com estatísticas relacionadas a grandes tragédias no mundo. A tromba de água derrubou ainda centenas de residências, prédios públicos e comerciais. O que era só alegria deu lugar a um trauma e a uma dor que marcariam para sempre a vida e a amizade das três. Passados 50 anos da tragédia inesquecível — sob lágrimas, abraços e emoções — as  amigas, que perderam inúmeros amigos e parentes próximos, falam à Tribuna Independente e ao portal tribunahoje.com o que lembram daquele dia fatídico que completa nesta quinta-feira (14) meio século. A Tribuna traz à baila os relatos dessas amigas e de outras testemunhas, cuja imensa maioria já se encontrava dormindo. Afinal, quando a tromba precipitou-se sobre a cidade eram por volta das 2 horas da madrugada. Horas antes, os moradores e turistas haviam celebrado a festa do Padroeiro São José. A reboque desse triste episódio, pela primeira vez a Tribuna revela ao leitor, baseado em depoimento do pesquisador José Maria de Mattos, registros de jornal à época e do então vice-prefeito do município, Osvaldo Timóteo, que grande parte dos recursos egressos do governo federal e de outras partes do mundo destinados a ajudar na reconstrução da cidade jamais chegou ao seu destino, ou seja, São José da Laje. Segundo o pesquisador e os registros da época, os recursos foram “misteriosamente” desviados para a construção de uma importante obra arquitetônica que se erguia na mesma época da tragédia dos lajenses, mas bem longe das imediações do Rio Canhoto. De acordo com a denúncia, o dinheiro das doações mundo afora serviu para injetar o delírio dos desportistas alagoanos amantes do futebol, em Maceió: o Estádio Rei Pelé. Os detalhes desta denúncia estão na sequência desta reportagem. Som feito pela precipitação das águas era como um rugido   Os ecos da tragédia foram notícia que correu o País e o mundo. O exemplo foi o destaque dado pela maior revista semanal à época no Brasil, O Cruzeiro, que publicou  assim o episódio. (...) Os que contam a tragédia dizem que se ouviu um pavoroso rugido, como o de um animal feroz se libertando. Os gritos se ouviram imediatamente, mas a tragédia tinha se iniciado e era impossível detê-la. Primeiro um rugido, como uma fera se libertando. Depois as águas foram tomando conta da cidade, levando homens, mulheres, crianças, destruindo o que houvesse. São José da Laje tornou-se ruína (...). Já por estas bandas, o site historiadealagoas.com narra que o padre Severino Brás, pároco local na época da tragédia, em entrevista ao jornal Diário de Pernambuco, lembrou  dos detalhes da catástrofe, porém com hora diferente de outros depoimentos ouvidos pela Tribuna. “Tudo começou no início da tarde, com simples aviso de que as águas do [Rio] Canhoto estavam crescendo de volume. A população não se alarmou, pois isso já era rotina. As chuvas aqui caíram normalmente durante todo o dia. Ainda celebrei o novenário de São José, nosso padroeiro. Às 3 horas e 15 minutos da madrugada, precipitou-se a tragédia e cinco minutos após a cidade estava devastada e meus fiéis apavorados”. O próprio padre Brás foi quem deu o alarme fazendo soar os sinos da nova matriz. Ele contara que, após tocar os sinos, atravessou a rua correndo para sua residência e não conseguiu mais voltar à matriz. De lá viu desabar a torre da antiga igreja. Há ainda o registro de que o primeiro aviso foi dado por um rapaz que trabalhava na rede ferroviária. Ele recebera um telefonema do chefe da seção da Usina Serra Grande, avisando do rompimento da barragem, fato que provocou uma tromba d’água de aproximadamente 2,5 metros de altura. Em pânico, os moradores subiam às cumeeiras das casas na tentativa de se salvarem. Alguns escaparam, mas a maioria foi arrastada pela violenta correnteza que sucedeu à tromba d’água. Já o Diário da Noite, do Rio de Janeiro, estampou a seguinte manchete para informar sobre a tragédia: “Cadáveres boiam nas ruas”. Os técnicos avaliaram na época que o volume de água de 1969 era inferior ao da cheia de 1962. Os danos teriam sido ampliados por causa da destruição da barragem da Usina Serra Grande, que provocou a tromba d’água, arrasando a cidade e a própria usina, que era considerada a segunda maior de Alagoas e sofreu perdas materiais superiores a 4 milhões de cruzeiros novos, moeda da época. São José da Laje, que na época tinha uma população de 20 mil habitantes, festejava seu padroeiro. A cidade recebia inúmeros visitantes nesse período, que se hospedavam nas casas de parentes. Isso aumentou o número de vítimas e dificultou a identificação dos desaparecidos. O “calmo” Rio Canhoto bem no quintal de casa   Jacineide Maia, atualmente secretária de Cultura e Turismo de São José da Laje, era uma menina de 11 anos à época da tromba d’água de 1969. Foi de onde era a estrutura de sua casa e o quintal que dava de ‘cara’ para o indomável Rio Canhoto, perto da atual igreja matriz de São José, que ela deu detalhes do que presenciou naquele dia. “Voltar a esse terreno é lembrar algo muito significativo”, diz Jacineide, ao embargar a voz e ficar alguns segundos em silêncio.  “Eu tinha 11 anos de idade. Esse rio de águas mansas e pedras onde eu brincava de boneca trouxe em 1969 uma tragédia imensurável. Ele não só levou as coisas materiais, mas principalmente, os amigos, as lembranças e nossas referências de uma infância feliz”, completa Jacineide, ao novamente embargar a voz. “Éramos em doze pessoas quando morávamos aqui. Foi graças ao seu Antônio Farias, funcionário da rede ferroviária, ao avisar sobre o rompimento da barragem da Usina Serra, que nossa família e outras famílias foram salvas naquela madrugada fria e triste”, relembra. “Saímos com água no joelho e eu via os brinquedos da festa arrastados pelas águas e depressa fomos para a casa do compadre de meu pai, a casa 58, no outro lado da rua, que tinha um nível um pouco mais alto”, conta. “A falta de energia aumentou o desespero, as pessoas gritavam desnorteadas e muitas sem roupas, buscando por parentes”, complementa Jacineide. “Pai, me ajude, as cobras estão me mordendo!”   Rosa Caldas, que trabalha em um cartório na cidade, à época tinha 17 anos e relata os momentos de agonia que vivenciou  no 14 de março de 1969.  “Eu estava grávida de oito meses de minha filha, foi um dia de terror. Acordei com minha mãe na minha porta aos gritos. Então fui à casa dela e de meu pai, até porque eu tinha um irmão paralítico. Foi um sufoco para salvá-lo. Lembro-me como hoje quando meu irmão disse: ‘pai, me ajude, as cobras estão me mordendo’”, conta Rosa. [caption id="attachment_286216" align="aligncenter" width="640"] Rosa Caldas com jornal que guarda até os dias de hoje com os fatos e momentos da agonia que viveu: 'foi um dia de terror' (Foto: Adailson Calheiros)[/caption] “Meu pai lutou muito para salvá-lo porque meu irmão era muito forte e lutar com aquele volume de água grande não foi brincadeira. Um senhor em cima de um poste ajudou a salvar meu irmão. Papai perdeu a loja, que ficava perto do rio”, diz Rosa, emocionada. “Tudo isso foi na casa de meu pai e de minha mãe. Corri para lá. Na minha casa chegou a dar mais ou menos um metro e oitenta de água. Perdi tudo porque tudo ficou na lama. Fomos para a estação e lá já estava cheio de gente, muitas das pessoas sem roupas”, lembra Rosa. Mas depois de pouco tempo da tragédia, outra notícia abalaria a família de Rosa. “Depois de 15 dias, meu irmão faleceu, porque além da paralisia, tinha também problemas mentais  e aquela agonia toda influenciou”, explica Rosa.  A paralisia, conta ela, foi causada por uma meningite porque naquela época a população praticamente não tinha acesso a vacinas. A professora Vera Estela, na época com 14 anos, mesmo que no desespero, saiu ajudando um e outro. “Meu filho, lembro-me de que cheguei da festa uma hora da manhã e fui deitar. E assim que deitei, meu cunhado bateu na porta ao gritos, dizendo para a gente sair rápido. Vi uma vizinha na frente e as portas fechadas. Era Dona Edite, que ajudei e levei uma queda, vendo a água invadindo a casa dela. Até hoje dona Edite diz que deve a vida dela a mim. Ela morava na Rua do Cajueiro. E assim, levei várias quedas para ajudar outras pessoas pelo caminho”, completa Vera. “Mas a pior lembrança deste dia foi uma cena de uma mulher nua. Ela tinha uma filhinha de mais ou menos dois anos e, na correnteza, a filhinha dela foi arrastada pela correnteza, infelizmente”, conta Vera, ao ressaltar que quando ouve notícias sobre a tragédia da cidade de Brumadinho, em Minas Gerais, ocorrida há pouco tempo, lembra imediatamente daquele 14 de março na sua Laje. “Depois daquele dia não consegui mais ir a uma praia, pois o barulho das ondas do mar me fazem lembrar daquele dia triste”, completa Vera. Pedagoga estava no Recife e soube da agonia pelo rádio   Maria Angélica Lyra, pedagoga, estava no Recife quando recebeu a notícia de que uma tragédia se abatera sobre seu torrão querido. “Fui para lá para trabalhar e estudar. Eu soube através do rádio por volta das 11 horas do dia 14 de março”, conta. Angélica conseguiu uma carona para chegar à Laje somente dois dias depois com uma turma da Universidade Federal de Pernambuco. “Quando cheguei a cena era de guerra”, diz ela que mora até hoje numa casa de arquitetura diferenciada das demais, construída em 1951, no estilo greco-romano, situada no bairro do Cajueiro, e que também foi atingida com as águas da grande cheia. “O muro desabou e foi um metro e meio dentro de casa”, relembra Angélica. [caption id="attachment_286217" align="aligncenter" width="640"] Angélica Lyra viu casa de estilo greco-romano chegar a um metro e meio de água (Foto: Adailson Calheiros)[/caption] “Estavam lá minha mãe, minha irmã, um cunhado e um sobrinho. Eles ouviram um grito na frente de casa, o portão fechado e estavam com dificuldade para derrubar o portão, mas conseguiram sair”, completa. Já a também professora Otília Ferreira Valente, é uma das três remanescentes do bairro Cajueiro, um dos mais atingidos na época, diz que seu maior trauma foi ver os cadáveres passarem a todo instante na padiola. “Eram levados aos montes para a delegacia. Isso deixa sequelas. A gente fica com trauma de chuva e de água”, ressalta a professora, ao se emocionar e lembrar dos vários amigos que perdeu. Governo da época cria comissão, mas logo surgem denúncias de desvios de dinheiro de doações   Seu Osvaldo Timóteo atualmente tem 89 anos. Era o vice-prefeito da cidade em 1969, mas foi fundamental porque agiu como o titular da pasta. Foi ele quem gerenciou como proceder no caos instalado, porque o então prefeito, traumatizado, não conseguiu ficar à frente dos serviços de assistência a seu povo. “Perdemos a metade da cidade, principalmente a parte comercial, além das importantes vidas humanas, é claro. O prefeito era Oscar de Andrade, meu compadre. Ele sempre trabalhava aqui e quando terminava o expediente voltava para sua fazenda na cidade de Ibateguara, aqui pertinho. Quando amanheceu, no dia da tragédia, que ele olhou e viu a bagaceira de cima, disse não ter condições de agir, pois estava muito abalado”, lembra Timóteo. [caption id="attachment_286218" align="aligncenter" width="640"] O desportista e diretor do Museu dos Esportes, Lauthenay Perdigão, no Estádio Rei Pelé em foto durante construção do estádio em 1969; campo de futebol é apontado por pesquisador José Maria de Mattos como a principal causa dos desvios de recursos que seriam para reconstrução de São José da Laje, à época (Foto: Museus dos Esportes/Cortesia)[/caption] Com pouca gente em condições psicológicas de ajudar, tal a dimensão da tragédia, Osvaldo tocou o serviço para gerenciar e organizar alguma coisa no caos naquele cenário de guerra. “Todo mundo estava abalado, todo mundo caiu com aquela bagaceira, o que era compreensível”, ressalta. “Lembro-me de que conseguimos cem barracas de lona para organizar em casas de famílias”. Mas Timóteo  franze a testa e demonstra certo incômodo quando é questionado sobre os recursos que teriam vindos para socorrer as vítimas e reconstruir a cidade. Com seu jeito tímido e de calma singular no falar, revela sua queixa. “Olhe, essa parte foi uma tristeza. Não é uma denúncia, mas essa parte do governo não foi boa. Porque eles criaram uma comissão para toda a região do Mundaú, sem priorizar a nossa cidade, que foi a mais atingida, onde ocorreu uma das maiores tragédias da história, foi uma decepção”, lembra Timóteo. “A prefeitura não recebeu um tostão. Eles colocaram uma comissão para o Vale do Mundaú, mas São José da Laje não viu a cor desse dinheiro. Nossa cidade teve mais de mil mortos. Até o Papa da época mandou dinheiro pra cá, mas o dinheiro dessas doações não vimos de jeito nenhum”, ressalta o ex-vice-prefeito da época. Naquela mesma noite caíram chuvas pesadas em Pernambuco, Paraíba e Ceará. No Vale do Mundaú foram atingidas as localidades de Barra do Canhoto, em Pernambuco, São José da Laje, Rocha Cavalcante, Santana do Mundaú, União dos Palmares, Branquinha, Murici, Messias, Rio Largo, Satuba e Maceió. Mas nada, absolutamente nada, parecido como o evento que ocorrera na bucólica e aprazível Laje. Pesquisador reforça denúncia: “dinheiro foi desviado para o Estádio Rei Pelé”   Em depoimento quase uníssono ao do então vice-prefeito Osvaldo Timóteo, que afirmou não ter visto a cor do dinheiro que vinha das doações de todas as partes do Brasil e do mundo, inclusive do Vaticano, o pesquisador José Maria de Mattos, um pernambucano que chegou a São José da Laje com seis anos de idade, não titubeia ao fazer uma revelação: “Tenho convicção de noventa e cinco por cento de que boa parte dos recursos financeiros destinados à reconstrução da cidade foi desviada para a construção do Estádio Rei Pelé, em Maceió”, afirma o pesquisador. “O governo da época coordenava uns bingos para ajudar na construção do Rei Pelé, mas só com aqueles bingos o estádio não seria entregue em tempo recorde como entregou, em pouco mais de um ano. Por coincidência, logo após essa tragédia da Laje, a obra do estádio ocorreu de forma muito rápida”, sustenta. [caption id="attachment_286219" align="aligncenter" width="640"] Vice-prefeito na época da tragédia, Osvaldo Timóteo disse que Prefeitura não recebeu nenhum tostão (Foto: Adailson Calheiros)[/caption] “Se fossem só com os recursos dos bingos, com certeza a obra do estádio teria sido entregue somente depois de muitos anos”, completa Mattos. Outro fator que reforça a tese de que os recursos que chegavam não tinham transparência, mesmo sendo um plano coordenado pelo governo federal através da Sudene, foi a atuação considerada arbitrária da Secretaria Extraordinária do Governo do Estado para a reconstrução da cidade. Os investimentos ou doações na ordem de um milhão de cruzeiros novos, oriundos de crédito aberto pelo presidente da República, em parte tinham a gerência do então secretário de Segurança de Alagoas, coronel Adauto Gomes Barbosa. Ele foi o encarregado de comandar as equipes da Polícia Militar para serem deslocadas aos locais atingidos. Segundo Mattos, essa comissão cometera absurdos com intuito de derrubar todas as casas e prédios para “justificar” supostos “estragos”, mesmo os que não sofreram nada. “Eles queriam derrubar tudo de qualquer jeito para justificar o envio de recursos. A ordem geral era derrubar tudo. Houve imóveis absolutamente recuperáveis e que eles mandavam derrubar”, denuncia. A Tribuna Independente tentou falar com alguém ligado ao coronel Adauto ou à comissão instalada pelo governo à época, mas não conseguiu contato. A professora Maria Angélica de Lyra também faz coro ao abuso da comissão e da Secretaria Extraordinária e revela que também queriam derrubar sua pomposa residência de estilo greco-romano, imóvel que tivera apenas o muro atingido. “Lembro-me que minha mãe foi para a frente da casa e disse: ‘quero ver quem é que vem aqui derrubar minha casa, duvido que tenha esse’”, conta. “Para mim, essa derrubada indiscriminada foi outra tragédia”, completa Mattos. Bingos eram constantes no Trapiche   Sobre o Estádio Rei Pelé, os tais bingos foram uma solução encontrada pelo industrial Napoleão Barbosa, nomeado pelo então governador Luiz Cavalcante, para a arrecadação de recursos para construir o estádio. Depois, uma nova comissão foi nomeada pelo substituto de Cavalcante no comando do governo do Estado, Lamenha Filho. Assim, no dia 9 de outubro de 1964 foi criada a Federação Alagoana de Promoção Esportiva (Fape) e os sorteios começaram, mas atrelados aos resultados da Loteria Federal. Em entrevista à Gazeta de Alagoas em 1975, Napoleão Barbosa lembrava que o arrecadado mal dava para pagar os prêmios. Reabriu-se a discussão e os bingos foram autorizados. [caption id="attachment_286220" align="aligncenter" width="640"] José Maria de Mattos denuncia desvio de dinheiro para construção do Trapichão (Foto: Edilson Omena)[/caption] Os prêmios eram atrativos. Caminhões, carros, geladeiras e casas prontas eram disputadas em bingos semanais realizados no descampado onde seria erguido o estádio. Multidões se dirigiam ao local, muitos vinham do interior do estado. O projeto do Rei Pelé foi do paulista João Kair que faleceu logo depois do início da construção. A equipe técnica era totalmente alagoana e dirigida pelo engenheiro Vinicius Maia Nobre. Mas trabalharam ainda os engenheiros Marcelo Barros (eletricista), Márcio Calado (sanitarista) e mais os engenheiros civis Nayron Barbosa, Marcos Mesquita, Roberto de Paiva Torres e Marcos Cotrim, formaram uma equipe que comandou milhares de anônimos operários. Na parte administrativa da obra estava no comando Carlos Barbosa. Tudo supervisionado pelo superintendente da Fape, Napoleão Barbosa. A única pessoa da época que a Tribuna conseguiu falar chegou a fazer parte de uma comissão para construir o estádio. Jornalista e diretor do Museu dos Esportes  Edvaldo Alves Santa Rosa, Lauthenay Perdigão acompanhou a construção do estádio e lembra das opções que foram analisadas para a escolha do local, mas preferiu não fazer nenhum juízo de valor sobre o andamento das obras. “Somente depois de se observar alguns locais no Tabuleiro do Martins e até no Mercado, ali onde hoje funciona o Mercado da Produção, foi que a escolha ficou para o bairro do Trapiche da Barra”. Polêmicas à parte, o majestoso Estádio Rei Pelé foi inaugurado no dia 25 de outubro de 1970, portanto um ano e sete meses depois da tragédia de São José da Laje, com uma chuva de gols do Santos comandado por Pelé sobre um selecionado alagoano por 5 a 0. Laje entra para histórico das maiores enchentes no Brasil   Quando alguém fala a palavra “enchente” é natural que a primeira imagem que venha à cabeça seja a de destruição, prejuízos e de mortes. Oficialmente, São José da Laje entrou para o triste rol das grandes tragédias em 1969 ao computar oficialmente 1.256 mortos registrados, segundo dados da Secretaria Extraordinária de Governo, à época. Já os dados oficiosos podem passar dos 2 mil mortos. Na cheia de 2010, foram 5.200 desabrigados ou desalojados, mas ninguém morreu em São José da Laje. Mesmo assim, duas pessoas desapareceram e 386 casas foram destruídas e mais de mil ficaram danificadas. [caption id="attachment_286221" align="aligncenter" width="640"] Rua de São José da Laje completamente arrasada em 1969 (Foto: Arquivo)[/caption] De acordo com especialistas, se o leito natural de um rio ou córrego recebe uma quantidade muito grande de água que provém da chuva e não tem a capacidade da suportá-la, acaba transbordando e causando a enchente. Esse processo é natural e todo rio precisa ter uma área chamada de “área de inundação” para a qual a água irá escoar. Esse é o grande problema que causa as enchentes e alagamentos nas cidades, pois a área de inundação simplesmente não foi respeitada e famílias se estabeleceram nessa região construindo casas. Então quando o rio transborda a sua água alaga essas casas. Além disso, ainda existe a questão da urbanização das cidades, na maior parte delas o processo foi feito sem nenhum tipo de planejamento como, por exemplo, pensar na declividade das ruas (para onde a água da chuva deveria escorrer) ou então a construção de galerias pluviais (uma forma de captar e transportar a água das chuvas sem problemas). A falta desses procedimentos é o que contribui em grande parte para tantos casos de enchentes e alagamentos no Brasil. Destinar verbas para essas obras sairia muito mais barato do que ter que recuperar regiões completamente destruídas e com certeza nem se equivalem à possibilidade de perder vidas. HISTÓRICO DE ENCHENTES NO PAÍS [caption id="attachment_286222" align="aligncenter" width="640"] Casa destruída na cheia de 2010: histórico de enchentes (Foto: Adailson Calheiros)[/caption] 1855  Enchentes em Santa Catarina O estado de Santa Catarina é um dos que mais sofrem com problemas de enchentes e inundações no Brasil e no ano de 1855 foi registrada uma das primeiras tragédias. Uma das principais fontes de informação do fato é uma carta de Bruno Otto Blumenau, fundador da colônia que se tornaria no futuro a cidade de Blumenau. Nesse documento ele relata que em menos de 36 horas o rio Itajaí-Açu subiu a uma altura de mais de 63 palmos do nível normal, algo em torno de 15 metros. 1967 Enchentes e Deslizamentos de terra em Caraguatatuba As enchentes e deslizamentos ocorridos no mês de março de 1967 em Caraguatatuba resultaram em cerca de 436 mortes. Uma tragédia que teve repercussão mundial com o nome de Hecatombe. Devido às chuvas intensas na região da cidade, a mesma ficou isolada. A ajuda apenas pôde ser feita pelo ar e pelo mar, pois se tornou impossível adentrar na cidade uma vez que aconteceram diversos deslizamentos. Apesar da contabilização do número de mortos chegar a 436 os moradores da região apontam que o número chega ao dobro ou ao triplo. 1979 Enchentes em Minas Gerais e Espírito Santo Uma das maiores enchentes registradas no Vale do Rio Doce e no Espírito Santo aconteceu no ano de 1979. Os estragos foram bastante intensos, a repercussão da tragédia foi mundial, para se ter uma ideia. Muitas cidades foram prejudicadas. A causa da enchente foi o grande acúmulo de chuva ocorrido entre o final de janeiro e começo de fevereiro de 1979 na bacia do Rio Doce. No dia 3 de fevereiro aconteceu o pico da cheia do Rio Doce e o nível da água acabou subindo bem rapidamente. Cidades como Galileia, Itueta, Tumiritinga, Resplendor, Conselheiro Pena e Aimorés ficaram completamente alagadas. Outras cidades como Baixo Guandu, Colatina, João Monlevade, Governador Valadares e alguns municípios da atual região metropolitana do Vale do Aço ficaram parcialmente inundadas. Ao todo essa enchente deixou 47.776 desabrigados, 74 vítimas fatais e 4.424 casas atingidas. A Tragédia em Ipatinga A cidade de Ipatinga (que fica localizada no Vale do Aço) foi uma das que mais sofreram com a enchente. Ao todo somente nessa cidade foram contabilizados 10 mil desabrigados e 42 mortos, a maior parte soterrada por uma grande queda de encosta que aconteceu no bairro Esperança. 2008 Enchentes em Santa Catarina Após o período de grandes chuvas no mês de novembro de 2008 começaram as enchentes no estado de Santa Catarina. Ao todo foram 135 mortos, 9.390 moradores tiveram que abandonar as suas casas e mais de 5.617 ficaram desabrigados. 2010 Inundações e Deslizamentos de Terra no Rio de Janeiro e São Paulo No mês de janeiro de 2010 o Rio de Janeiro e São Paulo passaram por grandes dificuldades com as inundações e deslizamentos de terra. No Rio de Janeiro, o Morro Carioca, no centro de Angra dos Reis, foi uma das regiões mais atingidas pelos deslizamentos de terra. A causa imediata dos problemas nos dois estados foi o grande volume de chuvas no mês de janeiro, porém, a estrutura inadequada das encostas foi o agravante. Ao todo essas inundações e deslizamentos deixaram pelo menos 75 mortos e centenas de feridos na região Sudeste do país. 2010 Enchentes em Alagoas e Pernambuco Os estados de Alagoas e Pernambuco sofreram com as enchentes no mês de junho de 2010. O problema se deu ao longo dos rios Sirinhaém, Piranji, Una, Canhoto e Mundaú. Foram mais de 30 municípios dos dois estados que sofreram com essa situação e declararam estado de emergência. LISTA DAS PIORES ENCHENTES GLOBAIS DOS ÚLTIMOS DEZ ANOS   A mais mortal enchente de que se tem notícia, desde 1900, segundo o site International Disaster Database (EM-DAT, que compila informações globais de desastres), ocorreu na região central da China, em 1931: estima-se que 3,7 milhões de pessoas tenham morrido nas inundações. Haiti Maio de 2004 – 2,6 mil mortes Dias seguidos de chuva forte fizeram com que rios transbordassem no Haiti e na vizinha República Dominicana, deixando milhares de desabrigados e de casas destruídas. Índia Julho de 2005 – 1,2 mil mortes Chuvas de monções no oeste da Índia provocaram cheias recordes na época. A tragédia aumentou com rumores, em 28 de julho, de que uma represa havia cedido à pressão da água, o que levou a uma debandada de pessoas. A confusão resultou em outras 15 mortes. Bangladesh Julho de 2007 – 1,1 mil mortes Chuvas constantes por quase três semanas no sul da Ásia provocaram enchentes em diversos países da região e deixaram quase 20 milhões de desabrigados. Além de China e Bangladesh, as águas afetaram também Nepal, Butão e Paquistão. Índia Junho de 2008 – mil mortes Chuvas fortes no noroeste do país fizeram com que rios transbordassem e deixassem milhares de aldeias submersas. Calcula-se que as cheias tenham afetado 8 milhões de indianos. Paquistão Julho de 2010 – 1,9 mil mortes As cheias afetaram um quinto do território do país e deixaram 4,6 milhões de paquistaneses desabrigados. As chuvas arrasaram as colheitas do país, elevando em 15% o preço dos cereais no Paquistão. China Maio de 2010 – 1,7 mil mortes As águas provocaram enchentes e deslizamentos no sul da China, destruindo casas e plantações e dificultando o abastecimento de água potável na região. Poesia, tristeza e esperança, a vida continua...    O poeta mais popular da Laje, Waldemar Matias, 84 anos, era funcionário da prefeitura e foi testemunha ocular da tromba de água que se abateu sobre a aprazível Princesa das Fronteiras. E tudo aquilo que o então jovem poeta vira, embora triste, viraria mais tarde estranha inspiração transformada em versos para declamar. [caption id="attachment_286223" align="aligncenter" width="640"] Poeta Waldemar Matias e esposa Vandira também vivenciaram momentos tristes no fatídico 14 de março de 1969, quando ocorreu a enchente em São José da Laje (Foto: Adailson Calheiros)[/caption] “Saí com minha mulher às carreiras, com água acima da cintura, mas me livrei. Eu morava num beco, perto do rio. Lembro-me que minha mulher se agarrou em mim e, graças a Deus, conseguimos nos salvar. Só saí porque papai do céu não queria que a gente morresse”, conta Matias, ao acrescentar com uma revelação impressionante: “Durante todos aqueles dias na delegacia de polícia, eu e um repórter contamos mil, quatrocentos e noventa quatro defuntos”, afirma. Ele tinha cinco anos de casado em 1969 quando a enxurrada arrasou tudo que encontrara pela frente na sua inspiradora São José da Laje. Mas o poeta que começou a escrever sua primeira poesia em 1964 não perde o bom humor mesmo para falar de cenas inesquecíveis. “Nesse tempo eu tinha oito mulheres, mas me apaixonei por minha atual mulher e quem ganhou o jogo foi ela”, diz o poeta, ao referir-se à esposa Vandira. Da cheia de 1969 recorda com dificuldade e algum esforço de alguns versos que fez sobre a tragédia em livreto publicado pouco tempo depois. Mesmo sem lembrar a grande maioria dos versos, o poeta conseguiu declamar a primeira estrofe: "Oh, Santo Deus Criador! dai-me força e coragem, para contar os horrores que eu conto sem fabulagem Todo caso que se deu lá em São José da Laje..." “Laje, para sempre minha eterna paixão”   A vida sempre se refaz, o novo sempre vem, tudo se renova, apesar das tragédias. É baseada nesta premissa que a secretária de Cultura e Turismo de São José da Laje, Jacineide Maia, faz questão de renovar as esperanças, ao citar os ciclos de grandes enchentes que ocorreram no Rio Canhoto nos anos de 1914, 1941, 1969 e 2010. [caption id="attachment_286224" align="aligncenter" width="640"] À beira do Rio Canhoto, homenagem em poesia da secretária de Cultura e Turismo Jacineide Maia (Foto: Adailson Calheiros)[/caption] E como um mantra renovado, Jacineide, à beira do leito do hoje tranquilo Rio Canhoto, perto de onde foi sua antiga casa, dá o tom em versos como uma espécie de canto dos cisnes do processo cíclico que a Natureza impôs naquele 14 de março. “Meu Rio Canhoto, nosso Rio Canhoto, águas tranquilas, de uma infância feliz. Laje dos meus encantos, dos meus sonhos, cidade apaixonante, de um acervo histórico-cultural imensurável. A sua história de tragédias não apaga a paixão e o amor que temos por essa cidade que, através de suas enchentes, nos revigora a fortaleza de sempre recomeçar, acreditar que ser feliz é o mais importante. Laje, minha paixão!”. São José da Laje em imagens do ontem e do hoje e o ritmo cíclico das tragédias   [caption id="attachment_286225" align="aligncenter" width="640"] Casa de Jacineide Maia parcialmente destruída na tromba d’água de 1969 que devastou o município (Foto: Arquivo)[/caption]   [caption id="attachment_286226" align="aligncenter" width="640"] População lajense na busca por comida no dia seguinte à tragédia que matou mil e duzentas pessoas (Foto: Arquivo)[/caption]   [caption id="attachment_286227" align="aligncenter" width="427"] Jacineide Maia e Rosa Caldas na lápide da antiga Matriz de São José, destruída parcialmente (Foto: Adailson Calheiros)[/caption]   [caption id="attachment_286228" align="aligncenter" width="640"] Rua São José parecia cenário de guerra depois da enxurrada registrada durante o ano de 1969 (Foto: Arquivo)[/caption]   [caption id="attachment_286229" align="aligncenter" width="640"] Casa em estilo greco-romano de Angélica Lyra, onde a água chegou a um metro e meio de altura (Foto: Adailson Calheiros)[/caption]   [caption id="attachment_286230" align="aligncenter" width="640"] Crianças, jovens e adultos à espera da chegada de mantimentos e alimento na pós-enxurrada de 1969 (Foto: Arquivo)[/caption]   [caption id="attachment_286231" align="aligncenter" width="640"] Igreja Matriz de São José parcialmente destruída no dia seguinte à grande enchente no município (Foto: Arquivo)[/caption]   VÍDEO   https://www.youtube.com/watch?v=QtfggY-4qEg&feature=youtu.be