Interior

Restos de comida saem do lixão para a mesa de comunidade indígena

No Alto Sertão alagoano, índios da etnia Jeripancó sobrevivem da catação do lixo

Por Tribuna Independente 05/05/2017 10h16
Restos de comida saem do lixão para a mesa de comunidade indígena
Reprodução - Foto: Assessoria

“Como é que se joga fora comida que ainda presta? Eu não entendo não. Aqui, a gente separa quase tudo de alimento que encontra. Tem coisa que dá para aproveitar e nós comemos, a família toda, somos em oito. Tem uns restos que nem os bichos querem. Mas, mesmo assim, esses, separamos para os porcos. E dessa forma, vamos sobrevivendo”. O desabafo é de dona Irene Pereira, índia da aldeia Jerinpacó, localizada na abafada cidade de Pariconha, Alto sertão alagoano, que fica a mais de 317km da capital Maceió. Naquela comunidade, conhecida oficialmente como Ouricuri, vivem cerca de 200 pessoas dessa mesma tribo e boa parte delas trabalha na catação do lixo por falta de alternativas de trabalho.

Como se não bastasse a condição sub-humana em que essa pessoas vivem, os lixões estão proibidos por lei desde 2014, quando venceu o prazo para que as prefeituras implantassem aterros sanitários ou criassem consórcios com o objetivo do correto descarte e tratamento dos resíduos sólidos. Em Pariconha a situação é considerada ainda mais grave porque o lixão está instalado dentro das terras indígenas.

A família de dona Irene é apenas uma das que trabalham de segunda a domingo, numa jornada de mais de 10 horas diárias, no lixão do município de Pariconha. Analfabeta, ela não sabia da Lei nº 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e teve como principais diretrizes a redução do volume de resíduos, a reciclagem de materiais por meio da implantação da coleta seletiva e a extinção dos lixões até agosto de 2014.

“Nós não podemos viver sem isso aqui não. A Funai quase não aparece e nem cuida da gente. Só tem uma escola na comunidade e, mesmo assim, ela não abriga todas as crianças da aldeia. E se mal tem estudo para elas, imagina pra gente grande. E se nós não tivemos formação, o jeito é nos agarrarmos às oportunidades que surgem. Infelizmente, foi o lixão. Então, não temos o que fazer, é trabalhar dentro dele, mesmo sabendo que esse lixo todo está dentro das nossas terras”, lamentou a índia, mostrando as mãos calejadas e com marcas de ferimentos causados pela catação.

“Para piorar a situação, a Prefeitura só veio aqui uma vez para entregar umas luvas. Mas eram de qualidade tão ruim que não deram nem para um dia de trabalho. Nunca recebemos máscaras, botas, chapéus, protetor solar. E como ganhamos pouco vendendo o material reciclável que consegue catar, ou a gente se equipa, ou a gente come. Nós preferimos comer”, sentenciou dona Irene.

Humilhação e problemas de saúde na rotina da aldeia

Como Irene Pereira, Edílson Heleno também é índio e catador. “Se não tem outro serviço, o jeito é trabalhar no lixo, mesmo correndo risco. Já perdi as contas das vezes me cortei com garrafas, latas e até com resto de lixo hospitalar. O pior que tem dias que perdemos a fome com o mau cheiro que vem desse lixo. Fica no nariz. Vamos pra casa e o mau cheiro não sai”, lamentou com sua fala rápida.

Como quem deseja esconder a humilhação de sobreviver com o que não serve mais para outras pessoas, o índio endurece o  tom de voz  e dispara: “quem tá no conforto de casa ou trabalhando num hospital, não está preocupado com quem trabalha na catação. E aí, sobra pra gente o pior, a possibilidade de um acidente, de uma contaminação”, declarou.

Lixo coletado durante um dia de trabalho se transformará em comida de porco

“E ainda tem a fumaça quando há queima de pneus em meio ao lixo”, lembrou Edílson. Por lei, também é proibido o descarte de pneus em lixões. Esse é o tipo de material que precisa ser reciclado ou passar por um tipo de tratamento específico, uma vez que a fumaça tóxica advinda da sua queima libera substâncias químicas que podem causar sérios problemas respiratórios.

Seguindo a sorte de seus irmãos de etnia Jeripancó, a índia Lílian Teixeira também sobrevive do lixo. “Tenho que dar de comer a 10 pessoas da minha família, sete delas, crianças. Por isso preciso catar lixo, só o Bolsa Família não resolve. E até é possível levar pra casa a comida que encontramos aqui. Esse pessoal que tem dinheiro desperdiça muito e não sabe o valor que tem um pedaço de fruta jogado fora, nem um punhado de arroz ou feijão cozinhado. E dizer que eu gosto de trabalhar dentro do lixo é mentira, mas o que se há de fazer? Eu já ouvi falar em aterro e, pelo que me disseram, lá as coisas são mais organizadas, com coleta seletiva, né? Bem que a Prefeitura poderia organizar isso e melhorar as nossas condições de trabalho. Iria beneficiar a nossa saúde também”, disse ela.

Flagrante foi descoberto pela FPI do São Francisco

Esse descaso com os Jeripancó foi flagrado pela Fiscalização Preventiva Integrada do Rio São Francisco, uma força-tarefa coordenada pelo Ministério Público Estadual de Alagoas, que reúne 22 instituições estaduais e federais. O programa objetiva evitar a degradação no Velho Chico, proteger a saúde dos ribeirinhos e da população que faz parte da Bacia Hidrográfica do São Francisco e preservar os patrimônios natural e cultural daquela região. Portanto, também é missão da FPI cuidar das comunidades tradicionais, a exemplo dos índios.

De acordo com o promotor de Justiça Alberto Fonseca, coordenador da FPI, a Prefeitura de Pariconha foi multada em R$ 2.544.503,96 por uma série de danos ambientais, entre eles, o lançamento de resíduos sólidos na terra do grupo indígena Jeripancó.

Lilian Teixeira espera intervenção da prefeitura e melhoria da condição de vida

Numa área de 0,74 hectares, o Município lançava todo o lixo recolhido na cidade sem qualquer autorização dos órgãos competentes. E foi por essa razão, que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou a sanção pecuniária. “Trabalhar com o lixo não é uma coisa proibida. Mas, as prefeituras precisam aderir ao sistema de aterro sanitário. Um aterro e um projeto de coleta seletiva resolveriam o problema dessa comunidade indígena, gerando, de forma mais digna, emprego e renda, impediriam a degradação ambiental do solo e dos cursos d’água e reduziriam, de maneira substancial, a poluição atmosférica”, detalhou.

E como os índios são patrimônio da União, coube ao Ministério Público Federal abrir procedimento administrativo para investigar o caso. Um inquérito civil foi instaurado e está em andamento. “Se o Município e a Funai não adotarem as providências cabíveis, com a execução de políticas públicas que possam transformar a vida daqueles indígenas, o MPF deverá ajuizar uma ação de reparação de danos”, informou Ivan Soares Farias, antropólogo da instituição.

Legislação determina o fim dos lixões

Em 3 de agosto de 2010 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 12.305, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Ela deu prazo foi de quatro anos para que os municípios brasileiros desativassem seus lixões e construíssem aterros sanitários. Porém, quase três anos de findado esse prazo, a grande maioria das cidades ainda faz o descarte irregular dos resíduos sólidos.

Em Alagoas, foi instituído o Plano Estadual de Resíduos Sólidos (PERS) há dois anos. Incluindo todo o território do estado, ele foi elaborado para um horizonte de 20 anos, com revisões a cada quatro anos. Suas atividades foram divididas em cinco metas: projeto de mobilização social e divulgação, panorama dos resíduos sólidos em Alagoas, estudos de prospecção e escolha de cenários de referência, diretrizes e estratégias e divulgação e finalização do Plano. Mas apesar do tempo de duas décadas ser considerado longo, foram criados sete consórcios públicos - associações de entes federativos que visam à solução de problemas comuns. Cada um deles abriga uma grande quantidade de cidades que, juntas, deveriam tratar o seu lixo da forma correta.

Cada consórcio foi instalado abrigando os municípios mais próximos. O Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos (Cigres) envolve 17 prefeituras, beneficiaria quase 25 mil habitantes e teria capacidade para receber 70 toneladas por dia. O Consórcio Regional de Resíduos Sólidos do Sertão de Alagoas Crerssal) tem oito cidades com 178.773 moradores e poderia recolher 47,19 toneladas de lixo diariamente.

Índios vivem em condições sub-humanas como catadores de lixo

O Consórcio Regional de Resíduos Sólidos do Agreste Alagoano (Conagreste) reúne 20 cidades e 630 mil habitantes. A geração de resíduos sólidos urbanos seria de 237,80 t/dia. Já o Consórcio Regional de Resíduos Sólidos da Zona da Mata Alagoana (Corszam) tem 12 municípios consorciados e população de 239.721 pessoas. Poderiam ser produzidas até 99,31 toneladas por dia.

O Consórcio Intermunicipal do Sul do Estado de Alagoas (Conisul) tem 14 prefeituras e engloba 418.019 moradores. A capacidade para geração de lixo é de 166,13 t/dia. A região Norte criou o Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento da Região do Litoral Norte de Alagoas (Conorte), com 12 prefeituras e população de 173.599 pessoas. A geração de resíduos seria de 71,47 toneladas diariamente. Por fim, foi criado o Consórcio Regional Metropolitano de Resíduos Sólidos de Alagoas, com oito cidades, 232.911 habitantes e 122 toneladas de lixo poderiam ser produzidas.

Legislação reconhece que lixões agridem o meio ambiente e determina a criação de aterros sanitários

“Já se passaram seis anos desde a instituição da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e, em Alagoas, com exceção de Maceió, nenhum outro município conseguiu ter o seu próprio aterro sanitário. Como as prefeituras alegaram que custava caro construir, foi dada a elas a alternativa dos consórcios. Aqui no estado, foram sete formados, mas continuamos no aguardo para que sejam operacionalizados em sua integralidade, ou seja, nenhum deles funciona como deveria. A lei já proíbe a existência de lixão desde 2014 e os gestores precisam entender isso de uma vez por todas. E mais, eles têm também que ter a consciência de que a coleta deve ser feita com regularidade e de forma que não prejudique a saúde da coletividade”, reforçou o promotor Alberto Fonseca.

Prefeito afirma desconhecer índios comendo lixo

A Prefeitura de Pariconha contesta a informação da Funai e do Ibama e alega que as terras onde o lixão está instalado não são demarcadas para os Jeripancó.

“Na verdade, ele fica no limite entre a área indígena e um terreno do Município Já esclarecemos isso através de documentação. Não há dúvidas sobre isso. Definitivamente, o lixão não está dentro de uma aldeia”, alegou o prefeito Fabiano Ribeiro de Santana.

COOPERATIVA

Sobre as famílias de índios que sobrevivem da catação do lixo, o gestor informou que está organizando uma cooperativa de coleta seletiva para ajudar aquelas pessoas que ali trabalham. Ele ainda fez questão de ressaltar que o número de pessoas que vivem catando lixo é pequeno.

“Temos a informação que uma família trabalha cantando lixo. Eles selecionam o que chamamos reciclados e são apenas oito pessoas. Não se pode negar que vendendo o material achado no lixo, eles estão conseguindo renda”, disse.

E a despeito da Prefeitura ainda está sem operar um aterro sanitário, Fabiano Ribeiro disse que os trabalhos não começaram porque ele aguarda uma parceria público privada (PPP).

“Estamos aguardando a manifestação das empresas que têm interesse no assunto. Já publicamos edital sobre o assunto e estamos esperando estabelecer parceria com as empresas privadas. Sozinha a prefeitura não consegue resolver essa questão. Além disso, estamos em reuniões constantes com prefeitos de outros municípios para darmos continuidade ao consórcio dos aterros sanitários”, declarou.

Território indígena deve ser preservado

O povo indígena brasileiro Jeripancó, que reside no extremo oeste do estado de Alagoas, no município de Pariconha (341km de Maceió), é descente dos Pankararú, que até hoje habitam o Brejo dos Padres, em Pernambuco. Ele teria migrado para cá em busca de terras para agricultura.

Segundo dados da Funai, existem cerca de dois mil índios dessa tribo ocupando apenas 185 hectares, do total de 1,2 mil hectares já reconhecidos pelo Governo Federal. Porém, todo o restante da área ainda está em fase de demarcação definitiva. “Esses territórios tradicionais precisam ser regularizados o quanto antes. A Funai precisa ser mais célere nesse processo. No caso específico dos Jeripancó, caso eles tivessem uma área maior delimitada, talvez o lixão da cidade não tivesse sido instalado dentro da aldeia”, lembrou Ivan Farias Soares.

Falta de ação do poder devasta meio ambiente próximo a terras indígenas

A tribo passa ainda por várias outras dificuldades. Há apenas uma escola nas proximidades e ela não tem não capacidade para abrigar todas as crianças. E dentre os 10 municípios alagoanos com aldeias indígenas em Alagoas, também são os Jeripancó que possuem menor cobertura vacinal, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Eles também enfrentam problemas em abastecimento de água e esgotamento sanitário. “São indígenas que vivem numa condição de sofrimento permanente. Faltam-lhe quase tudo, inclusive a paz. E como a paz é fruto da justiça, ela só reinará entre os Jeripancó quando aquela comunidade puder viver com sua cidadania plena e podendo manter suas tradições culturais”, disse o antropólogo.