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Cavalo, um marco no cinema alagoano

21/08/2020 22h30
Cavalo, um marco no cinema alagoano
Reprodução - Foto: Assessoria
  por Golbery Lessa* Até assistir online o filme Cavalo, de Rafhael Barbosa e Werner Salles (disponível no festival Ecrã de 20 a 30 de agosto), concebido e produzido no meio audiovisual de Alagoas, o meu único contato com um longa-metragem alagoano tinha sido no longínquo ano de 1981, ao ver o filme Guenzo, de Joaquim Alves. Com sua alta qualidade técnica e artística, Cavalo já é um marco do cinema local, representa vitórias nas trincheiras das políticas culturais e avanços organizativos, políticos e estéticos de duas gerações de realizadores. O filme é um mergulho na sociedade e na cultura locais pelo portal da experiência histórica de negros e negras. José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, discípulo do deodorense Tavares Bastos, e outros abolicionistas já mandaram a letra: a escravidão singulariza e explica o Brasil. O regime escravocrata particularizou a modernidade e o capitalismo no país, bem como determinou a conexão específica desses elementos com as relações sociais e a cultura não modernas e não capitalistas. Cavalo acerta ao focar na corporalidade, pois aí estão mais evidenciadas as marcas da rebeldia e da escravidão, bem como de outros pólos dialéticos decisivos, como capital-trabalho, autoritarismo-democracia, arcaico-moderno e latifúndio-minifúndio. A escravidão ocorre principalmente sobre o corpo, impõe uma corporalidade de máquina e a negação do tato a indivíduos que buscam a liberdade dos gestos e o prazer da pele. Procura oprimir a alma, o idioma, a religião; mas esses são elementos nos quais a resistência se realiza de maneira mais efetiva, pois permitem o disfarce, a apropriação e o sincretismo. Como se sabe, a escravidão não acabou em 1888. Em dois sentidos. Primeiro, a população negra e trabalhadora em geral foi mantida excluída e em precárias condições. Segundo, mesmo em países centrais, como os EUA, muitos elementos do escravismo permaneceram sob o domínio do trabalho assalariado, evidenciando que o próprio assalariamento, mesmo nas expressões mais complexas do capitalismo, não supera traços sociais, culturais e políticos decisivos do regime escravocrata. A narrativa de Cavalo começa com a criação do ser humano pelos orixás nos mangues da lagoa Mundaú. Inicia pela alagoanidade vivenciada em Maceió, foca na relação entre sociedade e natureza na região lagunar. No semiárido, além das margens do São Francisco, o imaginário é, ao contrário, o do anseio pela água. A fertilidade das lagoas permitiu a existência de Maceió, pois a sociedade exportadora da época colonial e mesmo no século XIX era marcada pela fome, não conseguia produzir proteína suficiente para manter a população de uma grande cidade comercial. As relações de produção focadas no latifúndio e no comércio não eram capazes de produzir as condições nutricionais para manter uma superestrutura urbana complexa e, então, a forma de produzir a vida dos povos das margens da lagoa veio acudir a cidade e a tornou possível. A primeira cena do filme, pois, expressa o sentido da história das cidades lacustres. De fato, não apenas no mito, Nanã criou a humanidade da lama às margens da lagoa-mãe. A próxima cena reveladora será a descrição da pesca do sururu, o cerne da economia lacustre. O catador aparece laborando com os pés para separar, dentro da canoa, o molusco da lama. No trabalho moderno, que requer precisão de gestos, as mãos são tiranizadas pela vigilância dos olhos. Na cena em questão, as mãos não aparecem nem quando o pescador mergulha para apanhar o sururu sob a água; o olhar não vê as mãos submersas na lama. É um trabalho não moderno, uma relação muito mais íntima entre sociedade e natureza. O fato tem implicações decisivas para a cultura. A direção do filme evita o discurso livre, as longas entrevistas, porque está buscando explicar a cultura pelos arquétipos. Procura narrar pela corporalidade, a pele e a estética afroalagoana em suas várias temporalidades. Quem fala no filme está incorporado por uma entidade, anuncia os oráculos dos búzios ou canta raps bem metrificados. Há indivíduos, mas os nomes dos personagens não são mencionados, o que dificulta a racionalização de parte do enredo, mas se percebe que os diretores têm a intenção deliberada de chamar o espectador para um entendimento intuitivo. Não há liberdade para os personagens na prosa, mas apenas no corpo; as coreografias são definidas pelos bailarinos/as. Poderia se imaginar que aqui existira um sequestro do sujeito pela direção do filme, uma imposição excessivamente ideológica dos significados. Mas o que precisa ser dito sobre o tema pode sim ser bem apresentado apenas por meio do corpo, ainda mais em uma cultura na qual a sociedade civil tem dificuldade de desenvolver um discurso político. O aparente exagerado impressionismo da proposta acaba sendo, de fato, quase o seu contrário, quase um racionalismo, se conceituarmos a razão não da maneira cartesiana, mas, a partir da ontologia, como a capacidade de entender a realidade do jeito que ela é e pelos meios que ela permite. O cavalo foi símbolo do poder e da guerra durante séculos. Deu mais mobilidade e força bélica à nobreza e aos latifundiários quando plebeus e escravos guerreavam a pé. Socializado pela sela, os arreios e o estribo, se tornou um elemento relevante na reprodução das hierarquias sociais. Um animal submerso na cultura do poder. A natureza subjugada pela sociedade de classes. Tensão permanente entre natureza e cultura. Mas, ao mesmo tempo, seguiu sendo uma vitória da evolução das espécies, com sua síntese de força, velocidade e simetria. O cavalo aparece no filme nas carroças dos bairros populares, fusão entre arcaico e moderno (arreios da época colonial, molas de caminhão e pneus Pirelli), e na icônica encruzilhada das ruas do Imperador e Barão de Atalaia. Na madrugada urbana, um cavalo sob a chuva transpõe o encontro dessas vias em direção à praia. E foi como se eu visse o povo surgindo sem a carga da opressão secular, mas também carente de amparo social, projeto político ou esperança. Na Umbanda, o cavalo é o próprio ser humano, que empresta o corpo ao plano espiritual onde está a essência de todas as coisas e a hierarquia existe apenas entre os deuses; um imaginário ancestral africano, de uma época na qual não havia classes e os corpos eram livres. Sem a profunda beleza afroalagoana exposta no filme, que implica em uma fértil negação do naturalismo na arte, é impossível começar a romper séculos de discurso preconceituoso e décadas de abordagem midiática discriminatória da negritude. A profunda beleza, quando expressão nos indivíduos dos valores de uma coletividade, adquire uma poderosa dimensão ética e se torna revolucionária. Cavalo reafirma e aprofunda uma estética alagoana encontrada nas centenas de terreiros maceioenses e defendida no belíssimo Manifesto Sururu. O filme é um marco técnico, estético e político. Ponto de viragem para uma nova era do cinema em Alagoas. E o reencontro do audiovisual alagoano com o povo. Serviço: O quê: Exibição online do longa-metragem Cavalo no 4º Festival ECRÃ de Experimentações Audiovisuais Onde e quando: De 20 a 30 de agosto, pelo endereço www.festivalecra.com.br Acesso gratuíto *Golbery Lessa é historiador. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Alagoas - Ufal (1990), mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (1999) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (2005). Pesquisa na área de História, com ênfase em História das Interpretações do Brasil, História da Indústria e História de Alagoas.