Educação
Pesquisa resgata história das primeiras mulheres da Polícia Militar de Alagoas
Fernanda Calheiros, jornalista e cabo da PM/AL, traçou um perfil humanizado das 35 pioneiras da corporação militar alagoana
O ano era 1989. Uma turma de 35 mulheres ingressava na Polícia Militar de Alagoas (PM/AL) e marcava a história da corporação como as primeiras a iniciarem o Curso de Formação para Soldados Femininos (CFSd Fem). Esse marco histórico, antes restrito às fichas funcionais, tornou-se tema de estudo no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI) da Ufal, por meio de uma pesquisa de mestrado que destacou o protagonismo dessas militares.
O trabalho é de autoria de Fernanda Calheiros, cabo da PM/AL e formada em jornalismo pela Universidade. Defendida no último mês de agosto, a dissertação, aprovada com louvor e com orientação de publicação pela banca examinadora, recupera, traça um perfil e humaniza o ingresso dessas pioneiras. Um trabalho acadêmico, mas que também se configura como um reconhecimento para essas mulheres precursoras e que são inspiração para as cerca de 1.300 policiais que, hoje, integram a corporação alagoana.
“Ouvi e colhi relatos de mulheres que um dia, para mim, eram apenas nomes em uma lista. Ouvi depoimentos daquelas que chegaram ao quartel para ocupar espaço que antes só contava com homens. Saber das frases e comentários preconceituosos que ouviam, mas também como elas resistiram e abriram o caminho para todas as outras que viriam depois. Foi uma experiência riquíssima e posso dizer que foi emocionante em muitos momentos”, contou a mais nova mestra pelo PPGCI.
O trabalho elaborado na Ufal se soma a uma série de iniciativas, realizadas em diversas áreas e contextos, que têm como foco recuperar e contar histórias protagonizadas por mulheres, mas que ainda se encontram silenciadas, bem como falar sobre a importância de ampliar a participação delas em espaços cuja presença masculina ainda é predominante. E há muito ainda para ser feito. Uma medida atual, por exemplo, foi o anúncio do Ministério da Defesa do Brasil, no dia 28 de agosto, sobre o alistamento militar feminino voluntário, a partir dos 18 anos, medida inédita nas Forças Armadas brasileiras, uma vez que era algo reservado apenas para homens.
E Fernanda sabe o quanto essas conquistas são significativas e necessárias. “As corporações militares são ambientes predominantemente e historicamente comandadas e ocupadas por homens. A admissão de mulheres foi uma ruptura significativa e transformadora”, afirmou.
Ao mencionar o estudo que realizou, apesar de fazer parte da história recente, ela afirma que são poucas as publicações acerca desse marco histórico da PM alagoana, sendo um assunto pouco conhecido ou permeado por alguns equívocos até mesmo entre a tropa. Ao longo da pesquisa, ela constatou que essa é uma realidade percebida em outros estados.
“A literatura ainda é bem escassa. Tive acesso a estudos em corporações de outros estados, como São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Bahia, por exemplo, mas em campos diversos do conhecimento. Apenas em uma delas havia correlação com a Ciência da Informação, como foi o meu caso. Desconheço algo semelhante no contexto alagoano e isso, para mim, representa uma honra e uma responsabilidade maior ainda”, disse.
Das fichas aos depoimentos
Fernanda conta que a turma pioneira do Curso de Formação de Soldados Femininos (CFSd Fem) foi nomeada de Maria Quitéria de Jesus Medeiros, heroína nacional e primeira mulher militar brasileira. Da turma, segundo dados da pesquisa, apenas uma continua no serviço ativo, as demais estão na inatividade e uma delas, a tenente Ana Nunes, faleceu em 2015.
Para além dos dados, a preocupação da pesquisadora foi humanizar as informações funcionais registradas nas fichas mantidas em arquivos. Ela conta que, inicialmente, percebeu certa resistência e que tinha conseguido apenas algumas entrevistas isoladas. No entanto, o avanço da pesquisa e o compartilhamento de achados jornalísticos da época fizeram aumentar, de modo surpreendente, a participação das pioneiras ao estudo.
“Acredito que isso foi mexendo com as emoções, revirando lembranças de forma que elas passaram a se envolver de verdade. Gerou uma mobilização para que essa memória não caísse no esquecimento. Por iniciativa delas, agendamos um encontro que reuniu oito componentes”, comentou.
Do contato com a primeira turma de soldados mulheres, a pesquisadora destaca os depoimentos marcantes. E foram vários: de noviça, filha de alfaiate e sertaneja, mas, em todas elas, frisou Fernanda, a vontade e a coragem para servir à sociedade por meio da Polícia Militar.
“A noviça que trocou o hábito pela farda; a sertaneja que deixou a vida na roça para entrar no quartel; a filha do alfaiate que fazia os uniformes da PM e cresceu fascinada com esse universo; a jovem que se preparava para ser professora, mas soube do concurso porque a mãe, cozinheira do Hospital da PM, chegou em casa contando; ou a menina visionária que cresceu dizendo que se existisse policial mulher ela seria uma delas e assim o fez. Eram 35 mulheres, mas cada uma com uma história de luta, de realização, de superação, ruptura e conquista de um espaço historicamente masculino”, contou.
Nesse resgate histórico, a perspectiva de outros personagens também foi contemplada. “Cito como exemplo o coronel da reserva remunerada, Dimas Cavalcante. Ele foi o aspirante que comandou o pelotão feminino no curso de formação. Durante o serviço ativo, ele ocupou funções de comando e direção na corporação, chegando inclusive a comandante-geral, mas foi enfático ao dizer que ter participado da formação do CFSd Fem é o seu maior motivo de orgulho”, relatou.
Ao falar sobre a importância da pesquisa realizada, Fernanda acredita que conseguiu “ressignificar e projetar diversos aspectos”, incluindo os próprios desafios particulares e que marcam a vida de tantas mulheres, as quais precisam compatibilizar carreira profissional, estudos, cuidados com a casa e dedicação aos filhos.
“Foi um verdadeiro presente. Desafiador, complexo, mas que me enche de orgulho. Iniciei essa jornada com o objetivo de obter o título de mestra, que era um sonho antigo, mas que eu tinha adiado por muitos motivos, como mercado de trabalho, e outros tantos desafios, como conciliar carreira profissional, mundo acadêmico e maternidade. Costumo brincar que tenho Magnólia como orientadora e que Sophia e Théo [filhos de Fernanda] são meus desorientadores e foi a eles que dediquei minha dissertação”, afirmou.
Percurso e coincidências da pesquisa
Neta de ex-combatente da Segunda Guerra Mundial e filha de militar, a mais nova mestra em Ciência da Informação conta que sempre teve interesse pela área, tanto que seguiu a profissão do pai e, na pós-graduação, resolveu estudar sobre a carreira militar, contemplando a perspectiva da participação feminina.
Fernanda contou que, em alguns momentos do mestrado, precisou lidar com a insegurança e a incerteza, mas que o apoio recebido a ajudou a continuar. A realização da pesquisa recebeu autorização do comando geral, além do entusiasmo das pioneiras.
“Durante minha formação na PM, tive contato com três pioneiras. Uma delas, a tenente Silviany Domingues, acabou virando uma referência na carreira e sempre foi uma fonte em matérias jornalísticas que fiz, já que desempenho minhas atividades no setor de Comunicação da PM. Assim que soube da minha pesquisa acadêmica, ela foi uma das principais entusiastas e se colocou à disposição para contribuir no que fosse preciso. Foi a partir do contato com ela que consegui chegar aos demais entrevistados”, recordou.
O apoio veio também dos docentes do PPGCI, sobretudo, no momento de direcionar o estudo. O percurso de uma pesquisa não ocorre de forma linear. Uma ideia pode ser ratificada, mudar o seu formato original ou, até mesmo, ser totalmente abandonada. E a pesquisa de Fernanda foi sendo alterada e tomado forma no decorrer das disciplinas de mestrado, especificamente, nas aulas da professora Francisca Rosaline Mota e do professor William Melo.
“Foram com essas aulas que consegui direcionar a temática da memória ao arquivo da Diretoria de Pessoal da PM, que é um verdadeiro tesouro, tomando como perspectiva a chegada da mulher à instituição”, explicou.
O trabalho foi orientado pela professora Magnólia dos Santos e, para surpresa da pesquisadora, a docente também tinha sido pioneira da Marinha. A pesquisa contaria, então, com a orientação acadêmica, mas também com a visão vida de alguém que passou por uma experiência semelhante. “Foi uma feliz coincidência”, disse.
Ao citar outra coincidência constatada ao longo do estudo, ela conta que nasceu no mesmo mês e ano (janeiro de 1987), em que foi sancionada a lei estadual que previa o ingresso de mulheres na PM de Alagoas.
Apesar de nascer em uma família com um forte histórico militar, o pai não queria que ela fosse pela mesma trajetória profissional. “Quando criança, eu dizia que queria ser militar, mas ele não aprovava a ideia. Nunca me disse o porquê, mas imagino que ele via os desafios, os preconceitos e a luta da mulher na instituição, e não queria que a filha caçula passasse por isso”, deduz.
O pai de Fernanda faleceu em 2011 e não a viu fardada. Ela ingressou na PM em 2016 e foi promovida a cabo em 2022. Consciente da escolha que fez, a policial acredita que o pai aprovaria orgulhoso as escolhas da filha. “Eu tenho certeza de que ele ficaria feliz de ver que eu segui seus passos e, provavelmente, ele seria uma fonte na pesquisa, já que testemunhou a chegada da mulher às fileiras da Briosa”, afirmou.
E concluiu: “O trabalho foi uma forma de honrar a instituição e a influência do meu avô e de meu pai, mas, sobretudo, de reconhecer o legado não só das 35 pioneiras, mas também de todas as mulheres que, hoje, integram a PM/AL”.
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