Educação

Egressas da Ufal vencem Prêmio Lélia Gonzalez sobre Raça e Política

Por Assessoria 19/09/2022 10h42 - Atualizado em 19/09/2022 10h45
Egressas da Ufal vencem Prêmio Lélia Gonzalez sobre Raça e Política
Keren Fonseca e Hellen Christina, mestras em Antropologia, arrebataram o primeiro e o terceiro lugares, respectivamente na premiação - Foto: Assessoria

Incentivar a produção de pesquisas sobre desigualdades, identidades e discriminações raciais e sua expressão política no país. Esse é o mote do Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos sobre Raça e Política que, em sua segunda edição, premiou Keren Fonseca e Hellen Christina, duas mestras em Antropologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), com o primeiro e o terceiro lugares, respectivamente.

A premiação foi realizada de forma remota e durante a 33ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) e surpreendeu uma das vencedoras: é que Keren, no momento, não acompanhava a solenidade. “Eu estava estudando e me surpreendi com uma mensagem da Hellen me parabenizando. Agradeci e perguntei: ‘pelo quê? ’ e ela me contou. Fui em busca do vídeo da premiação e quando escutei que havia ganhado o prêmio em primeiro lugar fiquei muito emocionada, feliz e grata”, disse ela, entre risos.

Keren, que conquistou o primeiro lugar na premiação, apontou que Lélia Gonzalez, importante antropóloga brasileira, merece ser ainda mais conhecida e compor a bibliografia de planos de ensino do país e do mundo: “O Prêmio é um instrumento potente de incentivo a produção de conhecimento por pessoas negras, tendo como base a produção de Lélia. Uma das importâncias desse prêmio reside em reconhecer e homenagear essa grande pensadora.”

Por dentro das pesquisas vencedoras

Orientada por Fernanda Rechemberg e coorientada por Debora Allebrandt, a pesquisa de Keren, intitulada Negra Sí! Negra Soy! Os impactos do ativismo digital negro-feminista na autodefinição de mulheres negras, foi concluída no final de 2021 e analisou esse processo a partir de entrevistas semiestruturadas com mulheres negras de Maceió, que falaram sobre vivências e processos de autodefinição, ainda que não utilizem esse conceito.

Assim, a análise dos dados de campo permitiu classificar os impactos gerados pelo acesso a esse tipo de ativismo em quatro categorias: autoestima, relacionamentos, conhecimento e consciência crítica. Além destas categorias, as noções de afeto, amor, coletividade e ancestralidade também foram acionadas pelas interlocutoras.

“No contexto brasileiro, no qual imagens de controle e representações negativas acerca da negritude seguem sendo uma poderosa arma utilizada pelo racismo, o ativismo digital cumpre um papel fundamental, sobretudo para a educação e a construção de consciência crítica, que, por sua vez, leva à criação de autodefinições e a superação dessas imagens de controle, que são as da ‘mão-preta’, da ‘empregada doméstica’ e da ‘mulata’ e como eles atuaram na criação e perpetuação da imagem depreciada de mulheres negras, enquanto grupo social, no imaginário coletivo”, apontou.

Já o estudo de Hellen, Um deboche autoetnográfico: uma análise sobre redes de transição capilar em Viçosa-AL, orientado pela professora Débora Allebrandt, buscou compreender o fenômeno social da transição capilar em mulheres negras do referido município, investigando manifestações iniciais nas mídias sociais e como estas adentram o cotidiano e os processos de interação entre elas.

“Um dos maiores desafios apresentados nessa pesquisa não foi enveredar por aspectos da minha trajetória de vida, mas buscar construir uma narrativa enfrentando os desafios e dilemas em realizar metodologicamente uma autoetnografia, para que as descrições não se centralizassem apenas em minha vida. Como uma maneira de solucionar essas inquietações, utilizei a autodefinição do feminismo negro como método de pesquisa, que contribuiu para delimitar e compreender meus processos, intercalando com as narrativas das minhas interlocutoras”, explica Hellen no resumo do trabalho, concluído em 2020.

Para Allebrandt, ambas as dissertações têm qualidade teórica e empírica, são referência para estudantes e inspiração para novas antropólogas desenvolverem suas pesquisas. “O reconhecimento da produção dessas pesquisadoras é resultado dos investimentos em políticas como as cotas na universidade e pós-graduação que permitem que outros corpos e outras histórias sejam protagonistas de trabalhos de pesquisa. Cada uma delas tem uma trajetória riquíssima e de enfrentamento de muitos obstáculos apesar das ações afirmativas. Permanecer na universidade ainda é um desafio para muitos e muitas estudantes”, disse.

Contribuição e relevância

Segundo Keren, Lélia teve grande importância para sua dissertação, em especial, ao destacar que a escrita acadêmica não tem que ser complicada e inacessível: “Quando conheci Lélia Gonzalez fiquei completamente encantada e inspirada por sua produção e pensamentos. Ela utilizava uma linguagem coloquial em sua produção porque queria se comunicar de forma ampla e falar para e com gente negra, principalmente mulheres, que não estavam na academia”, relembrou.

Hellen, que classificou Lélia Gonzalez como uma das maiores intelectuais negras brasileiras, disse como a pesquisadora contribuiu em sua dissertação. “Utilizei da perspectiva teórica construída por ela para refletir sobre a realidade social investigada. Atualmente, considero o conceito de amefricanidade como fundamental para uma reflexão sobre a realidade das dinâmicas vivenciadas pelos afrodescendentes e povos originários no Brasil”, contou.

Para Fernanda Rechemberg, a premiação estimula produções originais de pesquisadoras e pesquisadores negros: “É muito significativo que esse prêmio seja concedido a pesquisadoras de uma universidade periférica, de um dos estados com os maiores índices de desigualdade social e de acesso à educação, em que as opressões raciais são tão doloridas e silenciosamente vivenciadas. É emocionante perceber como a experiência de vida dessas mulheres, em articulação com o campo acadêmico, produz um conhecimento original, contundente e de extrema sensibilidade e ressonância para muitas pessoas”, refletiu.

A força da ciência e da pesquisa alagoana

Em meio aos cortes anuais nos orçamentos de Ciência e Educação, fazer pesquisa se tornou um exercício de complexidade e, também, de resistência. Segundo Débora Allebrandt, o reconhecimento desses trabalhos serve como alerta para a importância de se investir nessas áreas e, consequentemente, nas ações afirmativas.

“Academicamente, para o programa de pós-graduação em Antropologia Social da Ufal, este reconhecimento do trabalho de nossas egressas reflete o empenho de formação de profissionais que temos dedicado neste programa desde sua criação em 2016. Como orientadora agradeço imensamente ter podido fazer parte e contribuir com a formação dessas antropólogas”, salientou.

Já segundo Rechemberg, a universidade precisa responder a um compromisso ético de formar pesquisadoras e pesquisadores que enfrentem temas sensíveis na sociedade.

“Estamos falando de pesquisas engajadas que tocam em pontos estruturais do racismo brasileiro – e globalizado – mas que tem expressões peculiares em Alagoas. São trabalhos fundamentais para nos ajudar na compreensão das expressões deste racismo cotidiano, e como ele se aprofunda na experiência corporificada de mulheres negras. Mas são também, trabalhos que falam de amor, conexões e afetos: nos dão esperança”, refletiu.

Para Hellen, mesmo com o que ela chama de ‘desmonte na educação’, é importante não desistir: “É insuportável não ter perspectiva, tentam tirar nosso direito de sonhar, não consigo pensar em outro processo tão desumanizante. É preciso sonhar com novas realidades possíveis. Sem uma educação básica e universitária com qualidade, eliminamos nossas perspectivas e restringimos os nossos sonhos. Repito, é preciso sonhar.”

A fala de Hellen foi reiterada por Keren: “O corte não é sentido apenas pelos alunos, mas por professores, servidores, enfim, todos que levam a educação a sério e fazem as universidades funcionarem mesmo com todos os obstáculos. Portanto, esse é um momento difícil para a educação, para a pesquisa e para a ciência no Brasil, mas também é um momento de luta e resistência, e sobretudo, momento de mudar esse cenário através da escolha consciente de melhores representes”, apontou a pesquisadora.

Sobre o Prêmio

Apesar da crescente politização das desigualdades e discriminações raciais, pesquisas focadas na interface entre raça e política ainda são raras e fragmentadas. Além disso, jovens pesquisadores(as) pretos(as) e pardos(as) que acessam a universidade, ainda enfrentam dificuldades para concluir, comunicar e/ou divulgar suas pesquisas e perspectivas, o que reforça um contexto de desidratação do sistema de apoio à pesquisa no país.

Foi a partir da inquietação em torno dessas situações que surgiu, em 2021, o Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos sobre Raça e Política, realizado pela Associação Brasileira de Ciência Política em parceria com o Nexo Políticas Públicas e o Instituto Ibirapitanga com apoio da Fundação Tide Setubal e da Open Society Foundations.

A premiação é dirigida aos mestrandos(as), doutorandos(as) e recém-doutores(as) dedicados à estudos sobre a temática que a nomeia e é entendida em perspectiva ampla, contemplando pontos como as reflexões sobre políticas públicas, eleições, partidos políticos, representação política, militância política, protestos, política externa, comunicação política, teoria política etc.