Cidades

A visão do SUS por um feirante

Cícero Vieira Sampaio conta um pouco da experiência como membro do Conselho Estadual de Saúde de Alagoas entre os anos de 2001 e 2004

Por Texto: Wellington Santos com Tribuna Independente 30/05/2020 10h56
A visão do SUS por um feirante
Reprodução - Foto: Assessoria
Cícero Vieira Sampaio, um brasileiro! Assim foi apresentado esse alagoano de 63 anos do município de Palmeira dos Índios, localizado no limite entre Agreste e Sertão do Estado nas “orelhas” de seu livro (obra escrita por Cícero há exatos 10 anos), nas palavras do então secretário do Gabinete Civil do Governo de Alagoas no ano de 2010, Álvaro Machado que, anos antes, havia sido o secretário da Saúde no Executivo alagoano e foi incentivador da obra do escritor. Na obra intitulada “O Olhar de um Conselheiro - Visão do Usuário sobre a Política de Saúde do Estado de Alagoas e do Município de Maceió”,  Cícero fez uma incursão para relatar sua experiência e o que viu quando foi membro do Conselho Estadual de Saúde de Alagoas entre os anos de 2001 e 2004. Para escrever o livro, além do incentivo de Machado, contou, à época, com apoio ainda de alguns poucos amigos. Dez anos depois desta obra, que teve uma distribuição de pouco mais de 1.500 exemplares, Cícero volta à carga na literatura para abordar, segundo ele, a experiência no conselho com um assunto mais delicado e de forma bem mais ácida: a questão da corrupção nos conselhos de saúde.  O segundo livro traz quase o mesmo título, porém, garante, bem mais aprofundado e com tema recorrente da corrupção no seio dos conselhos de saúde. Mas, além de sua experiência como um conselheiro de saúde, função que o fez motivar para escrever uma obra e preparar outra que se encontra no prelo sobre sua vivência, o que há de peculiar em Cícero Vieira Sampaio? Aos 63 anos bem vividos, Cícero chama atenção na sua empreitada de escritor por ser um homem de hábitos simples e um feirante. Essa é uma qualidade incomum, pelo menos em Alagoas - um Estado notadamente de milhões de analfabetos e milhares de semialfabetizados.  E para se aventurar no campo das letras novamente, Cícero, que cursou somente até o primeiro grau, conta com o apoio da jornalista Elza Amaral para relatar essa história nesta segunda edição. Religiosamente aos fins de semana, o escritor-feirante Cícero se dedica nas sextas, sábados e domingos a atender seus fregueses na feira livre do conjunto Village Campestre, na parte alta de Maceió, a profissão com a qual ganha o pão de cada dia. Sobre a segunda obra que deve ser lançada até o fim do próximo ano, Cícero adianta: “Estou dedicando um capítulo especial sobre o controle social e a corrupção nos conselhos de saúde, pois não me detive sobre essa temática na obra anterior e agora, nesta próxima edição, eu aprofundo isso”, promete contar o feirante-escritor na obra em curso. A propósito do assunto, inclusive, recentemente o Ministério Público do Estado do Amazonas investigou conselhos de saúde por indícios de corrupção e pagamento de “mensalinhos”. Isso porque, numa Ação Civil, o MP amazonense quer acabar com o esquema de controle estadual e municipal que se perpetua há pelo menos 11 anos por aquelas bandas. Esse caso foi denunciado em 2016. O suposto esquema de controle dos conselhos Estadual e Municipal de Saúde se daria por parte de um grupo de conselheiros com indícios de omissão decorrente de atos de corrupção e pagamento de “mensalinho” para seus membros, além da existência de contratos realizados com empresas pertencentes a conselheiros em nome de “laranjas”. Feira do Village Campestre é o ganha-pão de Cícero [caption id="attachment_378685" align="aligncenter" width="1200"] Aos fins de semana, o escritor-feirante Cícero se dedica a atender seus fregueses (Foto: Wilson Barros)[/caption] Mas para quem não quiser esperar até o início do próximo ano pelo segundo livro de Cícero para saber detalhes sobre sua incursão no mundo dos conselhos de saúde em Alagoas, pode se aventurar e ir até a feira livre do conjunto Village Campestre em meio ao cheiro acre, ativo, penetrante dos produtos misturados na feirinha e conversar com o escritor. Vendedor de batata, feijão verde, milho, coco, macaxeira, entre outros produtos, este escritor e feirante mora no bairro da Cidade Universitária e religiosamente se encontra nos fins de semana comercializando na feira livre do conjunto Village Campestre. Foi assim que o jornalista Wilson Barros, diagramador do Jornal Tribuna Independente, conheceu o feirante e fez a sugestão da pauta. “Achei interessante a história do ‘seu Cícero’ e sugeri contar um pouco da história dele de feirante, escritor e de conselheiro”, disse Barros. E a história de Cícero, como a de milhões de brasileiros, não foi nada fácil. Filho de agricultor e natural da zona rural de Palmeira dos Índios, o escritor é separado e pai de dois filhos. Chegou a trabalhar no interior de São Paulo, onde ficou entre os anos de 1977 e 1986. “Em 86, consegui me mudar para Maceió e fui morar na casa do meu cunhado. Poucos meses depois, consegui fixar residência numa comunidade conhecida como Aldeia do Índio, onde permaneci até o ano de 2004”, conta o escritor. Localizada no bairro do Jacintinho, a Aldeia do Índio ainda é uma comunidade na periferia e segue bastante marginalizada em Maceió, que sofre com a falta de infraestrutura e de necessidades básicas na capital alagoana. Por lá, bastante comunicativo e com a facilidade de fazer amizades, Cícero lembra que foi logo convidado para ingressar no movimento da Igreja Católica na comunidade, mas não fugiu à crucificação de alguns. “No movimento da igreja me destaquei e fui alvo de críticas, inveja e ciúmes, pois as pessoas achavam que eu queria tomar o lugar delas”, revela. Mas como um missionário, Cícero trabalhou por 18 anos na Aldeia do Índio e chegou a ser um dos fundadores e líder da Associação Comunitária dos Moradores da Aldeia do Índio (Ascomai)  para depois ser indicado ao Conselho Estadual de Saúde, por onde adquiriu uma longa experiência de vida e que o ajudou a ter uma visão politizada no trato da coisa pública em nível de gestão governamental na aplicação correta dos recursos públicos voltados à saúde. “Cheguei a levar muitos apelidos pejorativos como ‘puxa-saco’, idiota, chaleira e até prefeito. As pessoas perguntavam quanto eu ganhava e eu respondia que não recebia nada e diziam até que eu estava aprendendo a roubar”, relata em um dos capítulos do primeiro livro. Escritor viveu experiências para compor obra Além dos movimentos da igreja e participar da comunidade da Aldeia do Índio para resolver as demandas mais básicas da população, Cícero ingressou ainda no movimento comunitário liderado pela Federação das Associações Comunitárias dos Moradores de Maceió (Facom) e a Federação das Associações dos Moradores de Alagoas (Famoal). Já como conselheiro, rodou o Brasil e compartilhou de experiências que ampliaram sua visão de mundo nas políticas públicas de saúde. Foi então que Cícero passou a compreender a importância do que seria um órgão colegiado, deliberativo e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS) em cada esfera de governo que faz parte da estrutura das secretarias de saúde dos municípios, dos estados e do governo federal e a compartilhar com representantes do governo, dos usuários, dos profissionais de saúde e dos prestadores de serviços as propostas de melhoria na aplicação correta dos recursos. Uma delas foi o combate à corrupção e ao desperdício de recursos na saúde em encontro como a Reunião Ordinária do Pleno do Conselho Nacional de Saúde, em Brasília (DF), que debatia sobre a importância do fortalecimento de dispositivos de fiscalização, monitoramento e controle para promover a transparência dos gastos públicos.