Cidades

Cursos d’água em Alagoas têm presença de agrotóxicos

Substâncias químicas banidas foram encontradas nas águas do Velho Chico

Por Texto: Evellyn Pimentel e Lucas França com Tribuna Independente 24/08/2019 16h49
Cursos d’água em Alagoas têm presença de agrotóxicos
Reprodução - Foto: Assessoria
Como mostrado na primeira reportagem da série Agrotóxicos publicada na semana passada, o uso indiscriminado destes produtos resulta em graves efeitos. Na segunda reportagem, a Tribuna Independente traz com exclusividade os resultados de estudos em corpos hídricos do estado. As pesquisas identificaram a presença de agrotóxicos em cursos d´água como o Rio São Francisco e o Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM), inclusive com substâncias banidas em todo o mundo. As pesquisas vêm sendo capitaneadas pelo Centro de Ciências Agrárias (Ceca) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). O doutor em Biotecnologia e pós-doutor em Ciências Aquáticas Emerson Soares é quem coordena os estudos. Segundo ele, os agrotóxicos têm afetado as espécies, a água e até a saúde de agricultores alagoanos.  No entanto, é importante salientar que a presença de agrotóxicos não é a única responsável por todos os problemas ambientais encontrados nas regiões. “Nós fizemos ano passado uma Expedição no São Francisco sobre impacto ambiental, uso de agrotóxicos, pesticidas. Foram mais de 40 pesquisadores numa estação de pesquisa instalada em um grande barco, percorremos várias cidades. Verificamos a situação de peixes contaminados por agrotóxicos. Detectamos metais pesados, mercúrio, cadmio, chumbo, na água e no peixe. Isso é perigoso porque acumula no organismo. A gente viu diversos tipos de agrotóxicos, inclusive os que são proibidos no Brasil e banidos no mundo inteiro”. Testes detectam anomalias em peixes As condições observadas nos corpos hídricos são reproduzidas nos laboratórios do Ceca. Emerson Soares explica que os peixes testados demonstraram altos níveis de estresse, dificuldade para se alimentar e até passaram a nadar “errado” após serem expostos aos agrotóxicos. “Fazemos testes de toxicologia aqui no laboratório. Nós pegamos os animais colocamos nos aquários, pegamos os produtos usados na cana e no arroz e aplicamos as dosagens. Nós detectamos no peixe por meio das enzimas, se os níveis estão alto é porque esses animais estão submetidos a altos níveis de estresse. O animal não se alimenta, adquire a capacidade errática de nadar, ele fica confuso, se bate nas paredes do aquário, tudo isso a gente vê aqui e está acontecendo no meio ambiente também”. Lagoa Manguaba, que registrou três mortandades de peixes só este ano, tem sofrido com a poluição e os efeitos nocivos do uso de agrotóxicos sem controle (Foto: Sandro Lima) Para o pesquisador, a liberação de mais 290 agrotóxicos representa uma abertura ainda maior para o uso indiscriminado. “Já vi casos de usarem larvicida, carrapaticida de forma errônea. O problema disso é que quando se usa indiscriminadamente e sem controle acaba fortalecendo outros organismos. Você mata uns e outros se fortalecem. O que mais é perigoso quando vai para o ambiente aquático é o fator acumulador. Por exemplo, a gente observa que alguns dos produtos testados em laboratório, a eliminação de um produto usado uma vez leva 30, 60 ou até 150 dias. Todo defensivo tem sua capacidade de inibição. O que eu quero dizer é que o agrotóxico tem sua necessidade, mas que seja usado com controle, eu não tenho dúvidas que o aumento da autorização desses produtos pelo Governo Federal e agências vai trazer mais a frente para nós prejuízos. Agora com mais produtos na praça você vai dar aval para as pessoas se contaminarem e contaminarem o ambiente ainda mais”, comenta o pesquisador. O Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL), responsável pela fiscalização ambiental no estado e pelas liberações de licença para o comércio de agrotóxicos  foi procurado pela reportagem no dia 14 de agosto para comentar o assunto, mas até o fechamento desta edição não retornou os questionamentos. Mesmos problemas atingem lagoas e o Velho Chico Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) os agrotóxicos são a segunda maior causa de contaminação nos cursos d’água em todo o Brasil. Dos diversos tipos de agrotóxicos encontrados no trecho alagoano do Velho Chico três deles possuem classificação de alta a extrema toxicidade. “Agrotóxicos, pesticidas e contaminantes, é uma junção de coisas. Eu trabalho na Lagoa Mundaú-Manguaba e no Baixo São Francisco. Os mesmos problemas que eu encontro nas lagoas, encontro no Rio. Os mesmos problemas, claro em escalas diferenciadas, mas são os mesmos problemas. Está tudo detonado, não é brincadeira. Esse é um problema de saúde pública. Não estamos sendo alarmistas”, aponta o pesquisador. No Baixo São Francisco, por exemplo, os efeitos da presença de agrotóxicos das culturas de cana e arroz produzem efeitos preocupantes. “Fizemos uma expedição no ano passado nos municípios do baixo São Francisco e constatamos agricultores com problemas por contaminação pelo uso de agrotóxicos, inclusive problemas mentais. Encontramos problemas nos peixes, encontramos problemas afetando a reprodução dos peixes e afetando as células. Há uma destruição da célula, é isso que acontece. Chamamos de ensaio cometa... quando há o contato com os agrotóxicos e poluentes o núcleo da célula se rompe e essa célula não se reproduz mais. Isso acontece dentro do peixe. Os animais desenvolvem úlceras no fígado pelo contato com o poluente ”. Pesquisa comandada por Emerson Soares identificou altos níveis de estresse e doenças nos peixes do Baixo São Francisco (Foto: Edilson Omena) Apesar de não ser a única causa da contaminação nestes cursos d’água, o professor destaca que a presença de agrotóxicos é preponderante porque é cumulativa, isto é, não é eliminada nem do organismo do animal tampouco dos seres humanos. “A produção pesqueira em Alagoas gira em torno de 20 toneladas por ano. O complexo Mundaú-Manguaba é responsável de 1/3 dessa produção, com o sururu. Só que a Lagoa Mundaú tem metais pesados, esgoto doméstico, esgotos difusos, bactérias... As pessoas estão pegando o sururu, tirando da lagoa e fazendo o cozimento. O cozimento até mata as bactérias, mas não elimina metais pesados. Elimina bactéria, mas o poluente fica bioacumulando. Aí os problemas de câncer, de fígado que podem vir mais tarde a acontecer, podem ser decorrentes do consumo em grande quantidade e contínuo de produtos contaminados. É bom ficar claro que essa ação não é apenas decorrente de agrotóxicos, mas esse é um fator que é determinante”, detalha. Mortandade de peixes está também relacionada ao uso de agrotóxicos A Lagoa Manguaba registrou este ano três mortandades de peixes, a última ocorreu em junho. Amostras coletadas apontaram a presença de diversos tipos de poluentes, entre eles, presença de agrotóxicos utilizados nos cultivos de cana-de-açúcar, os chamados herbicidas. “Durante meses e até anos os poluentes vêm sendo depositados. A pessoa quando pulveriza uma plantação, quando desmata, o solo fica solto. Quando vem qualquer chuvinha, esses produtos que foram pulverizados são escoados para a lagoa. Isso vai ser levado para dentro da lagoa e vai para o fundo. Imagine que o Rio Paraíba do Meio e os outros que desaguam na lagoa cortam muitas cidades e recebem um aporte enorme de esgotos. A Lagoa Mundaú é um esgoto a céu aberto. Muitas cidades com plantações na beira do rio, quando vem a chuva, o produto lançado no solo vai para dentro do rio. Quando isso vai para o rio, vai se acumulando, descendo. Quando chega no final [Lagoa Manguaba], onde teve a mortandade, é uma região com pouca profundidade, de renovação rápida de água, mas com um depósito de sedimentos muito grande, ali é como um funil. Isso vai acumulando e quando vem uma chuva forte como nos últimos meses, além de carrear mais poluentes movimenta o que está no fundo e o sistema ultrapassa sua capacidade. Os peixes morrem porque se ultrapassou o limite de poluição que o sistema aguenta”, diz Emerson Soares. Lençóis freáticos podem estar contaminados Dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) do Ministério da Saúde, divulgados em abril deste ano, mostram que 25% das cidades brasileiras testadas têm água com presença de agrotóxicos. Em mais de 1.300 cidades foram encontrados 27 tipos de agrotóxicos, sendo 16 deles altamente tóxicos. Se os números assustam, não tê-los é ainda mais alarmante. Dos 5.570 municípios brasileiros, 2.931 não realizaram testes de agrotóxicos na água entre 2014 e 2017 [período da pesquisa]. Nenhum município alagoano foi incluído na pesquisa. A Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal) afirma que faz os testes de detecção de agrotóxicos. Segundo a Companhia, os testes realizados não identificaram presença acima dos limites dos métodos empregados. “A gente faz por amostragem, até hoje as águas do estado de Alagoas têm valores baixíssimos que até o próprio método não detecta. As águas se apresentam abaixo do limite de quantificação do método, abaixo do limite do método. Mostra que todas as águas servidas pela Casal estão com qualidade”, diz o gestor da área Alfredo Brechó. No entanto, não há política ou legislação no país que determine quantidades mínimas ou máximas de agrotóxicos presentes na água. E é a falta de informação atrelada à falta de políticas que geram um cenário nebuloso. Apesar de não haver dados ou estudos sobre o assunto no estado, o pesquisador Emerson Soares dá como certa a presença de agrotóxicos nos lençóis freáticos em Alagoas. “Contaminação, sem sombra de dúvida. Uma vez no solo os produtos vão se acumulando. Uma parte do que é lançado fica no solo, outra vai penetrando, e se vai colocando mais. É óbvio que se têm camadas de solo, rochas que vão filtrando. Mas num solo super acumulado, por anos e anos com o mesmo uso, com as mesmas substâncias, quem me garante que não está contaminando? Se existem evidências em todo o país que os agrotóxicos contaminam? São anos e anos sendo colocados os mesmo produtos, e mesmo com a filtragem de solo, essa substância pode chegar no lençol sim. Não tenho dúvida. Como pesquisador eu não tenho dados, mas não tenho dúvidas que pode ter chegado. Eu vi o estudo feito em várias cidades, que boa parte dos lençóis está contaminada. Não tenho dúvidas que os lençóis em Alagoas estão recebendo aportes e se fizerem um estudo mais efetivo, mais específico, com certeza vão encontrar níveis acima do tolerável nos aquíferos e nos lençóis”, acredita Soares. Segundo a Agência de Defesa e Inspeção Agropecuária de Alagoas (Adeal), as culturas que mais utilizam agrotóxicos são a cana-de-açúcar, pastagem e lavouras de hortaliças. O destaque para a cana-de-açúcar se dá pela predominância deste cultivo no estado. Pouco mais de 16% do território alagoano é de cultivo de cana-de-açúcar. Dos 102 municípios, 54 têm cultivo de cana. Segundo a Adeal, “a cultura da cana de açúcar é a principal responsável pelo consumo de agrotóxicos”. A tradição da agroindústria sucroenergética, a predominância do cultivo e a falta de fiscalização reforçam a preocupação dos efeitos da utilização dos defensivos. Daí surge o questionamento: Qual o impacto que a produção, que se confunde com a história do estado, vem causando no meio ambiente? Os dados disponibilizados pela entidade apontam para uma produção na safra 2018/2019 de 16,5 milhões de toneladas nas 14 usinas em atividade no período. Para a safra que se inicia este ano, a expectativa é de 18 milhões de toneladas. Cultivos de cana-de-açúcar representam 16% do território alagoano e são os maiores consumidores de agrotóxicos (Foto: Edilson Omena) O Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool em Alagoas (Sindaçúcar) não sabe precisar quais tipos de agrotóxicos são utilizados no estado, tampouco qual a quantidade estabelecida para esses cultivos. Mas conforme apurou a reportagem, o Relatório de Vigilância em Saúde 2018 do Ministério da Saúde explica que os herbicidas mais utilizados nos cultivos de cana-de- açúcar em todo o país são “metribuzin, diuron+hexazinone, diuron+hexazinon, isoxaflutole, clomazone, ametryne+clomazone e diuron+hexazinone”. A maioria deles com níveis moderados de toxicidade e “persistência ambiental”, isto é, tempo que levam para ser eliminados. Só para se ter uma ideia, os herbicidas, produtos mais empregados nos cultivos de cana-de-açúcar, precisam obedecer um período de carência. Alguns deles, levam até 150 dias para a eliminação. “A gente testou no laboratório um herbicida muito usado aqui. Pensávamos que ele teria resultados muito problemáticos, mas também trouxe efeitos muitos significativos para os animais. O que eu quero dizer é que todos esses compostos possuem moléculas que são difíceis para ser eliminadas. Então para onde vão os resíduos desses compostos? Num animal aquático vai para o fígado e causa sérios danos ao fígado. No caso das plantas vai para o solo, subsolo e consequentemente lençol freático, uma vez que a planta não tem condições de absorver tudo que é aplicado. Quem me garante que esse produto, uma vez que se acumula na própria água, não vai causar efeitos em quem se utiliza dela? Com certeza vai levar isso para dentro do seu organismo”, destaca Soares. O uso frequente, e muitas vezes incorreto, de agrotóxicos pode oferecer ameaça de contaminação das águas superficiais e subterrâneas. “Chamam de defensivos agrícolas, mas são larvicidas, carrapaticidas, herbicidas, muitos outros produtos sendo utilizados para pragas. Usam muitos produtos para matar pássaros para não atacar as plantações, e até contaminar o ambiente aquático o meio ambiente, o solo já está contaminado. Uma vez o ecossistema contaminado vai se gastar muito mais para recuperar, é um problema ambiental e de saúde pública. Eu não sou totalmente contra. O defensivo agrícola utilizado com controle, eficácia, respeitando o momento correto, a dosagem e tendo fiscalização é o que seria ideal. Nenhum país do mundo vive sem defensivo agrícola. O problema é que, se alguém perguntar quais os defensivos usados em Alagoas, ninguém sabe responder. Não se tem controle”, destaca Soares. Para o pesquisador, é preciso que o problema seja tratado no estágio inicial: monitoramento e fiscalização. Um primeiro passo, segundo ele, será dado este mês, numa audiência pública no próximo dia 30 de agosto na Assembleia Legislativa de Alagoas (ALE) para discutir a situação da contaminação nas lagoas. “Em toda a discussão que a gente procura fazer, seja com o Ministério Público, autoridades, na academia não resta dúvida de que o que precisa ser feito em Alagoas é um programa de monitoramento dos corpos hídricos. Além disso, de controle e uso do solo, porque não pode ser separado, não adianta monitorar os corpos hídricos, encontrar o problema, a solução, se o solo está todo contaminado. Se não há trabalho nisso, como vamos resolver o problema? É como enxugar gelo. O nome do estado é Alagoas, são 30 lagoas em todo o estado e a situação é de total descaso, é um absurdo”, critica Soares.