Cidades

O homem que transformou o Sertão em chão de estrelas

Construtor bem-sucedido nos anos 60, 70 e 80, empresário alagoano marcou era tornando-se o primeiro promotor de eventos do Estado a levar artistas do primeiro time da MPB e celebridades para o Sertão

Por Wellington Santos com Tribuna Independente 31/12/2018 12h43
O homem que transformou o Sertão em chão de estrelas
Reprodução - Foto: Assessoria
Para muitos ele foi um mecenas, para outros, um empresário bem-sucedido da construção civil que adorava festas e ver o povo de seu sertão feliz. Ele tornou-se o que se chama atualmente no show business de o primeiro promoter de entretenimento de alagoas. Já para os mais íntimos, ele apenas estava concretizando um sonho alimentado ainda quando jovem pobre que, ao chegar à cidade grande, como pedreiro, observava bem de perto os grandes ídolos do cancioneiro popular entrarem e saírem da lendária Rádio Nacional do Rio de Janeiro (e que não davam lá grande bola ou não achavam grande coisa daquele homem simples, meio cabecinha chata, típico do Nordeste). Mas o certo é que este homem simples do sertão, oriundo de um povoado paupérrimo na longínqua Olho D’Água do Casado, dizia para si mesmo que um dia iria chegar lá, vencer na vida e colocar aqueles ídolos a seus pés. E chegou! Em meados dos anos 1950, pegou um pau de arara e, recém-casado, fez o destino que muitos nordestinos faziam naqueles anos difíceis. Por lá ficou 12 anos até retornar ao seu rincão querido para concretizar seus sonhos de menino e rapaz. Essa é um pouco da saga do industrial e empresário da construção civil Francisco Martins de oliveira, conhecido por todos os recantos do sertão alagoano como “Chico Doutor”, e cuja história a Tribuna Independente e o portal Tribuna Hoje traz à baila. [caption id="attachment_269760" align="alignright" width="200"] Chico Doutor nos tempos de vacas magras no Rio de Janeiro, no fim dos anos 1950 (Foto: Acervo de família)[/caption] À custa de muito suor e perseverança, Chico Doutor tornou-se proprietário da ental-engenharia terraplanagem alagoana, uma potência da construção civil em todo estado de Alagoas. Com elas, desbravou obras na hidrelétrica de Paulo Afonso e rodovias construídas em todos os quadrantes do estado a perder de vista. Era popular pelas festas que fazia em sua propriedade na fazenda “Flor-da-Serra” ou na “Casa da Piscina”, mansão com 10 suítes que comportava duas piscinas, uma delas semiolímpica e que serviu de palco para a apresentação de vários artistas da música popular brasileira de quem se tornou amigo, como Ângela Maria, Miltinho, Adriana, Agnaldo Timóteo, o grupo Casa das Máquinas, o rei Luiz Gonzaga, além do jogador Mané Garrincha, e o seresteiro Altemar Dutra. A este último, reservamos um capítulo todo especial nesta reportagem, uma vez que Altemar Dutra tornou-se amigo pessoal de Chico Doutor e a quem a Tribuna faz um recorte especial. O prestígio de Chico Doutor nas bandas do sertão o fez ser o cicerone oficial de ninguém menos que o rei da música popular brasileira, Roberto Carlos, quando este se apresentou na região. Embora Roberto não tivesse desfrutado de uma relação mais próxima como os outros artistas, a ponto de frequentar suas fazendas e a famosa chácara que tinha em Delmiro Gouveia para acolher os amigos famosos, Chico foi escalado para receber oficialmente o rei em 1973. “O Roberto foi fazer um show no clube dos engenheiros da Chesf, mas foi o Chico Doutor o encarregado de buscá-lo no aeroporto e dar toda assistência no hotel”, conta o vereador Júnior Lisboa, 55 anos, que à época era uma criança e muito amigo de um dos filhos do empresário. Das inesquecíveis noitadas em suas propriedades também tiveram estreita relação com o festeiro Chico Doutor, políticos importantes e influentes como os ex-governadores Divaldo Suruagy, Guilherme Palmeira e o ex-prefeito de Maceió José Bandeira. O empresário, após promover grandes festas em sua propriedade com esses artistas, onde acreditava fechar os melhores negócios para Delmiro e para o sertão em geral, oferecia shows gratuitos pelas praças do município. Não tinha pretensões políticas, apesar dos grandes empreendimentos que fixou em Delmiro, Piranhas, Paulo Afonso e Alagoas afora. Deixou seis filhos, quatorze netos e sua viúva dona Lenita Martins de oliveira, popular pela generosidade e pela entrega de doces no dia de “Cosme e Damião”, uma tradição carioca, iniciada quando ainda moravam no bairro de Bangu, no Rio de Janeiro. Chico Doutor morreu em 2001, na Santa Casa de Misericórdia, em Maceió, por complicações no pâncreas. O certo é que naquele sertão árido e pobre dos anos 1950, 1960, 1970 e 1980, Chico Doutor reinou absoluto. E a promessa que fez para si mesmo, cumpriu. Bem-vindo à “estrada” construída pela vida por Chico Doutor! [caption id="attachment_269761" align="aligncenter" width="640"] O poderoso Chico Doutor (ao centro), dono da construtora Ental, tendo a sua direita o maior seresteiro do Brasil Altemar Dutra, que se tornaria um dos grandes amigos do sertanejo[/caption]   Assim como o sertanejo, Chico foi, antes de tudo, um forte   Foi neste recanto do Sertão encravado no extremo oeste de Alagoas, na divisa com Bahia, Pernambuco e Sergipe, em pleno Polígono das Secas, no município de Delmiro Gouveia (a cidade), que Chico Doutor cresceu, mas não foi fácil. “Ele perdeu o pai quando tinha apenas três anos de idade. Imagine a barra de um sujeito nascer no Sertão, família grande e ainda perder o homem que sustentava a casa”, diz a filha mais velha de Chico, Fátima Martins Lisboa. [caption id="attachment_269762" align="aligncenter" width="640"] Chico Doutor, festeiro inveterado, fazendo pose com um violão rodeado de amigos caboclos sertanejos e uma ilustre companhia bem à vontade, sem camisa: Altemar Dutra, naqueles dias inesquecíveis em Piranhas[/caption] Onde Chico Doutor crescera no início dos anos 1930, a economia da cidade de pouco mais de 20 mil habitantes à época, distante 290 quilômetros da capital Maceió, se baseava na indústria têxtil, no comércio, na agricultura e na pecuária.  Desde aquele tempo que o bode e o peixe tucunaré são as principais delícias da culinária local, mas o extrativismo para a produção de carvão vegetal e lenha também deixaram marcas na caatinga. Mas a Delmiro do início do século passado, onde Chico se criou, era um lugarejo cercado por grandes rochas, com escassas casinhas de taipa, cobertas com folhas de sapé, paredes de pau a pique e chão de terra batida, construídas nas proximidades de uma pequena estação ferroviária da Great Western, que dera origem ao povoado. A água vinha de longe e chegava no trem semanal, por isso, o banho era um luxo reservado a datas especiais e, mesmo assim, quando sobrava água. As pessoas viviam descalças e usavam as mãos no lugar de talheres. Quase comparável à beira do fim do mundo que Delmiro Augusto da Cruz Gouveia – um empreendedor atrevido, visionário e excêntrico – protagonizou a saga empresarial de construção da primeira hidrelétrica no semiárido brasileiro, aproveitando as águas do São Francisco. A hidrelétrica gerou energia que movimentou os teares da primeira fábrica de linhas de coser do País, produzidas por operários que receberam benefícios inimagináveis para a época, como pagamento semanal, educação para os filhos e assistência médica. Inquieto, jovem, Chico deixou sem medo tudo, se jogou na vida e se mandou para o Rio de Janeiro para tentar uma vida melhor. Não demorou muito, algum tempo depois, lá estava empreendendo para comandar uma grande construtora que deixou sua marca por toda Alagoas, abrindo caminhos ao progresso.  O construtor cresceu e abriu estradas  — as mais famosas são a rodovia que dá nome ao seu grande amigo Altermar Dutra, que liga Piranhas a Olho d’Água do Casado — e tantas outras, até na capital alagoana. Trabalhou com muitas obras do DER, Estado afora, com os ex-governadores como Divaldo Suruagy, Guilherme Palmeira, além do ex-prefeito José Bandeira. Trovador do Brasil encontra no Sertão pouso eterno e descanso   [caption id="attachment_269763" align="aligncenter" width="640"] Altemar Dutra (à esq.) segura peixe no São Francisco, enquanto Chico Doutor (à dir. de óculos) segura outra espécie: amigos para sempre em quase duas décadas de convivência e aventuras no Sertão de Alagoas (Foto: Arquivo de família)[/caption] Chico Doutor foi morar no Rio de Janeiro, em lugar muito quente que lembrava — guardadas as devidas proporções — seu Sertão: um bairro chamado Bangu. Por lá, conheceu o lendário e velho bicheiro Castor de Andrade.  Não à toa, passou a torcer fervorosamente pelo Bangu, de onde também foi diretor. No Rio, via os artistas da Rádio Nacional e conheceu muitos daqueles que um dia iria receber na sua terra e na sua famosa chácara, em Delmiro Gouveia. Mas foi com o “Trovador” brasileiro, o seresteiro Altemar Dutra, que Chico Doutor fez amizade de irmão. A amizade entre os dois era tão forte que Chico Doutor fez uma casa onde Altemar passou acampar com frequência,  na famosa Ilha do Cidadão, em Piranhas. “O Altemar via meu pai como se fosse um repouso, descanso pra alma. Ele não queria saber de ganhar dinheiro, queria descansar, se sentia protegido”, completa a filha de Chico, Fátima Martins. “Altemar foi o visitante mais presente na chácara de meu pai. Era comum a gente ainda criança e adolescente ver a seguinte cena. ‘Ele ficava embaixo de um umbuzeiro, pegava o violão e cantava, acompanhado de uma cachacinha”, lembra Fátima. E assim se fez uma amizade que  perdurou por 20 anos com o maior seresteiro do Brasil. ARTISTAS “Papai fez todo contato com Roberto Carlos quando ele veio fazer um show em Paulo Afonso. Como anfitrião, foi receber Roberto no aeroporto, levou para o show, jantou no hotel e tudo mais. Mas todos os outros artistas se hospedaram lá em casa. O Luiz Gonzaga, por exemplo, era muito educado, simples, poucas palavras, muito sério, mas muito educado”. O conjunto Casa das Máquinas, muito famoso nos anos 1970, também se hospedou na Casa de Chico Doutor e fez show patrocinado pelo empresário alagoano, assim como o conjunto musical Renato & Seus Blue Caps, que também tocou em Delmiro, tudo custeado por Chico. O cantor Miltinho era outro habitué em Delmiro. “A Angela Maria tomou umas cervejinhas com ele e era muito simples. O forrozeiro Jorge de Altinho também era um visitante frequente na casa de Chico. Dois craques: Anjo das Pernas Tortas cai no ninho do Chico   O craque mambembe, aquele que já foi o maior ponta-direita que o mundo testemunhara, um dia jogou no Alto Sertão de Alagoas, numa certa Delmiro Gouveia. E ali se fez o que escreveu certa vez o jornalista Geraldo Mayrink, em um artigo intitulado ‘A vida torta de Mané Garrincha’. Um dos trechos diz: “Foi, portanto, com alguma tristeza, mas sem nenhuma surpresa, que correu pela Itália e depois pelo Brasil a notícia de que o maior ponta-direita do mundo estava jogando de camiseta vermelha e calção branco, com um time de amadores formado de açougueiros num campeonato reunindo trabalhadores de bar, mecânicos e operários do lugar”, vaticinara o jornalista. [caption id="attachment_269764" align="alignleft" width="200"] Altermar Dutra ao chegar com seu avião particular para mais uma de suas andanças por Delmiro Gouveia e Piranhas[/caption] “Eu faço isso”, dizia Garrincha na época, “para me divertir e me manter em forma.” Aqui não posso nem correr, que quebro o pé. O campo é cheio de pedras e buracos”. E tal como a descrição acima, Mané, um primitivo, um matuto, meio índio, meio selvagem, criado num submundo de miséria e ignorância, um lugar atrasado onde nem o trem parava, foi um dia no ano de 1973 jogar no campo localizado na chácara do empresário “Chico Doutor”. O campo hoje em dia  pouco lembra as épocas áureas em que o empresário delmirense recebia artistas do primeiro time. Foi lá na propriedade que atualmente tem um quê de abandono que o industrial da construção civil acolheu e recebeu de braços abertos o craque das pernas tortas. E Delmiro — embora muito mais desenvolvida do que Pau Grande (RJ), a terra natal de Garrincha -, tinha sim alguma coisa muito parecida com a tal de Pau Grande.  Segundo Mayrink,  “Pau Grande não tinha cinema, nem cartório, nem mais nada. Quase tudo – terrenos, empregos, pessoas – pertence à fábrica América Fabril, uma tecelagem que hoje, mal se recuperando de uma concordata, não consegue reempregar todos os seus antigos funcionários”. [caption id="attachment_269765" align="alignright" width="200"] Nem só de ídolos da MPB foi cercado Chico Doutor. O ex-craque da seleção brasileira Garrincha também frequentou a casa do famoso anfitrião sertanejo que aqui aparece acompanhado do filho Marcelo[/caption] Por coincidência, ou não, Delmiro também já teve sua fábrica, a Fábrica da Pedra, onde lá também existiam tecelãs e que já fora o maior conglomerado econômico de toda a região do Alto Sertão do quarteto Alagoas, Pernambuco, Sergipe e Bahia. Edson Martins de Oliveira, 62 anos, filho de Chico Doutor, conta o que lembra  da passagem de Garrincha pela chácara de seu pai. “Ele era meio caladão. Quando falava dizia que não gostava de concentração e gostava de beber”. Edson recorda ainda de uma encomenda que Garrincha confiara a seu pai. “Ele gostava muito de passarinhos e meu pai comprou um curió lá de Atalaia para ele. Foram oito dias com papai e tudo bem tranquilo”, recorda Edson. O filho de Chico Doutor lembra ainda de outro episódio ligado à ida de Garrincha ao Sertão, na época. “Depois de jogar em Delmiro, Garrincha também fez uma apresentação em Paulo Afonso. Deram um tombo nele e se formou uma pequena confusão e disseram para o zagueiro durão que aquilo era só um jogo de exibição”, completa Edson. Amigos de fé... Irmãos camaradas   Rosalvo Machado Freitas, 89 anos, foi, além de amigo de fé e irmão camarada de Chico Doutor, um dos principais amigos do cantor Altemar Dutra e com quem o seresteiro se encontrou inúmeras vezes, depois de ter sido apresentado pelo amigo Chico. Altemar aportou na casa de Rosalvo e se apaixonou, feito poeta-trovador, por uma linda e bucólica Piranhas, município do Sertão encravado entre montanhas e às margens do Rio São Francisco. [caption id="attachment_269766" align="aligncenter" width="640"] Rosalvo Freitas junto à estátua em homenagem ao amigo inesquecível de grandes histórias e noitadas de seresta, na linda e bucólica Piranhas[/caption] Sobre o primeiro amigo, Rosalvo diz: “Foi um dos maiores que já tive na vida. Um cara que você podia confiar e quando a gente precisava de qualquer negócio ele trazia espontaneamente”, relata. “Quando Chico foi para o Rio, lembro-me de que foi até meu sogro, que era agente da rede ferroviária, e este lhe deu uma passagem para ir até Petrolândia, em Pernambuco, e de lá ele para o Rio de Janeiro. Lá cresceu na vida, montou uma construtora e aí transferiu o maquinário pra cá”, lembra Rosalvo. CHICO, ENGENHEIRO QUE NADA! Ainda sobre o amigo Chico Doutor, Rosalvo relembra um diálogo que diz ter testemunhado. “Uma vez um funcionário engenheiro dele perguntou: ‘Seu Francisco, o senhor, um homem inteligente desse jeito, por que nunca estudou? Ele respondeu: ‘Ué, pra mim isso não faz a menor diferença. Você tem formação, estudou, é engenheiro, e trabalha pra mim’”. [caption id="attachment_269767" align="aligncenter" width="640"] Altemar Dutra cercado por fãs em Piranhas nos anos 1970: carinho especial ao povo da terra que o seresteiro amou[/caption] Nas idas e vindas de Altemar a Piranhas, o cantor deixou uma lembrança: um violão que depois virou posse de um amigo de Rosalvo, já falecido. [caption id="attachment_269768" align="aligncenter" width="427"] Dedicatória do cantor ao casal que o acolheu por mais de dez anos nas suas idas a Piranhas[/caption] Já em relação ao seresteiro trovador do Brasil, com quem desfrutou de uma amizade fraternal, Rosalvo destaca: “Foram dez anos de convivência. A música que sempre cantava era uma que dizia ‘eu sei que vou partir, mas volto um dia”, conta. Criado no Sertão sergipano, agricultor, Rosalvo ingressou no serviço público como auditor fiscal no início dos anos 1950. Em 1955, foi morar no município de Canindé de São Francisco, em Sergipe. Em 1956, já do lado alagoano, em Piranhas, conheceu a já falecida esposa Cacilda Damasceno Freitas. Logo em seguida, conheceu aquele que passaria a ser um amigo do peito, o  amigo do sogro, Francisco Martins de Oliveira, o Chico Doutor. “Chico vivia no Rio de Janeiro, gostava de seresta e depois se transferiu com sua construtora para trabalhar na hidrelétrica de Paulo Afonso, aqui no Sertão.  Foi através dele que conheci Altemar. A amizade foi tão grande que, às vezes, chegava por aqui depois de um show e dizia: ‘olha, Rosalvo, nem jantei ainda, quero saber se posso baixar por aqui”, lembra o auditor fiscal aposentado. O vínculo foi tão forte que Altemar virou uma espécie de divulgador oficial de Piranhas e da casa de Rosalvo para outros artistas que faziam shows pelo Sertão. “Eles sempre davam uma passada para tomar aquele uísque”. E não foram poucos os integrantes da verdadeira constelação do primeiro e segundo time da MPB que passaram por Piranhas e pela casa de Rosalvo indicados por Altemar: Miltinho, Adriana, Odair José, Nelson Ned, Luiz Gonzaga, Claudia Barroso, Agnaldo Timóteo, Agnaldo Rayol, Baltazar, Lindomar Castilho e o sambista Luís Américo. Todos eles deixaram suas dedicatórias reproduzidas  muitos anos mais tarde no  livro sobre a vida e a esposa falecida de Rosalvo, Cacilda, escrito pela neta Mellina Freitas. Aventuras do seresteiro que virou pescador   Rosalvo conta que, certa vez, um pescador andava à beira do Rio São Francisco e Altemar pegou o peixe das mãos do pescador e botou nas costas. “Entrou com o peixão na feira e todo mundo ficou admirado com o Altemar com aquele peixe grande nas costas, todo mostrado. Era um surubim e o povo dizia: ‘a sorte é pra quem é e não pra quem quer... A gente luta tanto para pescar um bicho desses e não consegue aí vem um cantor famoso pega, num instante, e ainda desfila. Eu e o pessoal caímos na gargalhada’”, relembra. Incentivado pelo amigo Altemar, o cantor Agnaldo Timóteo também baixou pela casa de Rosalvo. “Rapaz, lembro que o Agnaldo (Timóteo) ficou doido para ver o jogo do Botafogo na TV. O problema é que o sinal tava muito ruim. Mas demos um jeito e depois de toda trabalheira para arrumarmos a bendita TV, o Botafogo do Agnaldo terminou perdendo e ele ficou muito puto”. Rosalvo conta que Altemar tinha mania de não atender aos pedidos dos fãs nas famosas canjas.  “Aí eu perguntei: ‘Ô Altemar, você tem uma mania danada, nunca atende os pedidos das pessoas. Aí ele me disse - não rapaz, é que eu já tenho minhas canções programadas e tal”, explicou o cantor. “Mas houve uma exceção de um pedido de uma senhora lá de Canindé do São Francisco. Ela pediu a música Velho, Meu Querido Velho, e ele atendeu e todo mundo ficou surpreso”.  A DESPEDIDA “Lembro-me de que ele tinha agendado dois shows: um em Arapiraca e outro em Propriá, em Sergipe. Ele ficou hospedado aqui antes de ir para esses dois compromissos e demorou um pouco mais que das outras vezes. E eu disse: “Altemar, você tem dois shows para fazer rapaz, porque não se apressa? Era cumpridor dos deveres. Começou a cantar e se empolgou, bebendo, e demorou mais e mais... Aí ele começou a cantar a canção: ‘Eu sei que vou partir, mas voltarei uma dia... Terminou de cantar, eu vi lágrimas descendo e me deu um abraço forte. Foi a última vez que a gente se falou. Alguns meses depois eu soube da notícia que ele tinha falecido em um show em Nova Iorque”. Sobre a música do amigo seresteiro de que mais gosta, Rosalvo revela: “Eu sou fã de todas as músicas do Altemar, mas eu gosto muito da ‘Que será’”. Sentimental demais...   [caption id="attachment_269769" align="aligncenter" width="640"] Os primos Ednaldo Pereira e o violinista Gilberto Pereira são os autores da seresta que entrou para o calendário de Piranhas[/caption] Foram muitas as noitadas na casa de Rosalvo com o maior trovador do Brasil. Sobre essa amizade, a equipe da Tribuna Independente testemunhou a surpresa que dois primos seresteiros da nova geração de Piranhas Gilberto Pereira e Ednaldo Pereira prepararam para Rosalvo, numa cantoria que terminou na estátua do seresteiro, no Centro Histórico de Piranhas. Eles e mais um outro irmão promoveram uma homenagem a Altemar Dutra, no dia 9 de novembro, data da morte de Altemar em 1983, com uma seresta ao vivo bastante prestigiada pelo público frequentador dos bares do Centro Histórico. A ideia ganhou corpo e já foi oficializada pela prefeitura como parte do calendário de eventos para homenagear Altemar Dutra. “Eu fui influenciado por meu pai, o Manu, que tinha uma voz muito forte que eu nem chego perto. E ele era fã número um do Altemar. Meu pai frequentou muito a casa de seu Rosalvo”, conta Ednaldo Pereira, o seresteiro de voz de tenor. O violinista Gilberto Pereira foi o autor da ideia da homenagem a Altemar Dutra. O resultado foi lotação completa perto da beira do rio onde está localizada a estátua que homenageia Altemar. O secretário de Cultura e Turismo,  Fábio Henrique, destaca o vínculo entre Altemar e Piranhas. “O Chico Doutor era o que a gente poderia chamar hoje de grande empresário e promotor de eventos, tanto aqui, onde ele tinha um grande carinho, como em Delmiro e foi ele quem apresentou Piranhas para essas pessoas e artistas como Altemar Dutra”, diz. “O Altemar fazia o seguinte, tinha uma amizade muito grande com os pescadores daqui. E dizia: vocês pescam e eu toco e chegou a batizar algumas ilhas de areias e gostava de tomar uma cachacinha e montila com laranja”, completa o secretário. O TROVADOR Altemar Dutra nasceu no município de Aymorés (MG) no dia 6 de outubro de 1940. Em 1964, gravou com grande sucesso Que queres tu de mim, O Trovador, Sentimental Demais e Somos Iguais (todas de Evaldo Gouveia e Jair Amorim). Destacou-se também na América Latina, fazendo apresentações em vários países e gravando um LP com Lucho Gatica: El bolero se canta así. Com suas versões em espanhol, chegou a vender mais de 500 mil cópias na América Latina. Depois de ter dominado as paradas de sucesso locais, a partir de 1969 passou a conquistar fãs de origem latina nos Estados Unidos. Em pouco tempo tornou-se um dos mais populares cantores estrangeiros nos Estados Unidos. Apresentava um show para a comunidade latino-americana, no clube noturno “El Continente”, em Nova Iorque, quando faleceu aos 43 anos, de derrame cerebral. Foi casado com a cantora Marta Mendonça, tendo dois filhos, Deusa Dutra e Altemar Dutra Júnior, este também a seguir carreira artística. Chico, a família, sonho e  o legado   O primeiro grande promoter de Alagoas e de todo o Sertão alagoano era festeiro, alegre e realizou seu grande sonho. Quem garante  é a filha mais velha dos filhos de Chico Doutor, Maria de Fátima Martins Lisboa, que relata um pouco das lembranças do pai. “Meu pai foi um futurista, um homem à frente de seu tempo e eu não conheci um homem que tenha sido tão feliz quanto ele. Foi feliz porque tudo que almejou, conseguiu”, atesta Fátima. [caption id="attachment_269771" align="aligncenter" width="640"] Fátima, dona Lenita e Edson, parte da família de Chico Doutor reunida: muitas lembranças e saudades[/caption] Fátima conta que o pai nasceu na grande seca de 1932, perto de Olho D’Água do Casado. “Pobre, perdeu todas as terras, mataram o pai dele. Ainda aqui no Sertão, foi servente de pedreiro logo quando começaram a construção de Paulo Afonso (a usina hidrelétrica). Lá no Rio (de Janeiro), trabalhando de pedreiro na Rádio Nacional, ele via aquele povo todo. Via Ângela Maria entrar pra lá pra cá, mas ninguém dava muito valor a ele. Mas a determinação era tanta para conseguir realizar o sonho de um dia conviver com os artistas que ele ouvia pelo rádio  que conseguiu depois receber muitos desses artistas na sua própria casa”, diz Fátima. “Ele botou duas coisas na cabeça: um dia esse pessoal vai conhecê-lo e a outra é que ele iria comprar todas as terras que eram do pai dele”, completa a filha mais velha. Nesse meio tempo, no Rio de Janeiro, Chico Doutor, de pedreiro, passou a mestre de obras até ser convidado para ser sócio minoritário da firma onde trabalhava, a Gerbara. “Uma coisa que me emociona é que, certa vez, ele decidiu levar todo mundo para tomar sorvete já trabalhando nesta firma”, lembra a filha. E eis que a vida de Chico e de toda a família deu, de fato, uma guinada. “Quando papai veio do Rio passar umas férias por aqui no Sertão, teve uma conversa com seu Pedro Ferreira, o dono do pedaço na construção por essas bandas, naquela época. Ele foi o responsável por construir o canal de Paulo Afonso. Daí quando papai decidiu vir de vez, trouxe dez caminhões e todo maquinário e alugou tudo à Chesf e cresceu como empresário”, destaca Fátima. Um ilustre desconhecido para as novas gerações do Sertão   Uma das queixas de Fátima é de que o município de Delmiro Gouveia ainda não deu o devido reconhecimento a seu pai, que tanta alegria e estradas levou para o rincão sofrido. “A grande maioria dessa juventude nunca ouviu falar de papai e o que ele trouxe de alegria e festa para cá, tudo gratuito, bancado por ele”, ressalta. Mas parte dessa queixa pôde ser  diminuída com o anúncio do vereador Junior Lisboa, 53 anos, que revelou à Tribuna Independente ter criado Projeto de Lei para homenagear o estádio de futebol com o nome de  Chico Doutor, o mesmo estádio que Chico levou o craque Garrincha para um jogo-exibição em 1973. Júnior se emociona ao lembrar do amigo Marcelo, filho caçula de Chico Doutor, que morreu em um acidente automobilístico. “A gente se divertiu muito naquela época de criança e eu lembro de muitos artistas na casa de seu Chico”, diz Júnior. “Meu pai era tão trabalhador que não admitia nem se aposentar. Tanto é que morreu trabalhando, tomando conta de obras”, recorda Fátima. O filho de Chico Edson Martins de Oliveira completa. “Tudo que ele não teve com o pai e que perdeu muito cedo, ele deu para a gente”, diz o irmão de Fátima. “Meu pai chegou a  ter 17 propriedades”, completa Edson. Já dona Lenita Martins de Oliveira, a viúva de Chico, também recorda: “Saímos daqui em um caminhão pau de arara para o Rio de Janeiro e eu fui na boleia, como uma dama”, brinca dona Lenita. “Na firma onde trabalhava, ele passou a ser sócio e daí começou a conquistar as coisas. O dinheiro serviu como entrada nas máquinas para depois entrar em Paulo Afonso”, conta Lenita. Sobre os artistas que recebeu em casa, Lenita confirma que Altemar Dutra foi um dos grande amigos do marido.  “Eu gostava quando ele cantava Velho, Meu Querido Velho. E a Ângela Maria também teve várias vezes lá na chácara, assim como o Luiz Gonzaga. E revela: “E eu nunca fui a um show, você acredita?”. Dona Lenita mora numa casa contígua à velha estrutura da chácara onde Chico Doutor recebia artistas e políticos. É um casarão com cinco dormitórios, piscina e campo de futebol. Lenita conta como ela e Chico se conheceram até casar. “Foi muito tempo antes de casar, nossas famílias eram amigas do povoado aqui de Delmiro. No Rio de Janeiro ele se vestia parecendo um lorde, mas eu nunca achei  ele muito bonito, não!”, se diverte Lenita, ao dar uma deliciosa gargalhada, diante dos filhos Fátima e Edson, para depois se emocionar. Aos 72 anos, vítima de uma pancreatite e longe de seu amor primeiro e único, uma vez que o empresário se separou de Lenita antes de morrer, o festeiro e amante da vida Chico Doutor deixou estas plagas e uma lacuna que nunca mais foi ocupada pelas bandas do Sertão das Alagoas. Chão de estrelas de Chico Doutor em ensaio fotográfico     https://www.youtube.com/watch?v=5VwXl78NoZw&feature=youtu.be https://www.youtube.com/watch?v=Zbc5BGBXPcY&feature=youtu.be