Cidades

O “alagoanês” nosso de cada dia

Expressões do vocabulário popular são característica marcante dos alagoanos, que julgam difícil não usá-las no cotidiano

Por Evellyn Pimentel com Tribuna Independente 02/12/2017 09h44
O “alagoanês” nosso de cada dia
Reprodução - Foto: Assessoria
Alagoas é o lugar onde pancada vira roncha e fedor é inhaca. Gente sem educação é mundiça e ser bobo é o mesmo que abestalhado. Algo ruim é peba, lugar longe é biboca. Há quem diga que quem é dessas bandas, pelo menos uma vez por dia se vale do “alagoanês” ou “alagoês”. O palavreado popular local é rico de expressões e flexões de palavras que garantem um jeito próprio e até inusitado de se comunicar. É o que explica o doutor em Linguística e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Aldir Santos de Paula. “Essas manifestações vêm do espírito do povo e do ponto de vista científico isso é derivado da possibilidade de variedade linguística dos falantes. Essas expressões são parte da nossa riqueza cultural, talvez parte da nossa miscigenação étnica. É uma coisa que está muito relacionada com a oralidade, porque quando a gente vai para a forma escrita elas perdem a graça”, diz. A reportagem da Tribuna Independente foi às ruas para saber se é fácil encontrar uma explicação para essas e outras incontáveis expressões da língua falada. Quem se arrisca a explicar o que é bate entope?  O aposentado Sebastião Lessa de 75 anos tentou. “Bate entope [risos]. É aquilo que quando bate fica preso e não sai mais do lugar [risos]. Um alimento que bateu e não teve jeito, grudou. É um dizer popular. Né? Aqui em Alagoas tem muito disso. Eu viajo muito pelo interior e escuto muita coisa. Tem algumas que nem sei explicar”, diz. Além do bate entope, vai não vai tem alguém querendo ‘pegar bigu’. Mas o que seria isso? Na ponta da língua, o jovem Paulo Nobre, de 20 anos, explicou à reportagem sem ‘aperreio’. “Pegar bigu, é pegar uma carona clandestina [risos]... Aperriado é quando você abusa uma pessoa. Né? Já o bate entope é um bolo quando fica ruim, solado”, detalha aos risos. Paulo diz que não imagina outro jeito de se comunicar, a não ser utilizando as expressões. “Só assim que a gente consegue se comunicar aqui. Se falar culto as pessoas não entendem. Dizem logo ‘deixe de pantinho e fale normal, com o nosso palavreado’. A maioria eu entendo, e nós jovens acabamos criando outras”, garante. Para a dona de casa, Rosecleide Nascimento, de 44 anos, é raro as pessoas não entenderem, ou conhece ou já se acostumou a falar assim. Ela ainda arrisca a ‘tradução’ de mangar, aritica e o famoso bate entope. “Mangar é quando pessoas riem de outras, aritica é conversar besteira e bate entope é uma comida que a gente come e não gosta. Eita! Acertei?”, finaliza às gargalhadas a dona de casa.  Segundo ela, as expressões vão passando de um para o outro. Labafero genuinamente alagoano Para doutor em Linguística, Alagoas tem características culturais particulares que garantem uso do “alagoanês“ O doutor em Linguística se diverte ao comentar o uso das expressões populares em Alagoas. Ele explica que cada região tem sua peculiaridade e palavras próprias. “Quando a gente fala em ‘bate entope’, é em relação a bolo. Não é? Quando você come e está muito denso e você não consegue engolir. Ou então, a palavra muganga, que pode ser algo como gestos e movimentos desarticulados. Mangar, pantinho... [risos]. E aí cada região tem suas variações e fazem suas adaptações que só fazem sentido naquele contexto e o povo vai dando esse sabor. A língua popular é que vai dar esse sabor regional, do sotaque, e às vezes ganha características onde determinadas palavras são associadas exatamente a uma determinada região. Eu gosto muito de ‘labafero’ [risos]. Acho que labafero é a mais alagoana de todas porque eu viajo e nunca encontrei um labafero em nenhum outro lugar”, reforça. Segundo Aldir de Paula, não é possível precisar quando ou como as palavras foram introduzidas no vocabulário popular do alagoano. Entretanto, em algumas exceções é possível relacionar com o período provincial, já que também são faladas em Pernambuco, por exemplo. “Outras expressões são meio pernambucanas, meio alagoanas por conta do processo histórico. Resulta da criatividade linguística das pessoas. Palavras como ‘oxente’, que deriva do ‘ô gente’, tem alguns que o processo histórico já foi investigado, já foi discutido. Então, se a gente pensar nessa discussão onde se tem mais ou menos o período onde a palavra foi criada e como ela é pronunciada hoje, a gente vai encontrar mudanças. Como o próprio você que vem de Vossa Mercê, hoje a gente coloca só o ‘cê’ e não estranharia que no futuro esse ‘cê’ vire apenas ‘ê’. Como esse processo é muito dinâmico, os próprios usuários iriam aceitar”, esclarece. Já outras remontam de um período histórico ainda mais rebuscado, diz o professor. “Existem algumas palavras que têm essa explicação histórica como a ‘santo do pau oco’, por exemplo, que se refere a alguém falso. Reza a lenda que surgiu na época do Império onde se roubava ouro e colocava o ouro dentro dos santos para não pagar impostos. Esta é uma dela e tem tantas outras”, detalha. A dinâmica da língua, faz com quem palavras usadas caiam em desuso, cedendo espaço a outras. Embora muitas permaneçam ‘na boca do povo’. “Como tudo depende da criação lexical, algumas palavras vão sair do grupo e vão se estender por conta da aceitação ou do significado social. Mas em alguns casos essas palavras são datadas. Quer dizer, elas vão aparecer num determinado grupo social e essa palavra não vai para a língua, não sai daquele grupo social. E tem outras palavras que são criadas e as pessoas aceitam. É um processo dinâmico onde algumas expressões vão aparecer outras desaparecer, outras vão ser lembradas apenas por um estrato etário, e outras vão ser lembradas se der tempo do dicionário marcar, porque há um período de produção e às vezes a palavra some, é muito interessante”, explica o professor. Aldir de Paula acrescenta que a presença dessas palavras entre os alagoanos é marcante sobretudo pela origem rural da população. “Determinadas expressões podem estar associadas a determinados locais, mas embora eu não tenha dados oficiais, mas a população que hoje é urbana tem origem rural, ou rural de tradição, porque muitas famílias vieram para a capital, ou são urbanas novas, pessoas que vieram para a cidade há muito pouco tempo e de certa forma mantêm essa relação com o interior. De todo o jeito, quando a gente enxerga esses processos, eles têm explicações de ordem fonológica, morfológica, gramatical, que para o povão é apenas erro”, destaca. Expressões populares dos improvisos caem em desuso O repentista e cantador Elias Procópio de Lima, mais conhecido como João Procópio, de 77 anos, dedica 45 aos acordes e improvisos. Para ele os repentes de hoje passaram a seguir um modelo, as expressões populares deixaram de ser usadas, dando lugar à necessidade de formas e rimas. [caption id="attachment_22526" align="alignnone" width="300"] Com 45 anos dedicados ao repente, João Procópio diz que palavras do vocabulário popular têm perdido espaço entre os cantadores (Foto: Adailson Calheiros)[/caption] “Os cantadores quando se juntam falam assim. Às vezes a gente tira um tempo para cantar como os cantadores do passado. É chamando de fio da peste, fio da bixiga, da gota serena. Essas coisas assim, mas no improviso mesmo, o cantador hoje perdeu esse linguajar. Porque o repente do cantador hoje é uma carta escrita”, reclama. E lembra de tempos áureos onde a preocupação com as rimas era bem mais leve e divertida. “Antes se rimava Ceará com cantar. Era uma maravilha. ‘Manuer’ com José não rima? Mas hoje não pode mais, porque Ceará tem acento e cantar tem R. Antigamente era prumode, por via, se falava assim”, detalha. Sobre o repente, João Procópio garante ter nascido com o dom. “Eu acho que já nasci poeta. Sabe? Você nasce com o dom e vai ser lapidado pelos mestres. Tenho 45 anos de viola. Foi a única profissão que deu certo para mim: ser cantador e repentista”, conta. Experiente em festivais em todo o país, ele é considerado Patrimônio Vivo de Alagoas desde 2005. Durante a entrevista, presenteou a reportagem com uma de suas rimas. Ele também é o responsável por fundar a Associação dos Violeiros e Trovadores de Alagoas (AVTA). “Visitando o deserto do Saara, escalei montes, serra e colinas. Bebi água de oásis das campinas e o sol quente queimando minha cara. Foi ali que fiquei surpreendido com o vento soprando em meu ouvido e o silêncio reinando no deserto, sem saber o tamanho da altitude, não falei com Jesus porque não pude, mas ouvi sua voz bradando perto...”, canta.