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Rio que matou está morrendo

Jornal Tribuna Independente refaz caminhos da enchente de 2010 e constata que a seca tem mudado o cenário e a vida da população às margens do Mundaú

Por Tribuna Independente 25/03/2017 08h09
Rio que matou está morrendo
Reprodução - Foto: Assessoria

Era junho de 2010. Dias seguidos de chuvas torrenciais causaram uma enchente que deixou um saldo de 36 mortes e 15 municípios alagoanos em situação de emergência. Quase sete anos depois, o Rio Mundaú, protagonista da cheia, pede socorro. As águas que um dia mataram estão desaparecendo e dando espaço à sequidão. Os dados são do Relatório de Perdas e Danos do Banco Mundial.

Galhos secos, vegetação e peque-nos bolsões de água no lugar de uma vazão que impressionou. Esta é a realidade do Rio Mundaú. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), a vazão atual é de 1,72m³/s. Durante a cheia o rio registrou 497,39m³/s, alcançando mais de oito metros de altura em alguns pontos.

Banhados pelo rio os municípios de Santana do Mundaú, União dos Palmares, Branquinha, Murici e Rio Largo, destruídos em 2010, estão em 2017 com situação de emergência re-conhecida devido à escassez hídrica.

Em União dos Palmares, cidade da zona da mata, localizada a 73km de Maceió, as águas em 2010 destruíram mil casas apenas na Rua do Jatobá. Agora na mesma rua é possível ver o curso do rio totalmente seco.

José Fernando da Silva, agricultor, de 73 anos, foi o único morador a permanecer na Rua do Jatobá. Segundo ele, a destruição foi rápida. Das 20 casas que ele possuía na rua, apenas uma sobrou inteira.

“Meu pai comprou essa propriedade em 1947 e é da nossa família desde então. Quando teve a cheia, destruiu tudo: os carros ficaram dentro d’água, tudo dentro. Eu tinha 19 casas de aluguel, além da que eu moro. Só minhas aqui do lado eram 19 e a água levou tudo. Na minha casa, a água chegou a 3,40m de altura, vieram medir e tudo. Só as paredes ficaram em pé, o resto a água levou, os alpendres, a garagem, tudo foi embora”, conta.

O agricultor diz que a seca tem prejudicado muitos moradores da região. A situação dele só não é grave porque em sua propriedade restou uma cacimba.

Não só a agricultura foi prejudicada em União dos Palmares. O abastecimento da cidade, realizado por meio do Rio Mundaú, sofre desde dezembro de 2016. O sistema tem dependido de variáveis como a chuva para atender a cidade. Quando a estiagem se prolonga, a população recebe água por rodízio. Em fevereiro, houve desabastecimento durante 24 horas.

Mário de Barros, coordenador do setor de perdas do Sistema Autônomo de Abastecimento e Esgoto (Saae) de União, explica como o problema ocorreu.

“Secou totalmente e tivemos que interromper o abastecimento. A cidade ficou completamente sem água. O estoque de água mineral foi todo negociado e as pessoas que não tinham condições de comprar tiveram que procurar cacimbas ou tentar achar água no rio”, afirma o coordenador.

Municípios invadidos pela água estão novamente em situação de emergência

Com 80% de destruição pela água durante a enchente, o município de Branquinha, distante 60km da capital alagoana, perdeu todos os prédios públicos, que foram destruídos. A cidade, literalmente, quase sumiu do mapa, porque teve que ser reconstruída em outra área, com bastante elevação pelo temor de novas cheias. Mas o que parecia impossível acontecer tornou-se realidade: A cidade agora passa por momentos difíceis na agricultura e pecuária devido à estiagem.

Cícera Gomes, secretária de Finanças da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag) de Branquinha, classifica a situação vivida pela cidade como ‘total sofrimento’. A sede da entidade foi tomada pelas águas em 2010 e reconstruída no mesmo lugar, mas atualmente no lugar de água tem apenas vegetação seca.

Em meio aos restos do imóvel à margem do rio, Cícera mostra a situação de sequidão do Mundaú. Segundo ela, os agricultores têm perdido as lavouras e não têm alternativas para a subsistência.

“O rio está assim, totalmente seco. As cacimbas na cidade estão secando. As plantações de laranja e macaxeira estão todas secas. Todo mundo sofre. Tudo que eles tinham estão perdendo porque não têm como irrigar. Na cidade, a água chega um dia, outro não, aí vem carro-pipa”, diz.

Patrícia Tenório, chefe de gabinete da Prefeitura de Branquinha, reconhece os problemas enfrentados por conta da seca. O município teve a situação de emergência devido à estiagem reconhecida pelo Ministério da Integração Nacional, em fevereiro.

“Dificuldade de irrigação, dificuldade geral economicamente falando. Falta água para o abastecimento da população e também para os agricultores. Barragens secando. É feito um rodízio de carro-pipa por bairros, cada dia abastece um lugar. E nas regiões da reconstrução é mais difícil porque é mais alto”, afirma Patrícia.

União dos Palmares também está em situação de emergência devido à seca. A gravidade foi reconhecida pelo Governo Federal, que mandará recursos até agosto deste ano caso a situação não melhore. As verbas são destinadas para amenizar os efeitos da seca. Nos bairros reconstruídos após as enchentes, neste período crítico, o abastecimento é realizado por meio de carros-pipa.

“Esta seca é uma grande tragédia ambiental”, diz superintendente

Tanto enchentes como períodos de seca extrema causam sérios danos ambientais nas regiões afetadas. Para Gustavo Carvalho, superintendente da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh), a ocorrência desta seca no Rio Mundaú é considerada grave. “A redução de vazão traz muitos danos aos ecossistemas, à fauna e à flora, principalmente na seca que estamos vivenciando. Ela é considerada uma grande tragédia ambiental”, expõe o superintendente.

Segundo Gabriel Le Campion, oceanógrafo e biólogo marinho, o evento de 2010 trouxe muitas consequências para os ecossistemas locais.

“A cheia de 2010 causou impacto nos ecossistemas costeiros, alguns positivos outros negativos. Positivos por ter arrastado muitos sedimentos que estavam entulhando parte da calha do rio. No entanto, esses sedimentos foram dispersos na região marinha e os sedimentos finos causaram um excesso de turbidez na água, o que afetou os organismos bentônicos (do fundo)”, afirma o oceanógrafo.

Contudo, segundo Le Campion, a seca extrema e prolongada, como tem sido visualizada em Alagoas com 62% do território em níveis alarmantes, tem efeitos prejudiciais não só para as atividades diretas, como a pesca. “Todo rio tem diversas funções ambientais importantes, entre elas enfatizo transportar nutrientes para a biota estuarina e marinha, transporte de sedimentos para a manutenção do perfil da praia e impedir a erosão marinha, manter a planície costeira intacta, etc. Qualquer estimativa que se tenha jamais mensurará por inteiro o prejuízo, pois tem efeitos crônicos”, reforça.

NOVA CHEIA

Mesmo vivendo seca histórica, o Rio Mundaú pode voltar a devastar. A sequência histórica do mesmo tipo de evento preocupa Gabriel Le Campion. O especialista acredita que após a recuperação desta seca outras inundações podem ocorrer. “Com toda certeza isso irá ocorrer novamente, como já ocorreu por diversas vezes nesse rio em décadas passadas. A memória do alagoano é por demais curta”, argumenta.

Os eventos que ele menciona são as cheias do Rio Mundaú em 1969, 1987, 1988, 2000 e 2010.

Estiagem prolongada no Estado é uma situação atípica, avalia Agência Nacional de Águas

A situação é atípica. A avaliação é da Agência Nacional de Águas (ANA). “Os últimos seis anos têm sido particulares, mesmo para o regime semiárido, com baixíssima intensidade de chuvas e fortes crises hídricas. A ANA está avaliando a situação do atendimento aos usos dos recursos hídricos na bacia do Rio Mundaú, principalmente em seus trechos de cabeceiras, atingidas fortemente por indisponibilidade hídrica nos últimos meses”, informou o órgão, por meio da assessoria de comunicação.

Segundo o secretário de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, Alexandre Ayres, desde 2011 Alagoas registra retração nos índices pluviométricos, isto é, as chuvas não têm alcançado sequer a média histórica.

“Nós estamos no sexto ano consecutivo de redução de chuvas aqui em Alagoas. Tem chovido abaixo da média pelo sexto ano consecutivo. Nós temos acompanhado as reduções das vazões dos rios, principalmente os mais importantes como o Mundaú e o Paraíba”, explica.

O meteorologista da Semarh Vinícius Pinho alerta que mesmo com um inverno generoso, com níveis elevados de precipitações, os efeitos nas bacias hidrográficas serão percebidos até 2018.

“Há muito tempo tem chovido pouco na região e realmente eles [os municípios] estão em situação crítica. Para resolver o problema, não temos perspectiva a curto prazo. Não existe perspectiva de volume grande de chuvas até abril. Somente a partir do próximo ano é que tenhamos uma evolução no quadro e as reservas voltem a ser abastecidas”.

O meteorologista acrescenta que o inverno é o período de recarga hídrica para o Estado passar os meses de verão intenso. Ano passado choveu 40% do esperado, impactando diretamente no volume armazenado, o que é, para ele, uma das causas da crise enfrentada.

“Para chegar a um nível de normalidade em relação à parte de recursos hídricos, nós precisaríamos de vários meses de chuva dentro da média ou acima da média. Mesmo que nós tenhamos um inverno bom em 2017, que é o que a gente espera, e que no final de abril e início de maio nós comecemos a ter chuvas regulares, a recuperação por completo só se daria em 2018, mantendo o padrão de chuvas na normalidade ou acima da normalidade”, explica.

Maior crise hídrica em cem anos pega poder público de surpresa

Embora confirmem os baixos índices pluviométricos, criticidade e dimensão da seca no Estado, o poder público, em vários níveis, afirma não ter sido possível planejar ações que absorvessem as consequências da escassez hídrica.

Para Gustavo Carvalho, esta é a pior seca dos últimos 100 anos. “Nós temos, pelos registros não só em Alagoas, mas no Nordeste inteiro, que esse índice pluviométrico é algo nunca visto em 100 anos. Nós estamos numa situação bastante crítica, que infelizmente traz problemas para a população. Mas, por outro lado, serve para que tenhamos um parâmetro. Diante do quadro, nós podemos fazer um planejamento e trabalhar também para essa situação mais crítica”, aponta o superintendente.

O prefeito de União dos Palmares, Areski Freitas, classifica esta seca como “algo nunca visto”. Segundo ele, a população não estava preparada para vivenciar dificuldades hídricas. “A gente consome água do Rio Mundaú e o rio vem se mantendo, com muita dificuldade, inclusive já chegou a apartar. Um rio como esse, que chegou a destruir cidades, hoje praticamente não tem água. É uma realidade que a gente começou a viver e está tendo que se adaptar a ela”.

O coordenador do setor de perdas do Saae, Mário de Barros, demonstrou perplexidade diante da situação enfrentada. “Nunca vivemos situação semelhante. Ninguém estava preparado para isso. O rio entrou em colapso e está com vazão mínima. Situação de calamidade”, afirma o coordenador de abastecimento de União.

O superintendente da Semarh Gustavo Carvalho afirma que o episódio serve como aprendizado para os órgãos reguladores. “É difícil prever o que vai acontecer na natureza. Quem trabalha com hidrologia se baseia com registros históricos. E este momento que nós estamos vivenciando agora nunca houve, assim como ocorreu em 2010 com uma cheia de registro tão intenso. Na verdade, são elementos que serão inseridos para planejamento para aprendermos melhor”, afirma.

A Agência Nacional de Águas informou que irá realizar estudos para identificar as necessidades para os momentos críticos. “Estão sendo elaborados os estudos necessários para a proposição desse instrumento regulatório. Tão logo disponíveis, os estudos e a proposta serão objeto de reuniões públicas a serem realizadas diretamente nas regiões afetadas, previstas inicialmente para agosto de 2017”.

O oceanógrafo Le Campion acredita que diante do quadro visualizado de forma recorrente nos últimos seis anos, teria sido possível elaborar planos de contingência. “Se preparar melhor implica em prejudicar a tão propagada indústria da seca que existe desde o Brasil império”, critica o oceanógrafo.

O superintendente da Semarh argumenta que é preciso haver execução de projetos de infraestrutura em conjunto com ações educativas.

“Nós temos dois eventos críticos no Mundaú: a cheia de grandes proporções em 2010 e esse que estamos vivenciando agora de grandes proporções também. A política implantada em situações desse tipo é principalmente reservar água para os períodos de escassez e também fazer barramentos para que possa realizar contenção no período de cheia. Óbvio que são obras de infraestrutura, mas, além disso, temos que continuar com ação de educação ambiental para que não continuemos com a degradação, com ocupação irregular, uma série de ações que devem continuar a ser realizadas para que possamos gradativamente ter a recuperação do rio”, classifica.