Brasil
Preconceito dos pretendentes em relação à cor da criança na hora de adotar cai ano a ano no Brasil
Hoje, quase metade se diz indiferente à raça; apesar disso, país ainda registra discrepâncias regionais e só 10% das crianças adotadas são negras; Pais que fizeram adoções inter-raciais contam como lidam com as diferenças; assista ao vídeo
Eles são filhos de um grupo cada vez maior de pais adotivos que não fazem restrição à cor da criança no momento de enfrentar a fila do Cadastro Nacional de Adoção.
Hoje, quase metade (46,6%) dos pretendentes inscritos no cadastro é indiferente à cor das crianças ou adolescentes. Ou seja, dizem aceitar filhos de qualquer raça. Há cinco anos, eram 31,8%.
“Cor de pele é cor de pele. Tem um mais branquinho, um mais pretinho, um mais amarelinho. Nós nunca achamos que isso fosse algo que tivesse importância, que tivesse algum peso. Se você está em busca de um filho, em que vai interferir a cor da pele da criança?”, diz a corretora de imóveis Carla Pujol, de 49 anos.Leide Freire, de 39 anos, analista de recursos humanos, pensa igual. Ela também não fez nenhuma restrição quanto à cor no momento de se candidatar a mãe. “Nunca passou pela minha cabeça colocar a raça. Até porque a maioria das crianças que está para adoção é negra, então você já fica pensando que vai vir um negro. E acabou vindo uma criança branca com uma mãe negra.”
Para Paulo Sérgio Pereira, diretor da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), a mudança de mentalidade dos pretendentes se explica em boa parte pelo trabalho feito pelos grupos de apoio. “Os adotantes estão sendo bem orientados, trabalhados pelos grupos de apoio à adoção, e passam a ter um entendimento mais claro. A informação passa a ter um papel poderoso no que diz respeito à idealização do modelo de filho desejado.”
Adoção inter-racial
Para Leide, que acreditava na maior probabilidade de ser mãe de uma criança negra, o fato de o filho ser branco nunca lhe trouxe nenhuma dúvida em relação à maternidade.
“Quando eu vi o Arthur pela primeira vez, eu falei assim: ‘É meu’”, diz Leide.Ela conta que, no mesmo dia em que ela e o ex-marido, Eduardo, foram conhecer o filho no abrigo, já sentiram que aquela era a decisão certa. “Na hora em que eu cheguei, eu falei: ‘Não vou deixar meu filho aqui de jeito nenhum, vou levar ele embora’. A assistente social ligou para a juíza e, nesse mesmo dia, eu levei o Arthur para casa.”
Com Laura, a situação não foi muito diferente. Segundo Carla, fazia apenas um ano que ela e o marido tinham entrado com o pedido de adoção quando souberam que havia um caso de três irmãos do interior de São Paulo que estavam disponíveis para serem adotados. Cada um ganhou uma família, com a única exigência de os pais manterem os irmãos em contato.
“A gente saiu para almoçar, nós e o outro casal com a irmã dela. Na hora de ir embora, eu estava super receosa. 'E agora, essa menina acabou de me conhecer, será que vai largar a irmã?' (...) Ela entrou no carro, sentou na cadeirinha e falou para a irmã dela: ‘Tchau, te vejo em São Paulo’. Então foi muito legal porque a gente tinha acabado de ser conhecer.”
Lápis de cor
Leide conta que o filho foi descobrindo as diferenças da cor de pele aos poucos. “Antes, ele me desenhava igualzinha a ele. Uma vez ele me questionou o lápis cor de pele. Ele perguntou: ‘Mãe, qual é a cor da pele?’. E eu falei: ‘Depende, qual é a sua pele?’. Aí ele ficou rindo, não respondeu, e ele mesmo pegou o lápis marrom e me desenhou”, conta.
“Ele trata a diferença de uma forma tranquila. É minha mãe, ela tem uma cor de pele diferente da minha e encerrou”, diz Leide.É com essa mesma tranquilidade que Carla e Wagner afirmam tratar o tema com Laura. “Como para a gente sempre foi muito natural, a gente nunca teve nenhuma conversa especificamente sobre cor de pele. A gente orientava, quando ela era pequena, para nos contar se tivesse qualquer tipo de tratamento esquisito, qualquer comentário esquisito, principalmente na escola.”
Ela diz que percebia mais os olhares das pessoas nos primeiros anos da adoção. “Estávamos em um restaurante, eu, afastada, e ela brincando no parquinho, com o Wagner olhando. Uma senhora sentou do lado dele e falou: ‘É sua?’. Ele falou: ‘É minha’. ‘É de criação?’. ‘É, ela é adotada’. ‘E ela é carinhosa?’. ‘É, ela é’. Quando ele me contou, eu fiquei incomodada. É de criação? É carinhosa? Não, ela late, morde”, conta.
Leide também diz que as pessoas duvidam que ela é a mãe de Arthur. Segundo ela, desconhecidos a abordam em shopping, supermercado e no transporte público para perguntar se ele é seu filho. Em uma situação, teve que mostrar os documentos para comprovar sua maternidade.
“Fui barrada em um parquinho em que uma atendente falou que só poderia entrar a mãe. E eu falei: ‘Mas eu sou a mãe’. Ela estava olhando só para a cor de pele, não estava acreditando muito. Depois, a gente mostrou o documento, eles ficaram sem graça, e a gente acabou entrando.”
Apesar das situações de preconceito, as duas afirmam ver com naturalidade as adoções inter-raciais.
“Passou pela porta, somos uma família, não existe distinção nenhuma. A gente prepara para que ele saiba se defender lá fora e não aceite qualquer tipo de preconceito”, diz Leide. Crianças negras e diferenças regionaisNo que diz respeito à questão racial, o principal problema da adoção no Brasil ainda se refere às crianças e aos adolescentes negros. Isso porque 92,2% dos pretendentes dizem aceitar uma criança branca, ante 51,9% que se mostram abertos a uma criança negra. E atualmente há 1.403 crianças negras aptas à adoção nos abrigos – o que representa quase 1/5 do total.
Mas essa realidade está mudando. Dados tabulados por Paulo Sérgio Pereira com base nos registros do Conselho Nacional de Justiça mostram que houve um aumento médio de 32% na preferência por crianças e adolescentes negros em cinco anos no país. Em 2012, o percentual de pretendentes que aceitavam uma criança negra era bem menor: 35,7%.
“É uma notícia animadora. O brasileiro passa a entender melhor a criança ou adolescente que está apto hoje a ser adotado”, diz.
Apesar da queda no preconceito, ainda há discrepâncias regionais. No Norte, por exemplo, 67% dos pretendentes dizem aceitar uma criança negra. O percentual cai para 44,6% no Sul – índice que já foi muito menor: 29,4%, em 2012. Dados do CNJ mostram ainda que neste ano apenas 10% das crianças e dos adolescentes adotados eram negros.
“Existe uma questão cultural, mas aos poucos isso vem sendo quebrado. Os números eram mais restritivos, apesar de ainda serem baixos. Nos estados do Sul, há um grande contingente de população branca, de origem europeia, que ainda traz um conservadorismo bastante arraigado. É natural”, afirma Pereira.
O especialista em adoção diz que não acha que essa restrição à cor ainda decorra do fato de os pais quererem dar a impressão de que os filhos são biológicos. “Essa informação nunca deve ser omitida. A orientação nos grupos é para que a relação adotiva seja iniciada de forma saudável, estável, que seja pautada pela verdade. (...) Anos atrás, quando não havia uma preparação obrigatória para o pretendente, como agora determina a lei, era diferente. Hoje, há 180 grupos de apoio à adoção no país. A sociedade brasileira tem se mostrado preparada para essa jornada da adoção.
Família colorida
Pereira é ele próprio um exemplo de adoção inter-racial. Ele é negro, filho adotivo de pais brancos e 8 de seus 11 filhos são adotados, sendo um branco.
“Na década de 60 essa questão era mais que um desafio, era um escândalo social. Mas meus pais tinham a convicção e foram buscando todo e qualquer tipo de enfrentamento. E isso dá à criança a segurança de ter uma postura em relação a uma discriminação que possa ocorrer”, afirma.
Segundo ele, os grupos trabalham bastante com isso durante a preparação dos pretendentes.
“Existe toda uma orientação de como lidar com a inter-racialidade, com o histórico que a criança traz. Mas tem que ser a relação mais natural possível”, afirma Pereira.“Já no pós-adoção, é preciso um trabalho mais particularizado, porque é quando vai ocorrer um enfrentamento nas relações sociais. Não só na família, mas nos meios onde a criança vai se relacionar, na escola, no clube, por exemplo. Vai ser uma família diferente, colorida? Vai, mas o vínculo afetivo que vai sendo construído é que fará a blindagem dessa criança contra qualquer tipo de preconceito. Com os pais tendo a convicção dessa relação, as crianças vão saber trabalhar as situações de preconceito em sua trajetória.”
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