Brasil

Um ano após decreto, país reutiliza menos de 200 armas das mais de 135 mil apreendidas

Decreto de dezembro de 2016 abriu a possibilidade de armas apreendidas serem doadas para forças de segurança do país. Exército e especialistas citam falta de procedência e más condições como motivo para baixo número de doações

18/11/2017 14h31
Um ano após decreto, país reutiliza menos de 200 armas das mais de 135 mil apreendidas
Reprodução - Foto: Assessoria
Após quase um ano do decreto que abriu a possibilidade de armas apreendidas serem reutilizadas por forças de segurança do país, um levantamento do G1 aponta que menos de 200 armamentos se enquadraram na nova legislação e deixaram de ser destruídos para encontrar novo uso na mão de policiais e de integrantes das Forças Armadas. No mesmo período, mais de 135 mil armas foram inutilizadas e destruídas. Antes do decreto de número 8.938, de 21 de dezembro de 2016, todas as armas apreendidas em crimes e operações policiais e as entregues pela população na Campanha do Desarmamento precisavam ser destruídas. Com o decreto, fuzis e metralhadoras em boas condições podem agora ser doados para órgãos de segurança pública. O G1 entrou em contato com todas as 12 Regiões Militares do país para saber quantas armas foram destruídas em 2017 e quantas foram doadas de acordo com o novo decreto, já que, segundo a legislação, os equipamentos devem passar pelo crivo do Exército. Foram doadas 195 armas desde o decreto. Destas, a maior parte se concentrou na 1º Região Militar do país, que abrange os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Foram 130 espingardas calibre 12 doadas para as próprias Forças Armadas. Mesmo assim, as armas reutilizadas representam apenas 0,3% das que foram destruídas na região (38.841). Outras 37 armas foram doadas na 2ª RM, no estado de São Paulo. Foram 37 fuzis apreendidos em ocorrências criminais, sendo 17 destinados à Polícia Militar e 20 à Polícia Civil. Nos estados do Paraná e de Santa Catarina (5ª RM), também houve a reutilização de 17 armas. Já a 3ª RM, do Rio Grande do Sul, registrou a doação de 11 armas para os órgãos de segurança pública. Há ainda outros 20 armamentos oferecidos, mas as negociações ainda não foram fechadas. Questionado sobre o baixo número de armas reutilizadas, o Ministério da Justiça informa que o decreto autoriza a doação de armas específicas, como carabinas, espingardas, fuzis e metralhadoras. "Por este motivo, o universo de armas destruídas é sensivelmente maior do que o das armas doadas." Trâmite Quando uma arma de fogo é apreendida, fica sob o poder da Justiça durante o processo penal. Quando esse processo acaba ou quando a permanência da arma nos fóruns não é mais necessária, elas são encaminhadas pelo juiz ao Comando do Exército para destruição ou oferecimento aos órgãos de segurança pública ou às Forças Armadas. O órgão que fez a apreensão tem prioridade na destinação dos armamentos. Ele é que deverá analisar as especificidades do equipamento para saber se está em perfeitas condições de ser utilizado. Em caso de recusa, outros órgãos poderão manifestar interesse. Ao longo do processo, o Tribunal de Justiça realiza a renumeração das armas e o Exército faz a verificação delas, checando se as armas se enquadram na dotação do órgão que manifestou interesse em mantê-las em seus arsenais. Ao final, o Exército encaminha a relação de equipamentos ao juiz, que determina a entrega ao órgão. “O Exército finaliza o processo. Ele tem autoridade para dizer se você pode utilizar essa arma, pois toda força tem uma dotação (conjunto composto de todos os armamentos e munições)", afirma o coronel Éder Valério Pellegrini, o comandante encarregado pelo quartel que destrói armas em São Paulo. Ele explica que a Polícia Militar, por exemplo, tem a dotação de tantas mil armas em um calibre previsto. "A nós, cabe apenas verificar o que está previsto na lei e autorizar que o órgão de segurança permaneça com essa arma." Segundo ele, a diferença entre dotação da corporação interessada e a arma apreendida é um dos motivos que impedem a doação de mais armas no país. “A dotação envolve os custos de uma cadeia de suprimento e uma cadeia de manutenção. Se pega uma arma que tem que importar peça, você vai ter um trabalho burocrático muito grande com pouco resultado. Então tem que padronizar”, afirma. Ele destaca também os perigos da utilização de armas fora desse padrão. “Quando você vai dar uma instrução de tiro, cada arma tem a sua peculiaridade. [Com dotação diferente], o agente treina com uma pistola e vai atirar com outra. Temos que pensar no policial que está utilizando essa arma, e não só na pergunta ‘por que não aproveita o armamento?’”, diz. Baixo número de doações Além da dotação, especialistas e integrantes do Exército consultados pelo G1 apontam as más condições e a falta de informações sobre a procedência dos armamentos apreendidos como outros motivos para o baixo número de armas reutilizadas no país desde o decreto. “As armas que chegam aqui, a procedência delas não tem validade. Não sei quando essa arma foi produzida, não sei quantos tiros foram dados. Isso compromete a eficiência da arma. Se uma arma apresenta algum problema de manutenção, em um momento de confronto com a criminalidade, se o policial errar, não vai ser por culpa dele, mas, sim, da arma”, diz o coronel Pellegrini. Ivan Marques, diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, destaca a baixa qualidade dos equipamentos. “As pessoas têm a impressão de que arma de criminoso é fuzil, é arma certificada, e não é. É mais revólver, pistola, armas antigas, muitas vezes em más condições. A esmagadora maioria dessas armas [apreendidas] não interessa a forças policiais.” Em visita a um quartel na Grande São Paulo, o G1 viu algumas dessas armas. A maioria tem aparência antiga e apresenta muitos desgastes nos canos e nos cabos. Algumas, inclusive, são de fabricação caseira, feitas com tubos de metal improvisados. No quartel, elas passam por uma pré-destruição em prensas. Depois, são encaminhadas para empresas siderúrgicas para serem derretidas. Destruição e desarmamento Nos últimos 10 anos, o Exército destruiu mais de 1,5 milhão de armas em todo o país. Apenas na RM de São Paulo, foram 520 mil equipamentos destruídos. Entre estas armas inutilizadas, estão também aquelas que foram entregues pela população através da Campanha do Desarmamento. Dados do Ministério da Justiça apontam que quase 151 mil armas foram entregues entre 2011 e 2017. Neste ano, até agora, foram 12,4 mil armas recolhidas. O número é muito mais baixo que o de 2011 (34,7 mil). “Se for pensar em política nacional que prevê o recolhimento voluntário de armas, é natural que tenha queda ao longo dos anos, pois o estoque de armas indesejadas na mão da população vai caindo com o tempo”, diz Marques. Entre as armas recolhidas, mais da metade (50,3%) é de revólveres. Espingardas (19,7%) e pistolas (10,1%) aparecem em seguida, mas há ainda fuzis (607 foram entregues no período), metralhadoras (24) e até canhões (8) e morteiros (3). Segundo o coronel Marcos Aurélio Zeni, chefe do serviço de fiscalização de produtos controlados de São Paulo, esses equipamentos geralmente são de colecionadores ou de famílias de colecionadores. “Temos casos de colecionadores que têm armamento pesado e antigo que foi utilizado em guerras e campanhas da história. São pessoas que gostam de mostrar e de possuir esse tipo de artigo de colecionamento.” Apesar de o número de armas provenientes do desarmamento ser representativo, Marques destaca que a maior parte das 1,5 milhão de armas destruídas no país sai da mão de criminosos. “A esmagadora maioria é de armas apreendidas do crime. Muita gente fala que o Estatuto do Desarmamento apenas serviu para tirar arma das pessoas que queiram entregar, mas a legislação permite que a polícia tire a arma do criminoso. Esses mais de 1 milhão vêm da possibilidade trazida pelo estatuto de tirar armas ilegais de circulação”, afirma.