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"O crack era meu grande amor", diz filha de médico que manteve vício por 30 anos

Andréia Mello Fernandes perdeu a guarda dos filhos, emagreceu e até se prostituiu por causa do vício; Em 2010, passou por uma desintoxicação e hoje ela se diz livre das drogas

Por G1 03/07/2017 08h24
'O crack era meu grande amor', diz filha de médico que manteve vício por 30 anos
Reprodução - Foto: Assessoria

O crack a afastou dos filhos, fez perder peso e até a se prostituir. Para manter o vício, Andréia Mello Fernandes conta que agia sem limites. Vendeu uma casa por míseros R$ 200, traficou drogas, derrubou três árvores de uma propriedade invadida e chegou a retirar, no meio da noite, uma camiseta de um time de futebol do corpo do filho. Tudo para conseguir dinheiro e comprar mais pedras.

"A pedra era meu grande amor, era tudo para mim. Eu não queria mais nada. Eu só queria fumar, fumar e fumar. Não importasse o que eu tivesse que fazer para conseguir a pedra. Não tinha limite".

Hoje, com 49 anos, ela se diz "limpa", livre das drogas. Em 2010, passou por uma desintoxicação de 45 dias em um hospital psiquiátrico e, logo depois, foi para uma comunidade terapêutica em Porto Alegre. Só deixou o lugar em maio de 2011, após nove meses.

De lá para cá, já teve três recaídas. A primeira ocorreu três meses após a saída da comunidade terapêutica, e a última, há um ano e meio.

"As recaídas fazem parte da doença", entende. "Só que a recaída é tão diferente de quando a gente estava no uso, eu não consegui fazer as mesmas coisas naquela época, entendeu? É como se não fosse eu. Como se fosse a primeira vez que eu estivesse usando drogas."

Filha de um médico e criada em família de classe média alta, Andréia vive hoje numa casa simples com o marido e os filhos. Sentada no sofá da residência, ela descreve o que sentia ao consumir o crack.

"A gente acha que não tem limite. Tudo que tu pensa no momento em que está usando a pedra tu quer fazer. É uma euforia. Eu penso: 'eu consigo ir daqui até o Centro caminhando e eu vou!' Não importa se vai te cansar. E tu perde a vergonha."

"Eu já cheguei a ficar 15 dias sem dormir. Eu via até espíritos na rua. Foi horrível! A minha filha de 16 anos me perguntou se eu já tinha ido no inferno. Eu fui no inferno e voltei."

Filhos

Andréia usava até os filhos para conseguir dinheiro e comprar drogas. "Eu saía no inverno, na chuva, no frio e pegava um deles, o André Luís principalmente, que tem 8 anos, e saía pedindo nas portas, pedindo para uma medicação, passagem de ônibus". Outras pessoas davam dinheiro por "pena" dela e das crianças, que todo gasto com drogas.

Mesmo afundada no vício, Andréia diz que temia perder a guarda dos seis dos sete filhos - o mais novo nasceu após o tratamento. "Eu vivia me escondendo, me escondia da polícia, passava a Kombi do Conselho Tutelar e eu me escondia, porque eu tinha medo de perder meus filhos, porque eles estavam sempre comigo."

Durante um período, a família viveu em imóveis abandonados. Primeiro numa casa na beira da praia de Ipanema, na Zona Sul de Porto Alegre. Anos depois, eles foram para um sítio na Zona Sul, também invadido por eles. Foi ali que Andréia perdeu a guarda das crianças.

No local, o consumo de drogas e as brigas eram cada vez mais frequentes. E o próprio marido fez uma denúncia.

Em um dia, quatro crianças foram retiradas da residência pelo Conselho Tutelar. Passados quatro dias, outros dois também foram levados. As crianças ficaram sob a guarda do pai de Andréia e, em seguida, permaneceram em um abrigo. E só voltaram a conviver com a mãe após a desintoxição, três anos depois.

Antes do crack, drogas inalantes, maconha e cocaína

Andréia teve o primeiro contato com drogas de forma precoce, na adolescência. Na época, vivia dividida entre a casas do pai e da mãe, separados. Dois mundos, diferenciados por ela por uma única palavra: liberdade.

"Fui criada em família de classe média alta. Na época que eu era adolescente, queria ter liberdade. Sempre fui uma pessoa muito presa pela mãe, e aí eu conheci as drogas com 13 anos", explica. "Quando eu ia para meu pai, tinha muita liberdade. Tinha muitos 'amigos', e aí a gente usava."

O consumo começou com benzina, um líquido inalante. "Não achei que aquilo ia nos fazer mal. Na verdade, era uma porta de entrada, era um ilícito, um desenrolar para uma dependência química", diz. Depois partiu para o loló, experimentou lança-perfume e maconha. Aos 18 anos, decidiu parar, retomando aos 21 anos, com cocaína.

Sem saída, Andréia pediu ajuda para o pai e foi morar em Viamão. Mas, na cidade, se aproximou das drogas como nunca antes, passando a traficar com o namorado Francisco Vargas Fernandes, no Beco do Adelar, em Porto Alegre. Por três anos, negociou drogas e acabou conhecendo o crack.

Com o dinheiro da venda, Andréia ergueu uma casa. "Fizemos com muita dificuldade. Eram dois quartos, sala, cozinha e banheiro." Mas o esforço de construir a moradia em pouco tempo se desfez pelo crack. "Eu acabei num estágio da adicção que eu vendi toda minha casa, até os fios de dentro de casa."

A residência foi negociada por R$ 200. "Uns cento e pouco gastei com pó", lembra. O restante, segundo ela, serviu para comprar passagens para Águas Claras, em Viamão, onde o pai dela tinha um sítio.

Dois dias depois, eles foram expulsos do local pelo pai dela e voltaram para o Beco do Adelar.

"A gente foi morar em maloca, passava necessidade, passava fome. Eu não tinha nada, nada, nada. A gente morava em uma peça de mais ou menos uns dois metros, dois por dois, onde toda minha família dormia, só uma cama de solteiro e dois colchões, eu não tinha cozinha. Eu não tinha fogão, geladeira, nada, cozinhava em cima de tijolos, fazia comida em lata de ervilha, lata de milho. E aí a gente foi cada vez mais decaindo, mais, mais e mais."

Árvores em troca de drogas

Dali, eles seguiram para uma casa abandonada na beira da praia de Ipanema, na Zona Sul de Porto Alegre, onde ficaram três meses. Depois, invadiram o sítio, na mesma região.

"Era um lugar enorme, com três casas." Para manter o consumo de drogas, Andréia e o marido passaram a vender objetos e até a desmanchar as residências. Como última alternativa, o casal vendeu três árvores da propriedade, que tinha dois hectares.

"O uso de drogas era tão intenso que nós já não tínhamos o que vender. Tinha um piscina enorme dentro do sítio, e a gente só não vendeu a piscina porque não tinha como arrancar. Hoje, eu me questiono: até que ponto chega essa doença, até que ponto chega esse crack de a pessoa vender uma árvore?"

Quando os filhos foram levados do sítio pelo Conselho Tutelar, Andréia e o marido deixaram o local e se mudaram para o Jardim Urubatã, no bairro Hípica, na capital.

"Aí começaram episódios de roubo e prostituição, cada vez piores, cada vez mais brigas, mais problemas. Eu já tinha perdido as esperanças, o meu foco, a minha esperança era a pedra. Não tinha esperança em nada. Eu sempre digo que eu não vivi, eu sobrevivi só pela misericórdia de Deus."

A situação durou cinco anos e se arrastou até 2010. Andréia se afastou da família, dos amigos e emagreceu ainda mais, chegando a pesar 49 kg.

"Muitas vezes na noite eu sentia fome. Quando não tinha droga, ou não tinha onde arranjar, eu pegava comida do lixo. Cheguei a comer pão com fezes, porque não conseguia diferenciar, depois de dias sem dormir."

Ajuda

Um dia, após uma noite de consumo, uma vizinha ofereceu ajuda para Andréia sair da dependência. De sua casa, foi para uma comunidade terapêutica em São Leopoldo, na Região Metropolitana. Ficou três dias e voltou para as ruas. Novamente, a vizinha a ajudou e a levou para outro espaço no bairro Chapéu do Sol, na Zona Sul de Porto Alegre, onde Andréia ficou três dias.

Dali, foi para uma comunidade em Gravataí, onde ficou uma semana. "Não aguentei de novo e saí." Andréia estava novamente nas ruas, mas após alguns dias, foi a vez dela pedir ajuda para ser internada num hospital psiquiátrico.

"O tratamento da dependência química, a recuperação, é para quem quer. Quem chegou já num ponto da drogadição a maioria das vezes pede ajuda, ninguém aguenta muito tempo. E felizmente esse tempo vai chegar."

No hospital psiquiátrico, Andréia ganhou peso e passou a recuperar a autoestima. "Aprendi a me lavar, tomar banho de novo, escovar os dentes, fazer as unhas, a roupa limpa, a alimentação", conta. "Me sentia feliz, me sentia bem sem o uso, eu sentia que algo estava mudando aqui e que eu estava tendo uma chance de começar de novo."

Em seguida, foi para uma clínica em Porto Alegre, onde ficou a maior parte do tempo isolada. Durante os mais de nove meses, Andréia revela que uma das preocupações era para onde ir.

"Eu tinha a sensação que eu não tinha para onde ir. Muitas vezes de noite, quando a gente tinha reunião de espiritualidade, eu ficava me perguntando, para onde eu vou quando eu sair daqui?"

No oitavo mês de internação, Andréia começou a reinserção social com a família. E, com a ajuda da prefeitura, conseguiu alugar uma casa no Belém Novo. O local era próximo do abrigo onde estavam os filhos, que voltaram a conviver com ela.

Hoje, a casa de Andréia abriga seis dos sete filhos, além do marido dela. A residência tem dois quartos, sala e cozinha. Apesar da simplicidade, Andréia não esconde a felicidade de ter dado a volta por cima.

"Eu agradeço todos os dias, por ter uma cama, um prato de comida para comer. Hoje em dia é tão bom poder saber que tem um lugar pra voltar."

Pedidos de internação

A história de Andréia com o crack é apenas uma entre tantas. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES), mais de 12 mil pessoas foram internadas por dependência química no estado em 2016. Em 2015, eram 14.830, o que representa uma redução de 14% de um ano para o outro.

Conforme o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), em dois anos foram mais de 6,2 mil pedidos de internações compulsórias para casos psiquiátricos no estado. A maior parte, segundo o tribunal, são para dependentes químicos. Em 2016, foram mais de 3,2 mil pedidos, e em 2015, outros 3.040 solicitações – um aumento de 5% de um ano para outro.

Porto Alegre libera a lista. Em dois anos, foram 1,2 mil pedidos de internação. Já Caxias do Sul, na Serra gaúcha, foram mais 500 solicitações, enquanto em Passo Fundo foram 339 pedidos.

O juiz-corregedor Vanderlei Deolindo observou que não há "meio técnico" no sistema do tribunal para saber se os pedidos foram deferidos. "Quase totalidade das decisões é no sentido de determinar as reavaliações médicas e, consequente, as internações hospitalares ou tratamentos ambulatoriais."

(*) Produção de Joyce Heurich