Saúde

Alagoas está na contramão da Lei Antimanicomial

MPF diz que estado ainda não cumpre integralmente princípios da Reforma Psiquiátrica e da Lei Federal nº 10.216/2001

Por Valdete Calheiros - colaboradora / Tribuna Independente 11/10/2025 09h36
Alagoas está na contramão da Lei Antimanicomial
Promotora Micheline Tenório diz que Estado e o Município de Maceió não dispõem de quantidade suficiente de leitos em hospitais gerais - Foto: Edilson Omena

Alagoas está na contramão da Lei Antimanicomial no que diz respeito ao atendimento aos pacientes com transtornos mentais. Um dos principais artigos da legislação dispõe sobre o não-internamento desses pacientes. Conforme a Lei Federal nº 10.216, de 06 de abril de 2001, eles devem ser tratados nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e em casos de surtos pesados em um Hospital Geral.

A Lei Antimanicomial dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais no Brasil, redirecionando o modelo de atenção à saúde mental de um modelo assimilado para uma rede de cuidados em Caps e hospitais gerais. A legislação foi resultado do movimento antimanicomial e busca promover o tratamento e a reintegração social, garantindo que internações psiquiátricas sejam excepcionais e realizadas mediante o lado médico.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF/AL), Alagoas ainda não cumpre integralmente os princípios da Reforma Psiquiátrica e da Lei Federal nº 10.216/2001, que preveem a substituição do modelo hospitalocêntrico pelo atendimento comunitário e territorial.

A afirmação tem dupla autoria. E foi feita pelo Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Bruno Lamenha, e pela coordenadora do Núcleo de Saúde Pública do Ministério Público Estadual, promotora de Justiça, Micheline Tenório.

Eles são os autores da Ação Civil Pública ajuizada, em conjunto com a Defensoria Pública da União, em junho deste ano, a ACP nº 0804491-23.2025.4.05.8000.

A afirmativa foi feita com base nos documentos coletados na apuração do inquérito civil nº 1.11.000.000516/2024-09, que embasaram a ação civil pública ajuizada no último mês de junho.

“O estado e o município de Maceió não dispõem de quantidade suficiente de leitos de saúde mental em hospitais gerais – como determina a legislação – e não possuem nenhum Caps do tipo III em funcionamento, do tipo III apenas para tratamento de álcool e drogas (Caps AD III). Essa estrutura insuficiente compromete o atendimento de pessoas adultas em sofrimento psíquico e mantém a dependência de instituições especializadas de longa permanência, em desacordo com a política antimanicomial”, explicaram, novamente, o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Bruno Lamenha, e a coordenadora do Núcleo de Saúde Pública do Ministério Público Estadual, promotora de Justiça, Micheline Tenório.

O MPF afirmou, baseado em informações apuradas no inquérito civil, que o atendimento é prestado principalmente por meio dos Caps e pelos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), com cobertura ainda limitada.

Segundo o órgão federal, em Maceió, há cinco Caps municipais (três voltados a transtornos mentais, um infantojuvenil e um Caps AD III, que funciona 24h), sete SRTs e uma Unidade de Acolhimento Infantojuvenil (UAI Nise da Silveira). Há também dois Caps estaduais administrados pela Uncisal, mas sem habilitação no Ministério da Saúde.

Conforme o MPF, tanto o órgão federal, quanto o Ministério Público Estadual e a Defensoria Pública da União constataram falta de profissionais especializados, carência de equipamentos e de novas unidades, além da inexistência de Unidades de Acolhimento para adultos – o que evidencia que a rede psicossocial funciona de forma parcial e com grandes lacunas assistenciais, o que levou ao ajuizamento da ação em junho de 2025.

Ainda segundo o MPF, pelas normas do Sistema Único de Saúde (SUS), os casos de crise de pacientes com transtornos mentais em surto devem ser acolhidos nos CAPS III e, quando necessário, em leitos de saúde mental inseridos em hospitais gerais.

Eis o problema! O MPF explicou que Maceió não possui Caps III nem leitos psiquiátricos em hospital geral, o que faz com que pacientes em surto sejam encaminhados para hospitais particulares ou clínicas, chamadas especializadas, para tratamento de dependência de álcool ou outras drogas.

“Essa ausência de retaguarda hospitalar e de serviços públicos 24h gera sobrecarga sobre o Caps AD III e sobre o Samu, que muitas vezes atua sem ter para onde encaminhar o paciente em crise. No âmbito do inquérito civil, apurou-se que não há leitos de saúde mental em hospitais gerais em Maceió, conforme reconhecido pela própria Sesau. O Estado informou possuir poucos leitos psiquiátricos em unidades do interior, como Rio Largo e Capela, mas em quantidade muito inferior aos parâmetros técnicos do Ministério da Saúde, que preveem um leito para cada 23 mil habitantes. atendimento digno, humanizado e em conformidade com a Lei nº 10.216/2001”, detalhou o MPF.

Ainda segundo o órgão federal, na mais recente reunião sobre a Lei Antimanicomial, ocorrida, há mais de um ano, exatamente no dia 03 de outubro do ano passado, entre Secretaria de Estado da Saúde (Sesau) e Uncisal (Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas), com participação do MPF, MP/AL, DPU, Defensoria Pública do Estado, Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e Ministério da Saúde, foram discutidas as deficiências da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e os encaminhamentos para ampliação da rede.

“As instituições participantes reafirmaram que a rede atual é insuficiente e que a reestruturação da Raps é urgente para garantir atendimento em conformidade com a Lei Antimanicomial”, finalizou o MPF.

Uncisal e Portugal Ramalho

A Uncisal respondeu que o processo para construção do novo Hospital Escola Portugal Ramalho (HEPR) está na fase de desapropriação do imóvel, no bairro do Jaraguá.

O projeto, conforme a Universidade, está pronto para a Braskem construir e a notificação com os valores para aquisição da desapropriação do imóvel foi encaminhada ao proprietário, que terá prazo de 15 dias para avaliar. “A fase administrativa do processo, portanto, está no andamento para a desapropriação”, concluiu.

Conforme a diretora-geral do HEPR, Helcimara Martins, no caso de Alagoas, o estado tem avançado em alguns pontos da política antimanicomial.

Ao mesmo tempo, a diretora-geral admitiu que persistem desafios estruturais. O HEPR continua sendo a referência psiquiátrica pública do estado e concentra grande parte do atendimento de emergência e internação psiquiátrica. No momento, a unidade atende a 104 pacientes internos.

“Isso mostra que Alagoas está em um processo de transição para o modelo comunitário, mas ainda depende fortemente de uma unidade hospitalar especializada. Atualmente o tratamento dos pacientes com transtornos mentais no estado é feito por uma combinação de serviços: atenção básica (quando aplicável), Caps para acompanhamento comunitário e ambulatórios especializados, além do HEPR para urgência/emergência e internações quando necessário”, detalhou.

Os números mais recentes divulgados pela própria Uncisal mostram que, em 2024, o Hospital Escola Portugal Ramalho realizou 70.680 atendimentos (entre ambulatório, emergência e internações), o que ilustra que a demanda concentrada na unidade.

Helcimara Martins explicou que se um paciente chega em surto a um Caps, o fluxo recomendado é acolhimento inicial, tentativa de manejo e estabilização pela equipe do Caps. “Na prática em Alagoas, diante da estrutura atual, muitos casos de maior gravidade acabam sendo atendidos no HEPR (em sua emergência e leitos), enquanto se trabalha para ampliar leitos em hospitais gerais e fortalecer a rede”.

A diretora-geral do HEPR salientou que Alagoas possui hospitais gerais, mas a presença de leitos psiquiátricos qualificados em hospitais gerais ainda é insuficiente para absorver toda a demanda, por isso permanece a lógica de referência ao HEPR para casos agudos.

“Sobre a construção do novo Hospital, o tema está em andamento administrativo e judicial. Existem acordos públicos (inclusive um acordo homologado envolvendo a Procuradoria Geral do Estado) para construção/modernização do Hospital Escola Portugal Ramalho e tramitações envolvendo MPF e DPU que acompanham o processo. Há projeto e decisões que viabilizam a obra, e todos os atores estão trabalhando na implementação e nos trâmites legais e orçamentários para que a construção aconteça da maneira mais célere possível”, conclui.

Sesau

A Sesau informou que Alagoas está em processo de ampliação de sua rede, de acordo com a política nacional da Lei Antimanicomial. O estado está fechando o manicômio judiciário e ampliando os leitos de saúde mental nos hospitais gerais.

A Sesau explicou ainda que o tratamento é realizado na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que inclui os Caps, Atenção Primária à Saúde e os Leitos de Saúde Mental, em hospitais psiquiátricos ou em hospitais gerais.

“Os Caps, serviços de base municipal, devem acolher as crises e precisam estar organizados para isso, pois são a porta de entrada preferencial na Raps. Esses serviços são de responsabilidade municipal. Em situações de surto ou crise aguda que necessitem de remoção ou internação, deve-se acionar o Samu. As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e o Hospital Portugal Ramalho são indicados como possibilidades de encaminhamento para o atendimento de crises’.

Por fim, a Sesau afirmou que o estado está em processo de ampliação de leitos de saúde mental nos hospitais gerais. Segundo as explicações fornecidas pela Saúde estadual, já existem leitos estaduais de saúde mental em hospitais gerais como o Ib Gatto (Rio Largo) e da Criança (Maceió).

“Há também leitos em hospitais gerais em Capela, Teotônio Vilela e Murici. No entanto, a Sesau afirma que, devido ao processo de transição, a Portaria 3088 do Ministério da Saúde permite que, na ausência de leitos suficientes em hospitais gerais, os hospitais psiquiátricos (como Portugal Ramalho, ITA, Ulisses Pernambucano) possam ser utilizados. Assim, o estado ainda usa essas unidades enquanto expande sua rede de leitos nos hospitais gerais”, finalizou.

Associação de Psiquiatria

Na avaliação da psiquiatra Tainá Carvalho que é membro da Associação Alagoana de Psiquiatria, Alagoas tem um trabalho importante com a Raps no estado.

“Mesmo diante da necessidade de maior quantidade de Caps, de Unidades Básicas de Saúde, de Leitos de atenção em saúde mental, resiste. Porém, o estado perde quando mantém o modelo manicomial na figura do Hospital Escola Portugal Ramalho e com as comunidades terapêuticas. A luta antimanicomial aponta para um lugar em que os dispositivos substitutos ainda abarcam a possibilidade de internação, porém não em uma lógica manicomial. Para tanto, é necessário o desinvestimento nas comunidades terapêuticas que muito rendem e investimento na Raps. Em Alagoas, isso ainda precisa avançar”, salientou a psiquiatra.

“Assim, urge que se ampliem os Caps 24h, os leitos de saúde mental e a cobertura na atenção primária. Além disso, vale ressaltar que questões de saúde mental requerem estar atento à assistência social, já que muito do sofrimento psíquica advém da pobreza e falta de amparo”, pontuou.

Conselho Regional de Psicologia

O Conselho Regional de Psicologia (CRP) citou a Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que institui a Raps, que organiza o cuidado às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e àquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

Conforme o psicólogo, vice-presidente do CRP e coordenador da COF (Comissão de Orientação e Fiscalização), Benjamim Vanderlei dos Santos, essa portaria determina que o cuidado deve ser de base territorial, comunitária e centrado na liberdade, substituindo gradualmente o modelo hospitalocêntrico por uma rede articulada entre atenção básica, Caps, urgência e emergência, atenção hospitalar e estratégias de desinstitucionalização.

“O debate é sobre o compromisso com o fortalecimento dos serviços substitutivos, sobretudo com a implantação dos Caps tipo III, que funcionam 24 horas por dia e garantem acolhimento noturno e manejo de crises. Fortalecer essa rede junto à ampliação dos leitos de saúde mental em hospitais gerais e à expansão dos SRTs é o caminho para consolidar o cuidado em liberdade e a atenção psicossocial de acordo com a legislação vigente”, esclareceu.