Saúde

Cicatrizes de fogo

Pacientes relatam drama de sofrer queimaduras graves e médicos falam sobre dificuldades do tratamento em Alagoas

14/08/2018 18h30
Cicatrizes de fogo
Reprodução - Foto: Assessoria
  Rívison Batista Reportagem e edição  Lucas França  Reportagem Era para ser um dia normal na vida de Manuela Herculano. Em fevereiro de 2013, a jovem, que é moradora de Maceió e, na época, tinha 29 anos de idade, foi preparar o café da manhã para ela e o filho pequeno quando sofreu uma crise epiléptica de frente ao fogão. “Tenho epilepsia do lobo temporal. No meu caso, as crises são fracas. É uma breve perda de consciência e, nesse dia, aconteceu justamente quando eu fui ligar o fogão. Eu passei mal e caí em cima do fogo. De início, queimou o meu cabelo e depois se alastrou. Fiquei com 70% do corpo queimado”, relata. Manuela conta que, quando percebeu que estava com o corpo em chamas, correu para o quintal da residência, abriu uma torneira e começou a jogar água em si mesma. “Eu fiz errado. A gente não pode apagar o fogo no corpo dessa maneira. A recomendação é pegar um pano úmido e passar no local que está queimando. As queimaduras ficaram mais graves por causa da água e foram queimaduras de terceiro grau”, relembra. Após apagar o fogo, a jovem pediu ao filho que fosse até os vizinhos para chamar ajuda. Foi então que uma ambulância do Corpo de Bombeiros foi acionada e encaminhou Manuela, que estava consciente, para o Hospital Geral do Estado (HGE), no bairro do Trapiche da Barra. Quando Manuela chegou ao hospital, recebeu todos os cuidados necessários no Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) e ficou cerca de três meses internada. “Logo quando dei entrada, os médicos disseram que só um milagre poderia me salvar. Eles só me deram 15 dias de vida. Fiquei toda enfaixada, mas os médicos se dedicaram muito a mim e, hoje, estou viva”, recorda. Atualmente, com 34 anos, Manuela afirma já ter feito 18 cirurgias plásticas por causa das queimaduras e se sente incomodada com olhares preconceituosos. “Antes, eu abaixava a minha cabeça, porque as pessoas ficavam me olhando com pena, querendo saber da minha história. Hoje, ouvindo os testemunhos de outras pessoas, eu tento erguer a cabeça. Se ficar com olhar de pena, com olhar de desprezo, não gosto. Isso acontece se vou a uma praia, por exemplo, ou a outro lugar que nunca ninguém me viu, principalmente se uso uma bermuda, um vestido ou uma blusa”, declara. Com a vida quase restabelecida, Manuela ainda espera alguns procedimentos cirúrgicos no Hospital Universitário Professor Alberto Antunes (HUPAA), na capital alagoana, e cursa pedagogia na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Ela relata que, por causa do preconceito com as marcas de suas queimaduras, já perdeu algumas oportunidades de emprego. Ela também perdeu, recentemente, o benefício que recebia do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) há cinco anos por causa do acidente. Durante o tratamento no HGE, os médicos retiraram a pele das pernas de Manuela para colocar nas áreas queimadas do corpo, o que, em termos médicos, chama-se enxerto de pele e funciona como um curativo natural. “As minhas queimaduras foram do umbigo para cima. Essa pele retirada das minhas pernas foi para minha barriga, meu tronco, meus braços e meu rosto. Eu senti falta de um banco de pele em Maceió, na ocasião, por causa disso. Recentemente, vi que estão tratando queimaduras com pele de peixe também. Seria ótimo se já tivesse isso na época que sofri o acidente”, diz. O banco de pele ao qual Manuela se refere é um local onde doações de pele são armazenadas e implantadas em pacientes quando necessário. No Brasil, há apenas cinco bancos de pele, e estão localizados em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre. O banco de Recife está, atualmente, desativado. Já o inovador tratamento com a pele do peixe da espécie tilápia teve origem na Universidade Federal do Ceará (UFC), quando pesquisadores descobriram que esse material orgânico tem umidade, colágeno e resistência a doenças em níveis comparáveis à pele humana e, por isso, pode auxiliar na cicatrização de lesões, inclusive de queimaduras. Com 1 milhão de habitantes, Maceió não tem banco de pele

O médico Fernando Gomes é defensor da ideia de Alagoas ter um banco de pele (Foto: Wellington Santos)

No dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio tirou a vida de 242 pessoas na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O caso aconteceu na Boate Kiss, deixando também mais de 600 pessoas feridas. Os feridos com queimaduras da tragédia gaúcha puderam contar com o maior banco de pele do Brasil, localizado na capital do estado, Porto Alegre. Este é apenas um exemplo, de tantos, de como um banco de pele é importante para uma grande cidade. Mas, explicando detalhadamente, o que é um banco de pele? O local é responsável pela captação, processamento, conservação e distribuição de lâminas de pele humana para fins de tratamento de queimados e de pessoas que sofreram perdas cutâneas. No caso do banco de pele de Porto Alegre, por exemplo, localizado na Santa Casa de Misericórdia da cidade, são aceitas apenas doações vindas de pessoas falecidas que sofreram morte encefálica ou parada cardiorrespiratória. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que cada cidade com mais de 500 mil habitantes conte com um banco de pele. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Maceió tem, atualmente, cerca de 1 milhão de habitantes. O médico e professor da Universidade Federal de Alagoas Fernando Gomes é defensor da ideia de implantar um banco de pele no estado. “A forma para se organizar algo desse tipo é bem prática. O banco de pele é um ambiente que não precisa ser sofisticado, deve ser em um hospital e, geralmente, é em hospital público. Para implantação de um banco, existe manual. No geral, usa-se pele de doador cadáver e é importante que se ressalte que é uma pele humana com a finalidade de transplante”, explica o médico. VIGILÂNCIA SANITÁRIA O professor da Ufal afirma que, dentro do contexto do banco de pele, existem vários tipos de enxertos. “Existem enxertos, inclusive, que precisam ser de indivíduos com a mesma carga genética”, afirma. O médico cita que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) possui algumas resoluções sobre bancos de pele, sendo a de dezembro de 2015, talvez, a mais importante, pois regulamenta o funcionamento de bancos de tecido humano em solo brasileiro. Nesta resolução, a Anvisa determina que os bancos de tecido devem sempre possuir licença sanitária atualizada, que deve ser emitida por órgão estadual ou municipal, além de que, para ter pleno funcionamento, o banco deve estar autorizado por órgão competente do Ministério da Saúde. A agência também fixa que é competência do banco realizar buscas quando se precisar de potenciais doadores e fazer uma entrevista com a família, caso o doador seja falecido, ou entrevista com o próprio doador vivo ou seu responsável legal, quando for menor de idade ou se for pessoa incapaz. “A rotina dos procedimentos de um banco de pele [de acordo com a resolução da Anvisa] é muito interessante. Um indivíduo pode se tornar doador, basta notificar que deseja isso da mesma forma que notifica que é doador de órgãos. É preciso ter toda uma equipe técnica para retirada da pele. Nisso, a pele é retirada com rigorosa assepsia. O procedimento é como se fosse uma cirurgia. E, geralmente, o processo é feito em ambiente cirúrgico mesmo. Depois, o material é conservado em glicerol”, comenta Fernando Gomes. HGE OU HUPAA O médico conta que o espaço para a implantação de um banco de pele não precisa ser complexo e também não precisa movimentar muitos recursos financeiros. Ele também afirma que ainda não houve uma proposta médica oficial para o Governo de Alagoas construir um banco de pele no estado, porém o médico reitera que um estabelecimento desse tipo é necessário e já conversou com vários profissionais alagoanos da saúde sobre o assunto. “Em alguns diálogos que tive com amigos médicos, inclusive com o doutor Paulo Teixeira [secretário executivo de ações da Secretaria de Estado da Saúde e ex-diretor do HUPAA], sugeri que esse banco de pele alagoano poderia ser no HGE ou no próprio Hospital Universitário. O HGE já conta com uma unidade de tratamento de queimados e algo desse tipo seria muito bem recebido por lá. Os transplantes que seriam realizados nesse banco de pele ajudariam muito na vida de um morador de Alagoas que sofreu uma queimadura. Por exemplo, imagine um paciente que chega com uma queimadura de terceiro grau grave e você precisa realizar curativos todos os dias. Se você usa a pele que estava guardada no banco nessa pessoa, esse paciente passa de dez a quinze dias sem precisar de curativos. Durante esse tempo, a pessoa vai ficar com essa pele, que depois tem que ser retirada. Não fica permanentemente, é importante ressaltar que é um curativo”, explica o médico.

Queimaduras em trabalhadores são mais frequentes em Maceió, diz médico

O médico e professor Fernando Gomes é referência em Alagoas quando o assunto é queimadura. Atuando no HGE e no HUPAA, Gomes relata que, no seu cotidiano, observa com mais frequência, nos dois hospitais, queimaduras de 2º e de 3º grau. Gomes relata que as maiores vítimas são crianças, idosos e trabalhadores. “O primeiro procedimento que um médico tem que fazer quando recebe um paciente queimado é observar e definir a área do corpo que sofreu a queimadura. Depois, é necessário ver qual foi a profundidade da lesão. A queimadura de 1º grau é aquela que você vai à praia e fica, depois, com uma dor no dorso. Esta é possível tratar em casa, com exceção de casos mais graves quando a pessoa desidrata e deve ir ao hospital para receber hidratação intravenosa”, explica. As queimaduras de 2º grau envolvem aparecimento de bolhas, de acordo com o médico, ou seja, é uma lesão mais profunda na pele que exige uma conduta cirúrgica. As queimaduras de 3º grau atingem a camada mais profunda da pele, a derme, e as de 4º grau atingem músculos e, algumas vezes, estruturas ósseas. Segundo o médico, em Alagoas, o HGE é o hospital mais referenciado para se tratar pacientes queimados. Gomes diz que, além do HGE possuir uma ala específica para lidar com queimados, existe um grupamento técnico treinado – formado por clínicos, cirurgiões plásticos e técnicos de enfermagem – para realizar procedimentos diversos nos pacientes. “Alguém para tratar de queimaduras precisa ter uma vivência nessas situações. O paciente com queimadura é um paciente delicado, porque, no geral, a situação envolve um trauma para a família. O serviço, por ser público, tem que dar esse apoio, que é vinculado à fisioterapia, psicologia, assistência social, clínica médica, tratamento cirúrgico e curativos”, afirma. SEQUELAS E FASE AGUDA Em seu trabalho nos hospitais alagoanos, o médico observa que as queimaduras de grandes extensões desenvolvem sequelas e cicatrizes nos pacientes que devem ser acompanhados por cirurgias plásticas durante, às vezes, toda a vida da pessoa. No HGE, Gomes diz que ocorre o tratamento da fase aguda do paciente queimado. Já o tratamento das sequelas acontece no Hospital Universitário. “Aqui em Maceió, no HGE e no HU, vejo muitas crianças que se queimam nas suas próprias casas. São queimaduras que ocorrem por acidentes domésticos. Em relação aos trabalhadores, chegam muitas vítimas de acidentes que ocorrem por causa da eletricidade e essas queimaduras são, geralmente, mutiladoras, pois envolvem lesões extremamente graves. Dependendo da descarga elétrica, a vítima pode ter queimaduras de 4º grau que envolvem até necrose do membro superior, pois a queimadura elétrica tem uma porta de entrada e de saída e, nisso, ela sai destruindo os tecidos”, relata. Fernando Gomes faz um alerta aos pais e ressalta que, muitas vezes, os responsáveis pelas crianças distraem-se e um acidente ocorre por descuido, como, por exemplo, quando há uma panela no fogão ligado e não há adultos por perto. Segundo o médico, esse descuido é frequente em Alagoas e a criança que puxou a panela quente ficará com uma escaldadura, ou seja, uma queimadura causada por líquido fervente. “Alguns casos que passaram por mim chamaram a minha atenção. Por exemplo, eu tive o caso de uma criança que sofreu uma queimadura elétrica e perdeu a mão e o antebraço. Eu atendi essa criança no Hospital Universitário. Então, para utilidade pública, é muito importante divulgar para pais e mães de todas as classes sociais que as tomadas de suas casas estejam totalmente fora do alcance de crianças, porque isso pode provocar um acidente de escala impressionante”, diz. “Brincadeira” quase fatal

Monizy Costa sofreu um grave acidente com fogo aos quatro anos (Foto: Sandro Lima)

A professora da rede estadual de Alagoas e mestranda da Ufal Monizy Costa foi queimada aos quatro anos de idade em um acidente doméstico. “Minha irmã mais nova estava resfriada e minha mãe pediu para pegarmos uma garrafa de álcool para passar na garganta dela. Depois disso, ao invés da gente guardar o álcool, fomos ver a labareda do fogo”, conta. Monizy relata que a labareda que ela e a irmã queriam ver no momento surgia através de uma “brincadeira” perigosa. “A gente achava isso bonito porque já tínhamos visto antes. Nós colocamos o álcool no chão e riscamos um fósforo”, relembra. Após riscar o fósforo perto da garrafa, a chama veio na direção de Monizy, que diz que foi a mais prejudicada da história, pois o fogo a atingiu nas pernas, na barriga e nas costas com gravidade. O rosto da criança também foi atingido, porém de maneira menos grave do que as outras partes. Depois do acidente, Monizy foi socorrida pela mãe e por um tio. A mãe, ao ver a criança em chamas, tirou a roupa da menina e apagou o fogo com o pano, porém a jovem afirma que já tinha cerca de 50% do corpo queimado. Na época, a família morava na cidade de São Sebastião, no Agreste alagoano, e os parentes levaram a criança para um hospital público de Arapiraca. “Passei 15 dias internada, fiquei cerca de um ano sem poder andar e tive que fazer várias cirurgias. Foram várias entradas em hospitais diferentes. Tive até uma infecção, na época, que, se não tivesse sido tratada com urgência, eu teria falecido”, recorda. Durante o tempo que passou internada após as queimaduras, a professora fala que parte da pele da perna esquerda foi retirada para ser colocada, como um enxerto, na perna direita. Por causa da retirada da pele da perna esquerda, Monizy ficou com pequenas cicatrizes no local. “Algo mínimo. Nada que venha a prejudicar minha autoestima”, afirma. Hoje, aos 26 anos, Monizy conta que possui cicatrizes do acidente que sofreu aos quatro anos de idade, sendo as mais visíveis nas pernas, nas mãos e também algumas nas costas. A professora afirma que, recentemente, está passando por cirurgias plásticas com o médico Fernando Gomes. “Naquela época, era complicado para o SUS [Sistema Único de Saúde] cobrir cirurgias plásticas. Pelo menos, era isso o que os médicos diziam para mim quando a gente procurava um cirurgião. Como nós não tínhamos condições, até então eu não tinha feito nenhuma reparação. Há, mais ou menos, três anos conseguimos encaminhamento para o Hospital Universitário e comecei a me tratar com o doutor Fernando. Ele viu o tamanho das cicatrizes e disse que faria o possível para repará-las”, relata. Com queimaduras graves ainda na infância, a professora diz que as marcas do acidente não foram apenas físicas, mas também psicológicas. Quando criança, ela não conseguia conversar sobre o caso. Já adulta, ela relata que, até seis anos atrás, não conseguia tocar no assunto sem chorar. “Eu fui treinando a minha mente e passei a olhar para minhas cicatrizes de uma forma diferente. Ao invés de ver como uma tragédia, passei a ver como um milagre, como uma segunda oportunidade”, declara. Da esperança com a pele de tilápia a críticas ao sistema

O estudante de medicina Laylson Costa comenta que a pesquisa com pele de tilápia é promissora (Foto: Sandro Lima)

Laylson Costa Santos é estudante do 9º período de medicina na Ufal e, no curso, atua no setor de cirurgias plásticas. Ele diz que, apesar das dificuldades que o SUS apresenta, o Centro de Tratamento de Queimados do HGE estabelece bons parâmetros de cuidados aos pacientes. O estudante diz que os protocolos internacionais são seguidos no local e os profissionais envolvidos são preparados para a abordagem inicial de queimados. O estudante afirma que ainda não se trabalha com a pele do peixe tilápia para o tratamento de vítimas de queimaduras em Alagoas, mas reconhece a importância da pesquisa. “Ainda não utilizamos a pele de tilápia como curativo biológico no tratamento de feridas. A pesquisa continua sendo realizada pela Universidade Federal do Ceará e já está na fase 3 do ensaio clínico. Isso significa que a pele de tilápia já é testada em humanos e está sendo comparada com outras alternativas já descritas na literatura médica”, afirma. De acordo com o futuro médico, o ensaio clínico de uma pesquisa possui quatro fases, onde a quarta é onde se tem o produto disponível no mercado. “Então, com relação à pele de tilápia, estamos prestes a nos deparar com mais uma alternativa no tratamento de queimados, o que é empolgante para todos da área da saúde”, declara. Laylson Costa ressalta que o Brasil está atrasado em relação ao resto do mundo no tratamento de queimaduras. Segundo ele, o Ministério da Saúde recomenda que o país deveria possuir, pelo menos, 13 bancos de pele em todo o território. “O Brasil ainda carrega o estigma de ser um país em desenvolvimento, em que não há uma educação de qualidade. Isso reflete em como a população não evita acidentes, já que a pouca informação compromete a capacidade de prevenção, bem como prejudica a eficácia dos tratamentos adequados, visto que a adesão correta da conduta médica aplicada depende de uma boa orientação do paciente”, comenta. FALTA DE INVESTIMENTOS O aluno de medicina afirma que o sistema de saúde está sobrecarregado pela falta de setorização e de investimentos nos níveis básicos de assistência. “A nossa principal demanda, nesse sentido, diz respeito à agilidade e eficiência no atendimento dos pacientes”, comenta. Ao citar os dois principais hospitais públicos de Maceió, Laylson ressalta que o HUPAA e o HGE são unidades para onde são direcionadas casos de maior complexidade médica e acabam sendo o reflexo direto da dificuldade de setorização na saúde em Alagoas. Na vida de uma população que não recebe a devida assistência à saúde, o sol pode ser um vilão. A ausência de protetor solar na lista de medicamentos gratuitos do governo, segundo o estudante, pode ocasionar casos graves, principalmente em trabalhadores. “Para citar apenas um exemplo, podemos falar sobre o caso de um paciente de 50 anos que é trabalhador rural e que deveria ser educado sobre os riscos da exposição solar contínua em sua UBS [Unidade Básica de Saúde], mas protetor solar não é ofertado gratuitamente no posto de saúde. Ele trabalha o dia todo e não tem como ir pegar uma ficha no posto. Além de tudo isso, os agentes de saúde não conseguem chegar até sua casa. E, assim, ele fica descoberto pela Unidade de Saúde da Família, que deveria promover sua assistência. Certo dia, ele percebe uma lesão no rosto que cresce, não dói e não cicatriza. Depois de meses, ele resolve ir à consulta médica, sendo encaminhado ao HUPAA, e recebe o diagnóstico de câncer de pele. Este paciente não é apenas mais um na estatística, ele é o exemplo clássico de um grupo que só aumenta e se acumula nos hospitais de referência. Este é o grupo das pessoas adoecidas por uma falha na cobertura dos mecanismos de atenção básica à saúde”, observa o estudante. Estatísticas Só em 2017, o HGE registrou 631 atendimentos a vítimas de queimaduras em Alagoas. De acordo com o hospital da capital, janeiro e dezembro são os meses com o maior número de ocorrências: são 68 no primeiro mês do ano e 87 no último. Junho, o mês das festas com fogueiras e fogos de artifício, ocupa o quinto lugar nessa lista, com 48 ocorrências. Porém o ano passado ainda consegue ter números menores do que os registrados durante 2016, quando 759 pessoas deram entrada no Hospital Geral do Estado para receber tratamento após queimaduras. Já no interior alagoano, 439 vítimas deste tipo de lesão estiveram no Hospital de Emergência do Agreste só no ano de 2017. A forma como o paciente é recebido faz diferença

Theresse da Silva (à direita) dá apoio a pacientes no Hospital Universitário; Maria Ariele é uma das acolhidas de Theresse (Foto: Sandro Lima)

É fundamental para o paciente que ele receba um atendimento humanizado em hospitais. E é dessa forma que a professora Theresse da Silva recebe os pacientes que chegam ao setor de cirurgias plásticas do HUPAA. A voluntária diz que a recepção é importante para dar ânimo e fortalecer o paciente e seus familiares. Theresse é voluntária há mais de 15 anos e relata que, até chegar ao voluntariado, passou por uma longa e dolorida história. “Em 2000, fui demitida do emprego e, para aproveitar o plano de saúde, resolvi fazer o check-up médico. Descobri que estava com anemia. A médica passou um medicamento e depois fiz outros exames. Quando retornei, ela pediu para fazer uma mamografia. Eu soube que estava com um nódulo e a médica pediu para eu não me preocupar. Mas retiramos, fiz a biópsia e, depois dos exames, me disseram que eu estava com câncer de mama. Foi um momento difícil. Tive que retirar a mama toda e fazer o tratamento. Depois, veio a parte da quimioterapia. Foram oito meses de tratamento e depois de um ano apareceram outros nódulos. Só quem passou por isso sabe do sofrimento que é”, explica. A voluntária relata que sentiu uma ligação com o setor de cirurgias plásticas do hospital – muito procurado por vítimas de queimaduras – a partir do seu diagnóstico de câncer de mama. “Procurei um médico cirurgião plástico para reconstruir a mama com tecido do abdômen e, em seguida, coloquei prótese. Foi o início da minha aproximação com o doutor Fernando Gomes. Entrei em depressão, e o doutor fazia um atendimento humanizado. Falei que queria trabalhar, pois sempre trabalhei com crianças e não estava aguentando ficar sem fazer nada. Ele disse que tinha um trabalho para mim, mas seria voluntário”, ressalta. Theresse afirma ter uma ‘conexão emocional’ com pacientes do setor e diz que é difícil não se envolver afetivamente com as pessoas e suas histórias. “Vem um paciente que chora, depois vem uma família desesperada. Não tem como não criar um vínculo. Aqui, eu até sinto que tenho uma família”, desabafa. A voluntária cita o caso de três crianças que possuem uma doença rara denominada xeroderma. No HUPAA, são os únicos casos registrados da patologia em Alagoas. A doença não é contagiosa e é caracterizada por uma grande sensibilidade aos raios solares, afetando pele e olhos e fazendo parecer que a pessoa tem queimaduras graves pelo corpo. “A Maria Ariele tem apenas 12 anos e sofre com essa doença rara. Eu senti que ela e a família precisavam se sentir seguras. Tenho um apego muito grande por ela. A Ariele não vem aqui sem me procurar. No tratamento, ela sempre me chama para estar com ela. Eu faço isso, pois eu me senti solitária quando precisava de alguém que me desse o carinho que eu transmito para eles. É isso que elas precisam: de alguém que esteja ali com você e não como parte da equipe que vai fazer a cirurgia ou o atendimento. Tenho muitas histórias relacionadas aos pacientes. As crianças me chamam de tia e já tive pacientes que me chamavam até de mãe. Sei que é complicado, pois muitas vezes a gente perde pacientes e a emoção toma conta”, diz Theresse. Feliz com a troca diária de amor e afeto, Theresse conta que, após mais de 15 anos, não se vê fora do HUPAA e afirma que, para ela, “o trabalho voluntário no setor de plásticas é uma missão”. Curso mais antigo do país tem aula sobre queimados

O médico Ricardo Nogueira coordena o Curso de Emergências, em que são feitas simulações com o Corpo de Bombeiros para ensinar sobre queimaduras (Foto: Edilson Omena)

O médico e professor da Ufal Ricardo Nogueira tem 40 anos de experiência na profissão e é o fundador do Curso de Emergências para alunos de medicina da universidade. O curso é o mais antigo do Brasil sem interrupção, completando 33 anos de existência em 2018. O veterano de medicina conta que, no curso, são ensinados diversos temas de emergência médica e são usados, inclusive, manequins para simular pacientes. Segundo o médico, anualmente, são chamados os maiores nomes da medicina nacional para participar do curso em Maceió. Para explicar sobre queimaduras, o médico afirma que são feitas grandes simulações de acidentes, inclusive contando com a participação do Corpo de Bombeiros. “Queimadura é uma das principais lesões que chegam em um hospital. O incômodo do paciente, a dor que ele sente é uma coisa que só sabe quem sofreu uma lesão assim ou quem presencia. As sequelas podem durar uma vida inteira. Muitas vezes, esses pacientes não resistem e morrem, pois quando queima mais de 70% do corpo é óbito. O queimado é um paciente especial que deve ter um tratamento diferenciado”, declara o médico. SIMULAÇÃO DE ACIDENTE O professor explica que, durante o curso, a aula voltada para queimaduras gira em torno de um acidente simulado, onde personagens representando vítimas do fogo são maquiados de maneira que parecem pessoas queimadas. “Escolhemos uma área e o Corpo de Bombeiros faz uma simulação que é uma das maiores aulas práticas do país. Com maquiagem, se faz a lesão nos atores participantes e, a partir disso, os estudantes de medicina aprendem e tomam decisões sobre o que fazer em uma situação desse tipo”, afirma. Durante o curso em 2017, o médico diz que um acidente aéreo foi simulado em Maceió com a participação de várias viaturas do Corpo de Bombeiros. Tudo foi feito em um terreno nas proximidades da Casa da Palavra, no Centro da capital alagoana. “Simulamos várias vítimas nesse acidente. Então, como deve proceder um profissional da saúde nessa situação? Recentemente, tivemos uma queda de avião no México que todos os passageiros se salvaram. Como tirar essas vítimas das ferragens? Os profissionais envolvidos explicam aos estudantes os procedimentos que são feitos em um caso de emergência desse tipo”, relata. Fortalecendo o apelo do médico e professor Fernando Gomes, Ricardo Nogueira diz que um banco de pele é “mais do que necessário em Alagoas” e ainda afirma que o estado não possui diversos tratamentos que contribuiriam muito para a melhora de pacientes de emergência. “O banco de pele é uma dessas ausências médicas no estado que poderiam fazer a diferença na vida de uma pessoa queimada. Ele daria para o paciente queimado um conforto grande para se fazer um curativo com pele humana ou de porco. Esse material poderia estar guardado em um banco de pele para se utilizar em situação de urgência”, afirma. Quando o professor Nogueira fala em pele de porco, ele remete a um estudo feito em 2013, no interior do estado de São Paulo, onde cientistas de São José do Rio Preto começaram a desenvolver uma técnica para usar a pele do animal para realizar enxertos em vítimas de queimaduras no Brasil, porém é importante salientar que o tratamento não é registrado pela Anvisa, diferente de países europeus, onde se utiliza a pele suína para tratamento de queimados há algum tempo. “Se tivéssemos um banco de pele em Alagoas, muitos pacientes não precisariam passar pelo procedimento cirúrgico de tirar a própria pele para colocá-la em outra parte do corpo. Mas, em alguns casos, esse procedimento seria necessário, pois, às vezes, é preciso ter a pele do próprio paciente”, explica Nogueira. TRATAR EM CASA NÃO RESOLVE O médico também exemplifica “mitos” dos tratamentos populares para queimaduras e diz que algumas práticas são desnecessárias. “Procedimentos como, por exemplo, colocar pasta de dente na lesão só pioram a situação, pois, quando a pessoa chegar ao hospital, os profissionais ainda terão o trabalho de retirar esse material do paciente. Em um caso de queimadura com gravidade, a conduta deve ser diretamente no hospital, e não em casa”, afirma. Ricardo Nogueira diz que o Curso de Emergências é necessário na vida de um futuro médico, porque a maioria das faculdades de medicina do país negligencia a urgência. O professor evidencia que cerca de 70% dos recém-formados na área médica pelo Brasil vão atuar em hospitais de emergência sem qualificação. “Durante os cursos de medicina, os alunos passam o tempo todo com muita teoria, e quase sem prática. Depois que o estudante se torna médico, ele vai tratar do doente diretamente nos prontos-socorros, e pode não ter a devida competência e o preparo para lidar com a situação. Então esse médico vai acabar aprendendo na prática. E aí, o que acontece? Se o doente é recebido por um médico incompetente, ele vai sofrer um segundo acidente. Na hora, não há tempo para correr atrás de livros e nem chamar professor. Vale o conhecimento que está na sua cabeça”, diz o médico.