Saúde

Trabalhar até morrer

Segundo o Observatório de Saúde e Segurança do Trabalho do MPT, doze trabalhadores morreram em 2017 quando exerciam suas profissões; este ano, ao menos quatro já perderam a vida

Por Carlos Amaral e Thaynne Magalhães com Tribuna Independente 29/03/2018 08h22
Trabalhar até morrer
Reprodução - Foto: Assessoria
Era 2013 quando José Antônio Almeida dos Santos, à época com 48 anos, sofreu um acidente de trabalho e morreu. A família, que mal o via por conta da sua rotina exaustiva de trabalho, até hoje aguarda receber alguma indenização. “Meu marido era contratado como serviços gerais, mas morava no trabalho, literalmente. Ele ia para casa a cada quinze dias. Chegava no sábado, sempre muito cansado e reclamando das péssimas condições em que vivia, e voltava na segunda bem cedo. Numa dessas segundas, ele se acidentou e morreu”, lembra a viúva, Nadja Bernardo Leite, de 51 anos. Apesar de ter a carteira assinada, José Antônio não recebia hora extra e exercia diversas funções, como pedreiro, eletricista e até segurança. “Ele trabalhava na antiga Vox, uma casa de shows, e vivia lá. Morava num quarto pequeno e cozinhava num fogão a álcool. No dia do acidente, esse fogão virou, o banhou em álcool e ele teve o corpo muito queimado. Foi internado, mas não resistiu aos ferimentos”, conta Nadja. Desde então, a família entrou com vários pedidos de reparação na Justiça, mas até hoje ainda não recebeu nenhuma indenização da empresa. “Eu tenho minha pensão pelo INSS, mas a empresa, que tratava meu marido como escravo, nunca nos indenizou. Nem a mim e nem às nossas três filhas. Meu marido não vivia. Só trabalhava e, por causa desse trabalho, ele perdeu a vida”, relata a viúva. Situação piora com terceirizados Mais trabalho. Menos direitos. Mais mortes. Foi o que trouxe para a vida do trabalhador a Reforma Trabalhista aprovada pelo governo de Michel Temer (MDB) que, entre suas principais mudanças para a vida do trabalhador brasileiro, libera a terceirização para todas as atividades. Para o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Alagoas, Rodrigo Alencar, os trabalhadores que atuam como terceirizados correm mais riscos de sofrer acidentes no ambiente de trabalho. [caption id="attachment_81066" align="alignright" width="259"] Rodrigo Alencar, procurador do Trabalho: ‘A terceirização significa a fuga da responsabilidade dos patrões. É comprovado por dados do próprio governo que o trabalhador terceirizado é o que mais morre em acidentes de trabalho’ (Foto: Ascom/MPT)[/caption] “Eles trabalham mais, ganham menos, não recebem benefícios e nem equipamentos de segurança pessoal, os EPIs. A maioria dos casos de mortes por acidente de trabalho que registramos tem como vítimas os terceirizados. A Reforma Trabalhista é nociva para o trabalhador. É cruel”, afirma o procurador. Rodrigo Alencar diz ainda que a terceirização é algo que tem que ser restringido, e não ampliado no Brasil. “Se você conversar com qualquer fiscal ou juiz do Trabalho, ele vai te dizer que a terceirização significa a fuga da responsabilidade dos patrões. É comprovado por dados do próprio governo que o trabalhador terceirizado é o que mais morre em acidentes de trabalho. Então essa reforma quer aumentar o número de mortes? De mutilações? De doenças que afastam o trabalhador do mercado? A reforma é puramente de interesse dos empresários e o Estado não ouve as reivindicações dos trabalhadores”, questionou. O rumo que o atual governo toma, na opinião do procurador, não prestigia o trabalhador nem reduz a desigualdade social do país. Ao contrário, a amplia. “Esse governo que aí está não pensa no trabalhador, defende agenda da Confederação Nacional da Indústria e da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo]. Michel Temer assumiu o poder com o patrocínio dessas instituições e agora defende a agenda  delas”, opina. Para o procurador, em um país onde a população tivesse o mínimo de consciência política, a Reforma Trabalhista como aconteceu no Brasil geraria uma revolução. “Mas o país vive em estado de letargia, de inação. Parece que todo ódio da população que batia panela era voltado unicamente a um partido e com a saída dele do poder, o atual governo pode trucidar o direito dos trabalhadores que não importa mais. Então, a gente vê que o trabalhador que construiu esse país é alguém que não merece a proteção do Estado. É essa a mensagem que a Reforma Trabalhista passa e isso vai resultar em mais terceirização, em mais acidentes de trabalho e mortes”, afirma Rodrigo Alencar. Um trabalhador morto a cada 26 dias Em 2017, 12 trabalhadores em Alagoas morreram quando exerciam sua profissão. Desses, quatro foram em Maceió. Segundo dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, o ano passado registrou uma morte a cada 26 dias e 22 horas no estado. [caption id="attachment_81067" align="aligncenter" width="550"] Em Maceió, 704 trabalhadores da construção civil se afastaram do trabalho devido a acidentes; segundo Cícero Justino, presidente do Sindticmal, as condições de segurança das construtoras têm nível baixo e são piores nas empresas terceirizadas (Fotos: Sandro Lima)[/caption] Dos acidentes de trabalho notificados – um a cada 3 horas, 6 minutos e 51 segundos –, “contusão ou esmagamento” na cabeça registrou 407 casos, ficando atrás de “corte, laceração, ferida contusão, punctura (perfuração)”, com 746. E como se o passado não quisesse ficar para trás, entre 2012 e 2017, o setor sucroalcooleiro – ou como consta no Observatório, “Fabricação de açúcar em bruto” – foi o com mais registros de acidentes, com afastamento, em Alagoas: 3.114. Já em Maceió, “Construção de edifícios” apresentou, entre 2012 e 2017,  704 casos de acidentes de trabalho com afastamento. O comércio varejista, com predominância em hiper e supermercados vem em segundo lugar, com 629 casos. Contudo, tendo como recorte apenas o ano passado, a área com mais casos de acidentes foi o atendimento hospitalar, com 270 registros; em seguida, aparece a coleta de resíduos não-perigosos, com 134; e em terceiro, as atividades de correio, com 100 casos. Dez trabalhadores sofreram amputação ou enucleação (retirada do globo ocular) em Alagoas devido a acidentes de trabalho. Para Cícero Justino, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de Alagoas (Sindticmal), as condições de trabalho dos terceirizados são bem piores que as dos demais trabalhadores. “As condições de trabalho não são boas e nas terceirizadas é pior. O maior número de acidentados é de terceirizados. Muitas vezes nem seguro têm, aí as empresas levam para médicos e enfermeiros particulares, o que dificulta a contabilização dos casos. Na realidade, só as empresas maiores garantem a segurança do trabalho, mas as terceirizadas, não. A gente nem sabe ao certo o número de terceirizados no mercado”, comenta o presidente do Sindticmal. INSS Além de causarem problemas aos trabalhadores ou seus familiares, os acidentes também geram despesas ao Estado. Cada afastamento, por exemplo, é custeado pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS). Em 2017, Alagoas registrou 1.840 deles, o que significou R$ 13.250.000,00 em auxílios-doença por acidente do trabalho. Em Maceió, foram 793 afastamentos, ao custo de R$ 6.066.000,00 dos cofres do erário. Apesar dos números, especialistas estimam que 90% dos acidentes de trabalho não chegam ao conhecimento do Estado. Então não há como se ter um número absoluto de acidentes ou mortes por acidente de trabalho, já que ficam subnotificados. Mais de 100 denúncias já chegaram ao MPT em 2018 Em menos de três meses, 2018 já conta com 107 denúncias relacionadas ao ambiente de trabalho ao MPT em Alagoas. “Entre as denúncias, 19 ocorreram por acidente de trabalho típico ou por motivação; 16 por atividade insalubre; uma por atividade penosa; e nove por atividade perigosa. Lembrando que uma mesma autuação pode conter atividades insalubre, penosa e perigosa ao mesmo tempo”, relata a assessoria de comunicação do MPT em Alagoas, ressaltando que cinco delas envolveram doença ocupacional ou profissional. O MPT destaca que 43 denúncias relataram problemas com equipamentos de proteção, individual ou coletiva. “Sete delas envolvem irregularidades de ergonomia”, completa o MPT. VÍTIMAS FATAIS Ao menos quatro pessoas morreram neste ano em seu ambiente de trabalho no estado. Duas foram eletrocutadas e duas numa tubulação de esgoto. No dia 19 de janeiro, um homem – cuja identidade não foi revelada – faleceu na cidade de Belém, no Agreste de Alagoas, quando trabalhava na montagem de um sistema de som de um palco para realização de evento festivo na cidade. Ele tocou num fio de alta tensão. O acidente ocorreu às 14h40. Segundo informações do Corpo de Bombeiros, ele ficou preso na estrutura e morreu no local. Já em 12 de fevereiro, Francisco de Assis Batista faleceu enquanto montava equipamentos de um trio elétrico na cidade de Pilar. Ele tentava realizar procedimento no gerador do veículo e chegou a ser levado para o Hospital Geral do Estado (HGE), mas faleceu no caminho. Já em Maceió, dois trabalhadores faleceram quando trabalhavam para desobstruir uma tubulação de esgoto. Cícero Porto da Silva e Adeilson Batista da Silva foram arrastados por uma enxurrada. O acidente ocorreu no dia 27 de agosto. No momento do acidente, Cícero Porto estava dentro do bueiro, sendo levado pela água; Adeilson ainda tentou resgatá-lo, mas caiu e também foi arrastado pela correnteza. Eles eram contratados da empresa Engemat, que prestava o serviço para a Secretaria de Estado da Infraestrutura (Seinfra). Adeilson Batista chegou a ficar desaparecido por mais de 17 horas. Nenhum representante da empresa deu declarações à imprensa, mas em nota ela garantiu que seus funcionários utilizavam os equipamentos de segurança. No sepultamento dos trabalhadores, os familiares acusaram a Engemat de negligência. Um irmão de Cícero Porto chegou a dizer à imprensa que os equipamentos de proteção não eram fornecidos. “Meu irmão não estava com os Equipamentos de Proteção Individual. Se estivesse, não teria morrido. Se tivesse alguém o orientando, olhando o nível da água, ele ainda estaria vivo. Tenho certeza absoluta que foi negligência da empresa”, afirmou, “Quando ele estava descansando, o chefe já chamava. Meu irmão não descansava”, completa. Ministério do Trabalho? Para o procurador Rodrigo Alencar, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) deveria se chamar “Ministério do Subemprego e da Precarização” devido ao desmonte pelo qual, segundo ele, o órgão vem sofrendo. “Há um desmonte no Ministério do Trabalho. Não há concurso para auditor fiscal do Trabalho e não se vê mais médicos do Trabalho dentro do Ministério. A gente observa que, agora nessa gestão, o Ministério tem sido instrumento de lesão ao interesse do trabalhador. O então ministro do trabalho, Ronaldo Nogueira, era amplamente favorável à Reforma Trabalhista, que só prejudica o trabalhador e beneficia empresários. Então deveria ser também o Ministério das Empresas”, critica Rodrigo Alencar. Ele vê com pessimismo o cenário que se avizinha na política do Brasil e acredita que a agenda da CNI e da Fiesp deve avançar. “O cenário é preocupante porque a esquerda do nosso país está muito debilitada e a direita fortalecida. A tendência é que ganhe um candidato da direita nas próximas eleições e essa agenda favorável aos empresários deve continuar. Tenho receio sobre a sobrevivência da Justiça do Trabalho, que é a mais célere e isso está estatisticamente comprovado. É uma Justiça que aplica a Constituição e é apartidária, o que causa prejuízos aos empresários”, opina. Para Alencar, existe um movimento no Congresso para que haja a extinção da Justiça do Trabalho e do MPT. “Existe um movimento muito forte por parte dos parlamentares para acabar com os órgãos que defendem os direitos do trabalhador. Existem argumentos falaciosos de que o Brasil responde por 90% das reclamações trabalhistas no mundo, mas isso é uma grande mentira”, afirma. “Se mesmo tendo o MPT e a Justiça do Trabalho, o trabalhador é desrespeitado, imagine sem”, completa. Rodrigo Alencar reforça a importância de se preservar os órgãos de defesa dos direitos dos trabalhadores. “A Justiça do Trabalho acaba sendo o último recurso do trabalhador, que perdeu muitos dos seus direitos com a reforma. É onde ele busca garantir seus direitos trabalhistas quando negados pelo empresário”. Com a reforma, o trabalhador precisa negociar seus direitos direto com o patrão, o que, para Rodrigo Alencar, é altamente maquiavélico. “A reforma retirou o imposto sindical, que é a contribuição sindical obrigatória, o que deixou os sindicatos ‘com o pires na mão’, e eles agora terão de negociar os direitos trabalhistas com os empresários. Então, hipoteticamente, já não se tem uma grande influência no poder econômico do sindicato, mesmo com imposto sindical, imagine sem. Então, se a reforma fosse séria, pensada para o bem da relação do trabalho, o governo pensaria em fortalecer os sindicatos para que o interesse dos trabalhadores fosse protegido. Para que se pudesse negociar em igualdade”. O procurador não acredita que, mesmo com mudança de governo, haja reversão da reforma. “Para reverter, seria necessário que o Congresso aprovasse, mesmo que o novo presidente fosse contrário a essa reforma. Mas o Congresso atua cada vez mais pelos interesses dos empresários. De 513 deputados, 230 são da bancada rural, juntando aos da bancada dos empresários, são mais de 400 deputados favoráveis aos interesses do empresariado. É um governo que massacra o trabalhador descaradamente”, analisa Rodrigo Alencar.