Saúde
Médicos usam pele do peixe tilápia para tratar queimaduras
Eficiente contra dor e infecções, material acelera a cicatrização dos ferimentos
A pele da tilápia — espécie de peixe comum em várias regiões do Brasil — está sendo utilizada para tratar pacientes com queimaduras de segundo grau por médicos da UFC (Universidade Federal do Ceará), em Fortaleza. Desde setembro do ano passado, 70 pessoas já foram submetidas a esse tipo de tratamento, considerado ainda experimental — todas com bons resultados.
De acordo com o coordenador do Laboratório de Oncologia Experimental e do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade e farmacologista, Odorico Moraes, a pele do peixe funciona como um poderoso curativo biológico.
— A pele de tilápia resolve o problema de infecção decorrente dos ferimentos [o material se torna uma camada de proteção da pele] e acaba com a perda de líquidos pelos tecidos, um processo bastante comum em quem sofre queimaduras de segundo grau, que comprometem a epiderme (a camada mais superficial da pele). O tempo de recuperação do paciente também é muito menor, já que a pele do peixe é rica em colágeno tipo 1, que acelera a cicatrização.
Além desses benefícios, Moraes conta que a pele de tilápia diminui muito as dores dos pacientes. Segundo o médico, isso ocorre provavelmente porque o material evita que as terminações nervosas dos tecidos comprometidos fiquem em contato direto com o ar. “Pode ser também que a pele de tilápia conte com substâncias analgésicas e anestésicas, mas isso ainda estamos investigando”, afirma.
Um dos pacientes tratados é o caseiro Pedro Silva Isaías, de 38 anos. Ele sofreu graves queimaduras nas pernas depois de ser atingido pela explosão de um butijão de gás, em outubro do ano passado.
— Os médicos ofereceram para que eu participasse da experiência com a pele de tilápia e, no começo, achei estranho. Perguntei se havia chances de a minha pele ficar escura para sempre, disseram que não e eu topei. Em 15 dias, o ferimento já tinha fechado. Só doeu um pouco na hora de tirar o curativo. Pensei que não fosse mais ter pelos, mas eles voltaram a nascer normalmente. Em dezembro, já nem parecia mais que eu tinha sido queimado.
Curativo mais eficiente
A ideia de utilizar a pele de tilápia no tratamento das queimaduras surgiu cinco anos atrás, quando os médicos da Universidade souberam que o filé do peixe era bastante comercializado na região, mas seu couro era sempre descartado. O uso de pele animal para a confecção de curativos biológicos é comum em países como os Estados Unidos, onde as queimaduras extensas são tratadas com pele de porcos.
Na grande maioria dos hospitais públicos e privados do Brasil, entretanto, os machucados ainda são tratados com gazes e pomadas à base de sulfadiazina de prata, que tem ação bactericida. “Esse tipo de curativo exige manutenção diária e causa muita dor nos pacientes. Frequentemente, tem de ser aliado ao tratamento com analgésicos e até anestesia”, diz o médico. Moraes completa que há apenas três bancos de pele para curativos biológicos em todo o País. Eles oferecem pele de seres humanos para aplicação sobre ferimentos graves, mas atendem apenas 1% da demanda nacional. Fora isso, o processo de captação do material é lento especialmente para a rede pública de saúde, diz Moraes.
— São peles das costas e das coxas, oriundas da doação de órgãos. Acontece que, se o processo de esterilização não for eficiente, existe o risco de transmissão de doenças como vírus HIV, hepatite B e hepatite C. No caso do couro da tilápia, essa hipótese é descartada, já que não existe registro de propagação de infecções da pele do peixe para o homem.
Segundo o especialista, foram necessários dois anos e meio de experimentos com a pele de tilápia em ratos e, posteriormente, seres humanos saudáveis para saber se o material poderia ser utilizado no tratamento de queimaduras ou causaria algum tipo de reação alérgica. Felizmente, o material foi muito bem aceito em todos os casos. Em setembro de 2016, começaram os tratamentos na Unidade de Queimados do IJF (Instituto José Frota), hospital situado no centro de Fortaleza.
Processo de esterilização
Desde que é doada por centros de piscicultura da região de Fortaleza até chegar ao IJF, a pele de tilápia passa por um intenso processo de esterilização. Primeiro, é submetida a uma limpeza para a retirada de restos de gordura e músculo do peixe. Em seguida, é desinfetada com substâncias químicas e bactericidas. O material é ainda conservado em glicerol — que tira todos os líquidos remanescentes — e lacrado em um envelope plástico. Por último, passa por uma esterilização com radiação que elimina todos os vírus que possivelmente sobreviveram às etapas anteriores.
Quando um paciente com queimaduras de segundo grau chega ao pronto-socorro da unidade, a pele da tilápia é lavada com soluções fisiológicas e aplicada sobre a ferida já limpa. Os médicos finalizam o curativo com ataduras — que são renovadas a cada três ou quatro dias para que o couro do peixe não se desloque. "Em menos de duas semanas, as feridas já estão cicatrizadas", finaliza Moraes.
Planos para o futuro
De acordo com o coordenador do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade, a próxima etapa é começar os experimentos em queimaduras de terceiro grau — que acometem todas as camadas da pele e danificam inclusive as terminações nervosas dos pacientes — e finalizar os testes até o meio de 2018.
— Precisamos ainda encontrar um parceiro que se disponha a repassar a pele de tilápia dos centros de piscicultura para os hospitais em escala industrial. Hoje, o material é repassado em quantidades pequenas, por meio de doações. A ideia é que, até o fim do ano que vem, a pele de tilápia para curativos biológicos esteja disponível pelo menos na rede privada de saúde no Brasil.
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